👁 Olhares
Atualmente trabalho embarcado. Dez anos neste solitário serviço - combina com minha gélida alma.
Mas quero lhes contar de um fatídico dia de minha vida. No auge de minha adolescência, garoteando e vadeando pelas ruas como todo jovem sustentado pelos pais.
Era um 10 de junho de 1990. Parti de meu bairro num modesto fim de tarde, e cheguei ao sítio de alguns avós no início da noite.
Passei por pontes esplêndidas, rios largos e profundos, até chegar na imensidão em que meus avós moravam. Estavam eu, um tio e uma tia, meu avô - hoje falecido e uma estimada avó da qual me recordo com um intenso carinho, da qual sempre cuidou e me tratou com grande coração.
Perguntei a ela onde estavam meus primos, e a simpática senhora disse que chegariam apenas na manhã seguinte. Logo, eu teria de passar a noite só, sem ter com quem jogar conversa fora, contar boas piadas e rirmos um dos outros.
Naquela época, eu não sofria de insônia, não tinha problemas pessoais e tampouco possuía uma mente perturbada e assolada por motivações sombrias e terríveis.
Jantamos por volta das 21h00 daquela noite, e uma forte chuva se iniciou. Ventos caindo pelo norte chegavam e sapos emitiam sons num belo lago que tínhamos ao fundo da grande casa.
Neste momento, recordo-me que felizmente meus primos não estavam presentes, pois um deles sofria de medo de trovões e relâmpagos, e estes logo começaram. Raios cortando o céu negro, estrondos alarmantes que fariam com que criancinhas pulassem de suas camas e o cheiro de mato molhado subindo pelas laterais de nosso sítio.
Como tinha algum tempo livre, aproveitei-me de um quarto de um de meus primos, pois este era maior que o que eu ficaria. Nele, havia uma estante, uma cornucópia de opções com livros variados.
O primeiro que peguei, possuía um homem de longa testa e um corvo ao centro.
Naquela época, o jovem que hoje vos escreve, tinha um ar para lá de filaucioso, e acreditei fielmente que aquele livro não continha nada de grande valia. Enganado estava, pois hoje o tenho também em minhas prateleiras.
Acabei cochilando. Sem ser mendacioso, dormi - sinceramente - pois estava cansado, e não porque o livro era ruim ou desagradável.
Me coloquei de pé num solavanco, e a chuva ainda arrebentava em minha janela. Não ouvia som algum, conversa alguma. Provavelmente estávamos na madrugada.
Do cômodo que estava, só conseguia ver a janela de uma das salas, que dava a um corredor sombrio e vazio, e ligava a uma nova casa - tínhamos duas, uma para hóspedes, caso necessário.
Algo passou por aquele corredor, e do outro lado, sua sombra refletiu nos vidros da porta. Gelei-me por completo. Continuei-me de pé, e quem quer que fosse, fez o caminho de volta.
O livro em minha mão foi ao chão. De imediato, acreditei ser um ladrão, seríamos assaltados. Eu não sabia o que fazer, fiquei como uma pedra. Sem movimentos bruscos.
O ladrão retornou, fez o trajeto de novo, e desta vez, demorou para retornar. Próximo àquela porta, só havia uma lamparina acesa, que clareava aquela região de alguns metros. O resto da casa enegrecido - apenas o quarto em que eu estava permanecia com a luz ligada.
Fiquei ali, estático por alguns minutos. Tudo se tornou modorrento. Queria esboçar um sorriso, pois o ladrão não mais retornou.
Foi o pensamento mais tolo que tive. Digo isto pois em alguns espaço de tempo, soube que aquilo não era um ladrão.
A sombra, agora encurvada, possuía pelo menos um e sessenta de altura, e parou frente a porta. Fiquei imóvel, esperando o que aconteceria. Tomado por um medo que jamais senti em toda a minha vida.
O basculante da porta foi levemente entreaberto. Neste momento, eu tive a certeza de que estava prestes a morrer. Meus olhos ficaram pesados. Nunca pude me esquecer, pois algumas lágrimas escorreram, eu estava amedrontado.
Quando o basculante se entreabriu, uma mão fina, acinzentada e peluda se pôs para dentro. Uma coisa não me recordo, de quantos dedos haviam. Estava nervoso demais para isso.
E de repente, aquele braço e mão se retiraram. Desistiu de tentar girar a maçaneta por dentro ou arrombar a porta.
Eu permaneci de pé, a metros da porta. Digo com certeza que eu poderia ser confundido com uma estátua, mas o pior estava por vir.
Em toda a minha vida, nem mesmo no mar, ou em matas distantes, vi algo como vi naquele dia. Um olhar odiento e amarelado passou pelo basculante. Não sei o que era, nunca soube. Mas troquei olhares com algo indizível para o homem, inescrupuloso e que representava o puro mal.
Jamais me esquecerei daqueles segundos em que algo inexplicável e inominável me encarou.
Contei para meus familiares que ali moravam, e eles afirmaram ser um coiote. Mas não era, sequer era um animal. Seja lá o que estava ali, nunca mais a vi.
Até hoje, me pego pensando sobre aqueles olhos, aquela noite. Nunca mais fui a mesma pessoa.
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