Margarida Radioativa
Essa história não se compromete em representar exatamente os fatos reais sobre Chernobyl, trata-se apenas de uma ficção.
✴️
- Inácio? Inácio! - Meu amigo bateu na mesa de madeira escura do meu escritório com força, fazendo-me deixar cair o cigarro no chão pelo susto. Eu estava prestes a acendê-lo, sequer tinha notado que ele havia aberto a porta.
- Ei! Você me atrapalhou! - Levei um olhar de descontentamento e raiva a Rui enquanto pegava o objeto do chão. Dei um leve sopro em sua ponta. - Cinco segundos no chão, intacto!
Meu amigo revirou os olhos e se jogou na cadeira de couro da minha sala, ajeitando o terno marrom e desafrouxando a gravata. O cabelo acobreado estava já um pouco caótico pela brilhantina barata que não se sustentava até o fim do dia.
- Você precisa tirar esse bigode, já passou da moda. - falei tentando esconder o riso enquanto tentava acender o cigarro novamente, desta vez obtendo êxito. Rui gargalhou, balançando os ombros e passando dois dedos pela região do rosto.
- Marlene gosta, e o que não fazemos pelas mulheres, não é? E quanto a você? Já superou a ida de Margarida?
- Ela sempre será minha filha, e você fala como se ela nunca mais voltasse para casa. Ela está lá para adquirir conhecimento e voltará em breve.
- Não sei não, meu caro. Com esse Plano Cruzado em vigor, ela verá que a Ucrânia está muito melhor que o Brasil e não voltará tão cedo...
- Também não é assim, está bem? - Tirei o cigarro da boca, segurando-o entre os dedos com o cotovelo apoiado na mesa. Rui colocou as mãos na nuca e manteve as pernas cruzadas, em uma posição descontraída.
Olhei para a janela que ocupava boa parte do meu escritório de advocacia, com os olhos apertados para suportar a claridade que entrava com força graças àquele Sol da tarde.
- Vamos lá, Inácio.
Rui me despertou do meu devaneio de dois segundos.
- Vamos ser sinceros, está bem? Margarida é mulher. Acha mesmo que ela ficaria lá por muito tempo?
- E o que quer dizer com isso?! - Ergui os ombros, claramente desconfortável e com os olhos semicerrados o encarando. - Que ela não é capaz de trabalhar lá?
- Acalme-se! Não era isso que eu queria dizer! Margarida é muito capaz, sim! Mas, nesse mundo das ciências... Nem sempre ela irá receber oportunidades. Foi uma grande conquista que ela tenha ido para a Ucrânia, então ela precisa aproveitar o máximo possível. Não espere que seu retorno seja breve.
Considerei o comentário de meu amigo. De fato, eu não poderia ser contrário à vontade de minha filha caso ela quisesse continuar na Europa em um emprego que a reconhecesse, seria melhor para ela.
- Tem razão, grande Rui. Tem razão.
Relaxei os ombros, retornando o cigarro à boca e segurando-o pelos lábios enquanto eu tirava meu paletó azul marinho.
- Pois então, já que está aqui, vamos sair para beber alguma coisa!
- E o seu trabalho?
- Está vendo algum cliente? Ninguém quer tratar com advogados na sexta-feira, sua visita foi bem vinda em boa hora! - falei levantando-me de minha cadeira de couro e me direcionei até às persianas, fechando-as para barrar a passagem do Sol.
- Pois me parece uma boa ideia!
Rui também se levantou e saímos da sala, passei o tranco pela porta de meu escritório e começamos a descer as escadas do pequeno prédio comercial no qual eu trabalhava no centro do Rio.
Jorge, o porteiro do prédio, estava em sua mesa habitual ouvindo o jornal pela pequena televisão de tubo de 14 polegadas, lendo o impresso diário. Na capa, havia uma notícia de folha inteira sobre as expectativas do Plano Cruzado.
- Volto segunda, Jorge!
- Senhor Inácio! Senhor Rui! Inté!
Ele esticou a mão enrugada e russa para nós em um aceno de despedida, balançando a cabeça em um cumprimento e voltando a olhar a folha de jornal, enquanto a televisão transmitia outra notícia.
"O Presidente José Sarney passou por uma comitiva de imprensa hoje para discutir os possíveis impactos..."
- Que grande inferno, não aguento mais ouvir esse nome. - Rui resmungou baixo ao ouvir o barulho da televisão de Jorge, porém não pudemos ouvir o desenrolar da reportagem por termos nos distanciado demais da origem do som.
- Tenha fé, amigo, minha esposa gosta dele.
- Carlita não entende de economia, já viu alguma mulher entender?
- Margarida entende.
Falei com um sorriso de lado para Rui, olhando-o de perfil. Ele apenas riu cabisbaixo. Dei uma nova tragada no cigarro com a outra mão no bolso da calça enquanto caminhávamos pela calçada.
- Você não vai parar de fumar? Já falaram que faz mal.
- Os médicos falam muitas coisas. - Tirei o cigarro da boca e entreabri os lábios para que a fumaça se soltasse lentamente. - Sabe, eu sinto falta de Margarida.
- Eu imagino... Mas o recesso do meio do ano está chegando e ela virá, não se preocupe. Quer ir ao Pub do Jones ou o bar do Zé?
- Preciso de algo mais descontraído e um pouco de furdúncio, então...
Falei com um sorriso que os muito observadores diriam estar carregado de malícia, mas sorrir assim era apenas um hábito meu. Rui, então, colocou sua mão em meu ombro, dando um tapinha leve.
- Ao bar do Zé, então!
💛
Assim que viramos a rua, deparamo-nos com o estabelecimento que cheirava a cerveja e cigarro barato. A televisão presa à parede mostrava as reprises de gols durante um programa de esportes e um grupo de três homens com mais idade jogavam sinuca no centro do bar.
As bolas chocando-se entre si e caindo nas caçapas misturavam-se ao barulho do vidro dos copos de cerveja batendo nas mesas de plástico. Somado a isso, as falas acaloradas e risadas dos clientes do bar deixavam o ambiente quente, barulhento e apertado, porém estranhamente confortável para mim.
- Grande Zé! - Rui avistou o proprietário do bar ao longe e Seu José deu um sorriso, revelando a ausência de um de seus dentes superiores na frente.
- Fala aí, meus camaradas! Vocês vêm todo engomados pro meu bar, precisam disso tudo não!
- Eu saí direto do serviço, Zé. - falei de forma amistosa enquanto eu e Rui nos sentávamos em uma das mesas perto da televisão. José se aproximou com o típico pano de prato no ombro que ele sempre carregava.
- Devem querer o de sempre, então?
- Isso aí! - Rui piscou e ajeitou a calça ao se sentar, olhando fixamente para a TV. - Esse jogo foi uma merda! Eu vi!
Meu amigo apontou para a TV mostrando um Gol do Flamengo contra o Fluminense. Rui era flamenguista e o time perdeu aquela partida, então não era de se espantar que ele reclamasse.
José chegou com dois copos de vidro e uma Brahma.
- Ô Zé, mas me conta! - Rui falou num tom de voz mais alto para ser ouvido ali dentro, enquanto enchia ambos os copos. - E as cervejas artesanais? Vão chegar aqui?
- Eu nem quero saber dessas coisas, já que perguntou! Prefiro é a minha Antarctica!
O rosto redondo de José se avermelhou um pouco, Rui sabia que o velho não gostava daquele assunto, odiava cervejas artesanais.
- Não faça isso com ele... Sei que só faz pra provocar.
Falei com a cabeça esticada para Rui e a voz mais baixa para que só ele ouvisse minha fala. Ele deu de ombros e levantou uma das sobrancelhas, dando um gole em seu copo.
As horas se passavam e o céu já estava totalmente escuro em sua negritude azul. Carlita sabia que toda sexta-feira eu e Rui íamos ao bar sem hora para voltarmos, e às vezes sua esposa, Marlene, programava algo juntas também. Não era algo que me importava, tínhamos nossa privacidade.
Eu já havia perdido as contas de quantas vezes José trocou nossa garrafa, fiz amizade com o Geraldo da sinuca e apostamos uma pinga no jogo. Eu ganhei e ele me pagou uma, Rui continuava sentado bebendo e sua gargalhada era alta.
A noite dava lugar à madrugada, porém era sexta-feira e estávamos longe de terminar o happy hour. Até José havia entrado no clima e bebia conosco.
A voz dos protagonistas do filme aleatório que passava na TV constantemente ligada foi substituída por outra, despertando alguns curiosos a olhar para a tela na parede, inclusive eu.
"Tivemos que interromper a programação para comunicar a respeito do que parece ser o maior acidente nuclear da história..."
- Acidente?!
José falou em voz alta em nossa mesa, fazendo todos no bar se concentrarem na notícia.
"O reator 4 da Usina de Chernobyl sofreu, já há algumas horas, uma grande explosão, e a cidade será evacuada, o governo afirma que não há motivo para pânico e está desmentindo algumas informações, não é possível que nenhum repórter se aproxime no momento..."
- Tá vendo só! A tecnologia acaba com o ser humano!
Olhei confuso para um senhor perto de mim, sentado em uma das mesas e gesticulando irritado para a tela da TV. Me voltei novamente à notícia, tentando associar o nome Chernobyl a alguma coisa que eu já tinha ouvido falar e não me recordava, o álcool havia diminuído meu raciocínio.
- Merda...
A voz de Rui saiu rouca. Ele já havia entendido. Continuei encarando a televisão e um estranho desconforto surgiu em meu peito, eu começava a me lembrar.
Chernobyl.
Chernobyl.
Usina nuclear de Chernobyl.
Ucrânia.
Margarida.
- Inácio...
Senti a mão de Rui e seus dedos apertando meu ombro, mas eu não consegui reagir ao seu chamado.
- Senhor Inácio? Está tudo...
Ouvi José falando e sendo interrompido por Rui. Talvez meu amigo fosse explicar a situação, eu não sabia. Eu não sabia de mais nada.
"Toda a cidade está sendo evacuada, ainda não há sinal de nenhum funcionário vivo dentro do reator 4, mas manteremos a população informada."
- Inácio.
A voz de Rui saiu trêmula, ele estava tentando manter a calma mas parecia falhar. Eu apenas me sentia petrificado.
- Inácio, a Margarida não estava no reator 4, não é?
Senti que meu amigo queria chorar por mim. Minha filha já havia me mandado fotos do reator em que trabalhava por cartas e era o mesmo, no mesmo lugar.
- Inácio, fale comigo, irmão.
Pela primeira vez, vi meu amigo chorar. José também sentiu minha dor e apertou meus ombros com carinho. Eu não tinha reação, não sentia o sangue se esvaindo do meu corpo, eu deveria estar cadavérico.
- Carlita.
Foi a única coisa que consegui falar antes de me levantar às pressas e correr noite adentro. Rui e José não me impediram, eles entendiam.
Eu quem não conseguia entender aquela situação.
Margarida não morreu, ela estaria comigo em breve no recesso.
Ela poderia não estar dentro da usina naquele momento.
Corri no paralelepípedo das ruas do Centro, as pedras de maior relevo machucavam meu pé mesmo com o sapato, mas eu precisava chegar em casa e falar com Carlita.
Após virar duas ruas eu já me encontrava na porta de casa, a rua estava deserta e com uma fraca luz de um único poste funcionando. Com as mãos trêmulas, consegui tirar a chave do paletó e abrir a porta, gritando por minha esposa assim que entrei na sala de estar.
Carlita dormia, descobri isso ao vê-la de robe e o cabelo moreno bagunçado para o alto, além dos olhos inchados.
- Nossa Senhora da Aparecida! Já te disse pra não fazer barulho quando chegasse!
- É M-Margarida!
Os olhos verdes de Carlita se arregalaram ao me ouvir pronunciar o nome de nossa filha com dificuldade, eu já estava do outro lado do cômodo ligando a TV e, como suspeitava, estavam fazendo a cobertura do acidente.
O que se seguiu após isso foi o pior cenário que eu poderia imaginar.
💛
O telefone de casa tocou.
Carlita correu até à mesa de centro e retirou o aparelho vermelho brilhante, encostando-o no ouvido. Meu peito arfava sentado no sofá, desconfortável, e minha respiração saía pela boca. Minha esposa respondeu a algumas perguntas para a telefonista, antes de dar início à ligação de fato.
- Alô? Sim? Sim, é a residência dos pais dela... Sim, Carlita de Carvalho...
Saí do sofá e me agachei para abraçar minha esposa, que caiu em prantos no tapete da sala ao ouvir pelo telefone o que eu já sabia, mas não aceitava.
Não sabia por quantas horas seguimos daquela forma. Eu tentava conter as lágrimas para mostrar força em nome de Carlita, mas eu também era fraco.
Abracei com força seu corpo contra o meu e beijei sua testa, inevitavelmente algumas lágrimas rolaram e molharam sua pele, tentei enxugá-las com a mão mas eu não conseguia parar de tremer.
Minha Margarida estava aqui, eu queria acreditar que aquilo tudo era um engano e ela não estava naquele reator, mas a informação que recebemos é que o seu plantão de vigilância ocorria naquele momento e que a preocupação principal das autoridades era conter a radiação, os trabalhadores na hora da explosão já haviam sido dados como mortos.
Margarida era nossa única filha, a nossa felicidade. Foi doloroso aceitar sua partida e eu nem poderia estar lá para dar adeus a ela. Nós não tínhamos sequer um corpo.
Os dias se seguiram cinza. O aperto em meu peito não passava. Carlita se refugiou em nosso quarto e não saía da cama. Não houve enterro, apenas um velório simples, aquilo não chegava perto do que minha filha merecia.
Passei a viver na poltrona da sala, olhando para a janela. O mundo parecia alheio à minha dor, ao meu luto. Eu não queria comer e Carlita também não. Com esforço, ela se levantava algumas vezes para se alimentar e me dar alguma bebida. Era a única coisa que eu conseguia consumir no momento, a garganta doía pelo choro constantemente preso, seria impossível tentar mastigar algo.
Cada dia que se passava era como um aviso do tempo de que eu iria morrer afogado no meu próprio sofrimento.
O telefone tocou.
Estiquei o braço com dificuldade para alcançá-lo e tirei do gancho, colocando sem qualquer entusiasmo em minha orelha.
- Alô.
- Inácio? Graças a Deus! Eu nunca conseguia falar com você! Esqueceu de mim? Sou eu! Rui!
Respirei fundo. Eu estava ignorando meu melhor amigo desde aquele dia e não era justo fazer isso, eu apenas não queria ter minha dor presenciada.
- Ei, eu sinto falta das nossas saídas. Espero que... Er... Você saia dessa. Margarida não gostaria de te ver assim, você era um grande pai. Pode contar comigo sempre.
- Obrigado.
Tentei assimilar as palavras de Rui, mas a tristeza ofuscava minha mente como uma neblina grossa.
- Ei, e mais uma coisa... Eu sei que foi algo terrível... Mas você ainda está vivo! E o mundo está girando lá fora, amanhã vai ser outro dia... Não desperdice sua vida.
Respirei fundo novamente.
- Amanhã vai ser outro dia dia.
- Isso, e você ainda irá viver dias muito bons, aproveite a vida com sua esposa e... Façam valer a pena.
- Obrigado, amigo.
- Não há o que agradecer, já disse e repito, pode contar comigo.
Rui se despediu e a ligação voltou ao seu bip costumeiro quando a chamada caía. Coloquei o telefone novamente no gancho e tive uma pequena ideia.
Estiquei-me para o outro lado da poltrona em direção ao meu velho vinil. Abaixo dele, minha coleção. Ainda com os olhos marejados, retirei meu disco do Chico Buarque e o ajeitei no aparelho.
Voltei a me esticar na poltrona, não sem antes pegar o maço de cigarro e o isqueiro que estava ao lado. Retirei um avulso e o acendi, enquanto a melodia de Chico invadia toda a sala, causando-me um misto de saudosismo, tristeza e conforto.
"Amanhã vai ser outro dia...
Amanhã vai ser outro dia...
Amanhã vai ser outro dia..."
Inácio de Carvalho, Abril de 1986
💛
Mas oh! Nao se esquecam
Da Margarida, da Margarida
Da Margarida de Chernobyl
A Margarida hereditária
A Margarida Radioativa
Estúpida e inválida
A Margarida com cirrose
A anti-margarida atômica
Sem cor, sem perfume
Sem Inácio, sem nada
(Versão Original: A Rosa de Hiroshima)
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top