O Velório - Parte II
Jorge empertigou-se:
— Não! Assim já é demais. Seja o que for, vamos terminar com esta história já! Que ninguém saia desta sala!
O rapaz gordo-fumante soltou uma gargalhada:
— O que é? Acha que alguém enfiou o Robson no bolso?
Seu acompanhante uniu-se a ele nos risos. O casal, no entanto, permanecia sério. Jorge retomou a palavra, em tom autoritário:
— Se ele estiver no bolso de alguém, vamos descobrir. Bruno, feche a porta de entrada, por favor, e vamos todos conversar.
Bruno fez o que Jorge pediu e logo se juntou aos demais.
Jorge apresentou-se:
— Eu sou Jorge Fontana e este é meu sócio, Bruno. A nossa empresa irá cuidar do divórcio de Robson. E vocês, quem são?
Um a um, foram-se apresentando. O casal era dono de uma loja de antiguidades, que tinha Robson como cliente e amigo há algum tempo. O gordo era contador e o outro, seu sócio. A empresa deles fazia a contabilidade da firma de Robson.
— Então estamos aqui em seis pessoas, todos empresários com um cliente em comum, Robson Guedes! O contador pareceu ter um lampejo:
— Ei, Jorge Fontana... Você não é o tal que andou ajudando a polícia a desvendar aquele crime do bicheiro que foi assassinado?
— Sim, sou eu mesmo.
— Ora, então ninguém melhor que você para elucidar o que está acontecendo aqui.
A dona da loja de antiguidades discordou:
— Ah, eu não concordo. Aquilo ali foi um puro golpe de sorte. Eu acompanhei este caso pelos jornais. Você se intrometeu onde não foi chamado, isso sim. Atrapalhou o delegado do caso, como em outras vezes. Como era mesmo o nome dele?
— Basílio. Basílio de Almeida. Mas isto não vem ao caso agora. Respeito a opinião de vocês e, na verdade, pouco me importa o que vocês pensam a respeito. Temos um problema nas mãos, um problema em comum, que tem de ser solucionado.
A antiquária rebateu:
— E mais uma vez você se julga no direito de se intrometer, como um verdadeiro Sherlock. Eu não aceito me submeter às suas ordens, nem que o senhor mande seu amigo aí, trancar as portas. Onde já se viu? Vamos já chamar a polícia!
O marido dela, de forma ponderada, procurou contornar a situação:
— Meu bem, deixe primeiro ele falar o que quer, se é que tem algo importante a dizer. Continue, Jorge.
— Obrigado. De fato, devemos sim chamar a polícia e sua esposa tem razão, porém, gostaria antes de trocar algumas ideias. Alguém mais se opõe a isto? Não? Então, ok! Bom, todos fomos chamados aqui através de um inesperado telegrama, nos convidando para um velório em uma residência, onde só estão seis pessoas, além de dois criados, sendo que nem a família do morto se dignou aparecer. Quem, em sã consciência, faria algo assim, senão para brincar conosco? Pois que tudo isto não passa de uma brincadeira, a julgar pela profissão do morto, que todos bem conhecemos.
— Mas ele estava morto! — gritou o gordo.
Jorge:
— Estava mesmo? Alguém tocou nele?
A resposta em coro foi: "Não".
— Portanto, como podemos afirmar que ele estava morto?
A antiquária estava impaciente:
— O senhor e suas ideias. Mas, se ele não estava morto, estava o quê? Dormindo? E quem o carregou daqui?
Jorge olhou-a com ar de desdém, rebatendo:
— Eu diria que ele não estava morto, muito menos dormindo. Estava consciente o tempo todo, porém, de olhos cerrados. Um verdadeiro artista, simulando estar morto. Imóvel, incólume, impassível. De tirar o chapéu, sem dúvida, pela frieza. Alguém, inclusive, corajoso o suficiente para imaginar que nenhum de nós o tocaria. As pessoas dificilmente têm coragem para tocar um cadáver, ainda mais o cadáver de alguém praticamente estranho. Qual de nós o tocaria?
O sócio do contador gordo manifestou-se pela primeira vez:
— Então o senhor quer dizer que ele estava acordado o tempo todo, só com os olhos fechados, torcendo para que ninguém o tocasse?
— Isso mesmo!
— Mas, se é assim, como respirava, se o nariz estava cheio de algodão?
O gordo corroborou:
— Isso! E nem havia movimento de respiração.
Jorge manteve a tranquilidade:
— Belas observações. Mas me ocorreu isto e posso lhes dar uma resposta convincente.
Bruno perguntava-se quando o amigo tivera oportunidade de pensar sobre o assunto, em tão pouco tempo, mas conhecia o raciocínio rápido dele.
— Pois então diga! — esbravejou a antiquária.
— Ora, meus caros. A luz estava fraca, o corpo praticamente coberto por flores, como poderíamos ver qualquer movimento respiratório e com o sujeito respirando muito lentamente?
— Mas e o algodão no nariz?
— Bruno, Bruno. Eu bem disse haver algo estranho com o rosto dele. Obviamente que o rosto de uma pessoa pode se mostrar muito diferente após o óbito, por razões diversas, e isto, por si só, não deveria nos causar estranheza. Mas, seria este o caso dele, sendo a causa da morte nada além de um infarto fulminante ocorrido há poucas horas? A mim, ele esteve vivo o tempo todo, respirando através de algum dispositivo, ligado à sua boca e conectado em outro ponto, um pequeno duto de ar, escondido sob uma máscara facial, imitando a boca fechada. E o nariz com algodão, nada mais do que parte da máscara, para nos dar a falsa impressão de morte.
A mulher das antiguidades não se aguentou:
— Há, há, há! Como o senhor é criativo. Há, há, há!
— E ainda há a questão das flores e do peso do corpo.
Ela surpreendeu-se:
— Como assim?
— Sim, pois quantas pessoas a senhora imagina seriam necessárias para tirar tão rapidamente aquele corpo daqui? Pelo menos três. E quem seriam estas pessoas e como conseguiriam este feito tão rápido? Muito mais fácil imaginar, portanto, que ele se ergueu, sozinho, e saiu andando com as próprias pernas. É o que as flores parecem demonstrar. Vejam que há maior concentração delas nos pés do caixão, denotando claramente que ele se levantou, assim elas se juntaram na ponta da urna. E o rastro que as mesmas formam diretamente para aquele corredor, mostram que ele saiu andando. Algumas flores, presas à roupa, foram caindo no caminho. Repito, não podemos nos esquecer da profissão de nosso anfitrião.
— Um mágico! — lembrou o sócio do gordo.
Jorge arrematou:
— Melhor. Um ilusionista, acostumado a ocultar o que quiser, acostumado a fazer ver exatamente aquilo que quiser que se veja. E, geralmente, a explicação para a ilusão é sempre bem mais simples do que imaginamos. Ele se levantou desta urna bem diante dos olhos deste casal que, pelo fato da casa ficar sem luz, as cortinas fechadas, ficaram cegos momentaneamente, devido às pupilas não dilatadas.
Fazia sentido, naturalmente, por mais absurdo que pudesse parecer. Todavia, tudo já era mesmo um grande e fantasioso absurdo, desde o começo, que somente um truque de ilusionismo poderia explicar.
— Um show de ilusionismo, meus caros. Mas, mesmo assim, um mágico precisa de assistentes, afinal, alguém teria de desligar o disjuntor das luzes!
— O mordomo-assistente!
— Claro, Bruno. Talvez a copeira seja inocente, mas ao menos uma pessoa deveria saber do truque. Primeiro, para apagar e reacender as luzes, dando a oportunidade da fuga. Segundo, para compactuar com a farsa, atendendo aos eventuais telefonemas que fizéssemos e, posteriormente, nos recebendo aqui. Ainda que haja um mecanismo qualquer no caixão, com o qual o próprio Robson desligou a luz e, ainda, mesmo que ele próprio tenha enviado os telegramas, como montaria todo este cenário, fingindo estar morto, sem a ajuda do assistente, que ainda teria de garantir a nós ter ele sofrido um infarto? Por falar nisso, onde estão o mordomo e a copeira?
Em vão procuraram os dois serviçais, que haviam-se escafedido, ao que concluíram que a copeira também deveria ser cúmplice.
— Vejamos o que há no final do corredor debaixo da escada, para onde seguem as flores.
Havia duas portas laterais, uma de cada lado, dando para dois quartos. Uma delas estava trancada.
— Vamos arrombar esta porta!
•
A porta foi arrombada com dificuldade, mas, ao ser aberta, a luz sendo acesa, depararam-se com algo totalmente inesperado. Robson caído no chão, com um pano sobre o rosto e uma faca cravada no abdômen. Jorge correu em sua direção, examinando-o rapidamente.
— Eu tinha razão! Ele estava vivo!
— E agora?
— Agora está morto!
— Mas quem? E por quê?
Jorge levantou-se, passando a mão nas costas, devido a alguma dor lombar que sentira pelo tempo agachado:
— O porquê... Ai... Eu não sei! Agora, quem, eu arrisco dizer, o mordomo e a copeira, claro! Afinal, nenhum de nós poderia ter feito isto. Estivemos o tempo todo juntos, naquela sala. E o crime ocorreu aqui, não há sangue na sala.
— Você realmente observou isso ou está chutando?
— Observei. Se houvesse sangue, não haveria como não termos visto.
Verificaram e não havia mesmo sangue na sala, nem como Robson ter sido morto em outro local que não aquele quarto.
Bruno perguntou:
— E agora?
— Agora chegou a hora de chamar a polícia. Que ninguém mexa em mais nada.
Jorge ligou para o delegado Basílio, seu amigo. Alguns dias depois, com a prisão do mordomo e da copeira, que tentavam fugir do país, tudo ficou esclarecido.
Robson e os dois cúmplices haviam roubado de um museu, há dez anos, um notável diamante, que se encontrava em exposição em passagem pelo Brasil. Haviam escondido o diamante em uma estatueta de gesso, perdida acidentalmente e que finalmente fora localizada na loja de antiguidades. Mas a estatueta não estava à venda. Assim, tinham armado toda aquela cena, valendo-se dos truques de ilusionismo, arte com a qual ganhavam a vida. Imaginavam que, enquanto estivessem todos ali, tentando decifrar aquele mistério, que teriam tempo de roubar a estatueta e fugir. Assim, convidaram para o velório os donos do antiquário, bem como Jorge Fontana, que fora contratado para cuidar de um falso divórcio. Sabiam que ele, sempre dado a detetive, iria segurar os donos da loja por um bom tempo ali e que, até que descobrissem o roubo, eles estariam bem longe.
Porém, quando Robson entrou no quarto, depois de ter saído do caixão, quarto este onde havia uma saída para os fundos da casa e por onde pretendiam fugir sem serem vistos, foi surpreendido pelo assistente, que o segurou, tampando-lhe a boca, enquanto a falsa copeira o esfaqueava.
Com a morte de Robson, os dois comparsas restantes pretendiam fugir com o diamante para a Argentina, onde já havia um comprador para o maravilhoso objeto. Felizmente o delegado Basílio agiu a tempo, mesmo Jorge Fontana tendo perdido um tempo precioso com suas deduções, que embora preciosas, quase haviam permitido a fuga dos bandidos.
Fim.
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