🛎️ A campainha


   Por volta da meia-noite de um cuntatório sábado de 1991 estávamos nos preparando para uma confraternização na casa de alguns parentes que temos no interior do Rio de Janeiro.

   A viagem fora demasiada longa, mas felizmente nosso ônibus estava vazio. Pude apreciar os campos que passavam pelas janelas, outrora, cidades, pequenas e outras não tão pequenas assim, de modo que, minha filha, que se sentava ao meu lado, ficava entusiasmada ao ver bois e vacas em terrenos mais rurais – típico de uma cidade do interior.

   Não cabe a minha pessoa dizer o nome de minha filha, esposa ou a cidade para qual estávamos a ir.

   Todos estão cientes de meus problemas e distúrbios mentais. A respeito de meu sono, tomo remédios há oito anos para poder dormir, mas este caso a que estou a lhe contar, nada tem ligação com meu psicológico abalado ou minha sanidade, pois acredite, o que digo, é somente a verdade. A mais pura delas.

   Passamos duas noites num modesto hotel de beira de estrada. Apenas duas camas e minha filha dormiu agarrada à minha amada.

   Muita das vezes em que não consigo dormir, me levanto e saio para fumar um cigarro enquanto observo a noite e a brisa que refresca minha fragilizada alma.

   Amanheceu ligeiramente, ou talvez eu apenas tenha dormido pouco. Saímos rapidamente daquele péssimo local e adentramos ao ônibus na hora certa, às 08h45 da manhã.

   Havia um ignóbil homem seboso nos primeiros bancos do automóvel, e o sujeito discutia como um animal com uma moça de pele alva – acredito que sejam marido e mulher, em que pese aquele obviamente não ser uma relacionamento muito produtivo.

   O ônibus chegou à rodoviária por volta das 14h50. Conduzi as malas de minha esposa e as minhas, e posteriormente, levei a mochila de minha filha à um táxi, e assim fomos até a casa de meus familiares.

   Chuviscava quando já estávamos no meio do caminho e torci para que ela parasse – e parece que os Deuses me atenderam em alguns segundos.

   O pachorrento motorista é simpático, cumprimenta minha filha e a entrega algumas balas que carregava consigo. Quando descemos, o mesmo cumprimenta a todos nós com um largo sorriso satisfeito em seu rosto rechonchudo.

   A residência é grande e está amontoada de carros, o que me faz lembrar que sou um dos poucos presentes que não possui seu próprio veículo – o vendi tem pelo menos três meses.

   Particularmente, meus parentes, distantes ou próximos, não possuem minha simpatia. Muitos são pedantes,pacóvios ou pérfidos – este último adjetivo o dou pelo fato de uma de minhas tias ter tirado todo o dinheiro de um falecido tio meu, um famigerado senhor famoso em cidades vizinhas e que lecionou em três universidades antes de falecer. Fora o fato de ter passado pelo menos seis meses em Londres – era um gentleman, um homem de grande posse e honesto, mas amou demais, e isso o custou caro. Deu tudo a uma pessoa, cavou sua própria cova.

   São horas de farra. Comida e bebida em abundância e eu evito beber perto de minha esposa e filha, e elas dançam grudadas ao som de uma música da qual não gosto, mas estão felizes e assim a de ser.

   São dois andares, pelo menos doze quartos, quatro banheiros e um terreno abundante à esquerda e à direita. Não se tem vizinhos por aqui, é um casa enorme e isolada de tudo e todos.

   Quando pequeno fui, medo sentia quando passava noites aqui, e depois de velho, pela primeira vez, sinto o medo de quando era apenas um rapaz.

   O fim de festa se aproxima, mas esta história não, pois aqui se inicia nosso pesadelo da qual jamais pude esquecer.

   São reminiscências antigas que me assolam nesta noite interminável. A chuva desce sobre nós e não há mais música, dança e sorrisos. Está acabado.

   A campainha, aquela caixa velha com um mero botão bege do lado de fora da casa é tocada. São quase meia noite e está chovendo cada vez mais - retornando.

   Meu avô, ainda vivo e dono da casa, um senhor metido à dono de terras, se levanta de seu sofá com aquela feição rude. Ele pede para que eu vá lá conferir. Pois bem, eu o faço.

   Não há ninguém. Eu volto em seguida.

   Trovões irrompem do céu, e a campainha é tocada novamente. O blim-blom em alto e bom som. Desta vez, um de meus primos resolve ir em meio à chuva.

   Não há ninguém.

   Ora bolas, malditos pestinhas que perturbam a vizinhança dos outros, é isso que todos pensam, mas no âmago de minha cambaleante vida, sei que não é.

   É a terceira vez que ela toca. Tomo frente novamente, vou dar outra olhada para eles.

   Quando me aproximo, as luzes se apagam. Piscam e retornam de vez. Abro o portão de madeira, saio definitivamente, verifico todos os cantos. Não há ninguém e não há como ter. Eu sei disso. É impossível.

   Quando retorno, sento-me com minha filha no colo, mas não tiro o olho do portão. Sei que ele há de vir novamente. Ele nos quer.

   E ela toca novamente.

   Três primos se erguem da sala, sorrisos maliciosos no rosto, eles saem. Parece que vão matar alguém caso encontre. Mas não adianta, não vão encontrar.

   Deixo minha filha com minha esposa e saio junto. Outros dois tios nos acompanham. A seriedade estampada em seus rostos agora. Tolos derrotados.

   Não há ninguém do lado de fora. Eles trocam xingamentos em voz alta, devem crer que isto afastará alguém ou algo, mas sei que não surtirá efeito.

   Quando retornamos, a campainha é tocada novamente.

   Pois bem, agora o patriarca, anfitrião e dono da casa é quem vai conferir com seus próprios olhos. Ele tira de uma gaveta antiga uma espingarda. Está com munição, e além delas, ele traz consigo tesouras robustas e algumas ferramentas velhas em seu bolso.

   Agora, se me permite dizer. É chegado o momento da vitória para meus parentes. Eles têm certeza disto.

   Eu e o restante de primos e tios acompanhamos o velho sorrateiramente. Meu avô era um ex-militar e agora você entende essa postura violenta e vil em alguns momentos.

   Ele confere, espera por alguns segundos em meio à brisa fria e aos trovões. Retira com calma a caixa, a abre, e decepa todos os fios, corta, esmaga e a destrói. Ela não vai tocar novamente, não existe a possibilidade. Enfim venceremos o blim-blom noturno.

   Meu tio conduz o objeto para dentro e o seguimos, ele a joga sob uma mureta de nossa varanda, e por fim, o cheque-mate.

   Ele dispara com sua espingarda. Estilhaços voam pela varanda e muitos deles caem no terreno sendo molhado. Sobram alguns pedaços em nossa frente.

   Jamais me esquecerei daquelas frases. O velho militar colocou a espingarda no ombro e se virou.

   Quero ver esta filha da puta tocar agora.

   Um relâmpago reluzente dançou pelo céu, as luzes se apagaram imediatamente e o novo blim-blom foi a última coisa que ouvimos naquela noite.

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