O Operador

          Levava uma vida que considerava miserável. Evidentemente, não olhava sequer para os lados, que dirá para trás, numa atitude amplamente egocentrista, como se só ele tivesse problemas e como se seus problemas fossem os maiores do mundo. Mas sua vida, mesmo assim, não era fácil.

          Levantava cedo, tomava ônibus, metrô e trem, todos lotados. Ainda, após duas horas em condução coletiva, mais quinze minutos a pé, alcançava enfim o emprego, cujo salário mal dava para pagar a faculdade.

          Vida estafante. À noite, a faculdade de administração. Voltava para casa por volta de 00h30. Às 6h00, já estava de pé novamente. Dia após dia, noite após noite.

          E sua função, operador de telemarketing, um sacrifício. Impropérios, xingamentos, disparates, ofensas, tudo ele aguentava dos clientes, em nome da boa educação, da forçosa e desgastante educação que o cargo exigia.

          Às vezes falava, falava, por minutos seguidos, a pessoa escutava, escutava, e, ao fim, mesmo educadamente, o cliente dizia não estar interessado. Era como um tapa com luva de pelica. Alguns, provavelmente, até deixavam o telefone de lado, numa tortura silenciosa, num triste monólogo. Inúmeras vezes pegara-se falando sozinho.

          Não bastasse a árdua luta pela conquista dos clientes, aos quais tinham de buscar com avidez, havia o mau humor do coordenador, que era o primeiro a chegar, observando e anotando todos os passos dos operadores. Por vezes o coordenador chamava um deles à sala, principalmente em caso de atraso no horário de chegada. Sempre que alguém era chamado, sabia-se que haveria bronca.

          Naquele dia tudo começara mal. Chovia torrencialmente quando saiu, já atrasado, para pegar o ônibus. Lotado. O metrô, aos solavancos dentro dos túneis, cujas desculpas do condutor eram a chuva e os problemas técnicos. Ele, amarrotado, situação que se repetiria dentro do trem. Quando finalmente chegou à via pública, desceu e percorreu os quinze minutos até o prédio da empresa. A chuva ainda castigava, o guarda-chuva não dera conta. Chegou ao serviço com os pés molhados, dez minutos após o início do expediente. Sentou-se e ligou o computador. Alguém lhe dissera um bom dia, meio abafado, mas ele nem ouvira, nem sequer olhara para o lado. Enquanto via o microcomputador iniciar-se, o telefone tocou. Era o coordenador. E lá foi ele, à sala do famigerado, onde escutou, calado, mais um sermão:

          — Será a última vez, hein? Na próxima te ponho na rua! E suas metas, então? Nem o mínimo de adesões você tem conseguido.

          Voltou ao computador, injuriado. Mas o pior ainda estaria por vir.

          O dia passou lentamente. Além de não vender nada o dia inteiro, sua última ligação fora para um sujeito que já dispensara outras duas ligações, de operadores tentando, segundo classificara, empurrarem-lhe cartões de crédito. As duas conversas que antecederam a última e derradeira ligação para aquele cliente, haviam-se dado assim:

          — Bom dia!

          — Bom dia...

          — A senhora Maria de Lurdes está?

          Estava. O cliente, já imaginando do que se tratava, procurou descartar logo a ligação. Raciocinou que, pelo fato da linha telefônica estar no nome da mulher, por isso é que a ela buscavam.

          — Não. Não está. Mas quem quer falar?

          — A que horas podemos retornar a ligação?

          Mais uma vez mentiu:

          — Ela está viajando. Mas podem falar comigo mesmo. Do que se trata?

          — Infelizmente só podemos falar como ela.

          — Bom, neste caso liguem daqui a um mês. É quando ela volta.

          — A Sofistcard agradece. Até logo.

          Colocou o fone no gancho.

          — Malditos vendedores de cartão de crédito! Será que não tem o que fazer não?

          O cliente, no entanto, não levava em conta que, do outro lado da linha, encontravam-se pessoas que talvez não gostassem de estar ali, fazendo aquele trabalho, aturando pessoas como ele, e que talvez o fizessem apenas pela necessidade do chorado salário do final do mês. Era tão bom quando alguém, mesmo não se interessando, demonstrava educação e cordialidade. Era uma vibração positiva que enchia os operadores de vitalidade. No fundo, todos, operadores e clientes, eram vítimas de um sistema extremamente capitalista e desumano, puramente comercial, onde os interesses financeiros sobrepujavam a qualquer interesse pessoal ou particular.

          À tarde, o telefone tocou novamente.

          — Pronto!

          — Boa tarde! A senhora Maria de Lurdes está?

          — Não, não está! Mas que raios, já é a segunda vez que vocês me ligam hoje. Já não disse que ela está viajando?

          O operador postara-se impassível:

          — Poderia nos dar o dia da volta dela, para retornarmos esta ligação?

          — Já não disse que ela volta daqui a um mês? Aliás, por que não falam comigo mesmo?

          — Porque temos orientação de falar apenas com a senhora Maria de Lurdes, por ser ela a assinante desta linha telefônica.

          — Grande bosta! Pois sou eu quem paga esta merda de conta. O fato da linha estar no nome dela não quer dizer nada. Aliás, tenho procuração em cartório, assinada por ela, para falar em seu nome. Ou a certidão de casamento não vale nada?

          — Desculpe-me, senhor, mas só podemos falar com a senhora Maria de Lurdes. A Sofistcard agradece. Tenha um bom dia.

          — Ah, vão para o raio que os parta!

          E assim haviam sido as ligações dos dois primeiros operadores da Sofistcard ao nervoso marido de Maria de Lurdes. Mas ele também tinha seus motivos para estar irado. Trabalhava em casa, de domingo a domingo. Cumpria prazos, mas nunca conseguia receber os serviços de uma forma digna. Encontrava-se cheio de dívidas. Mas que isto justificasse sua grosseria, nunca a abonaria.

          Foi então que veio a terceira ligação. O rapaz "integração", como era chamado pelos colegas de serviço, por causa do ônibus, metrô e trem, já exaurido, ao fim do dia, perguntou:

          — Boa noite! A senhora Maria de Lurdes, por favor?

          — Ah, assim não é possível! Vocês não têm o que fazer, não? Pois eu tenho! Quantas vezes vou ter de dizer que ela não está?

          — A que horas posso retornar a ligação?

          — A hora nenhuma! Se vocês me ligarem novamente, vou tomar alguma providência. Eu não quero porra nenhuma de cartão, a minha mulher também não. Vão empurrar cartão pra algum trouxa. Pra mim não!

           — Senhor, estou apenas fazendo o meu trabalho. A Sofistcard...

           — Eu quero que você e a Sofistcard vão para o raio que os parta.

           — Mas senhor...

           — Vão você e esta merda de cartão para a puta que o pariu, está entendendo?

           — Senhor, para sua segurança, esta ligação esta sendo gravada...

           — Segurança? Segurança de quê? Só se for para a sua segurança, caso eu resolva ir aí e lhe dar um murro no meio das fuças. Quer saber de uma coisa? Vão a merda, todos vocês!

           — A Sofistcard agradece.

           — Ah, vá pro inferno!

           — A Sofistcard agradece mais uma vez. Tenha um bom dia!

           O rapaz integração não suportou. Foi a gota-d'água. Largou tudo, os fones de ouvido, o computador, a mesa... Levantou-se e foi embora, sem despedir-se, sem dar satisfações. Diante de todos os palavrões, ainda era obrigado a agradecer.

            Uma ideia fixa e malévola apossou-se de sua mente. Havia aquela arma, que seu pai guardava em casa. Foi embora, direto para um bar, onde se embebedou para tomar coragem. Já sabia o que fazer. Tinha que dar um fim a tudo aquilo.

            No dia seguinte, consultou a internet, em busca de um endereço. Encontrou-o facilmente, com base no número do telefone e do nome do assinante. Depois, verificou qual condução o levaria até o local. Algumas horas mais tarde, apertava a campainha de uma casa térrea, num bairro distante. Um homem atendeu:

          — Pois não?

          — A senhora Maria de Lurdes está?

          — Ah, eu não acredito. Até no portão? Não vá me dizer que você é da Sofistcard!

          — Sou, sim!

          — Pois eu vou repetir pela última vez. A senhora Maria de Lurdes não está, está me entendendo?

          — O senhor é o marido dela?

          — Sou. Por quê?

          O homem nem viu de onde surgiu o revólver nas mãos do rapaz. A arma brilhou na luz do sol.

          — Ei! O que é isso! Cuidado com isso, rapaz!

          — Ah, agora está sendo educado, não é? Por que não foi educado ontem, quando eu queria falar com sua mulher?

          — Ontem?

          — É! Se esqueceu? Eu sou aquele a quem o senhor mandou à merda, eu e a Sofistcard.

          O homem tremia:

          — Mas... Desculpe... Estava nervoso... Não sabe como minha vida tem sido difícil...

          — E o senhor ao menos se perguntou como está sendo a minha? Ou pensa que sou dono da Sofistcard? Não! Sou apenas um reles funcionário que fica quatro horas por dia dentro de condução lotada para ganhar um mísero salário, tendo ainda que aguentar o dia inteiro pessoas mal-educadas como você.

          — Cuidado, meu jovem. Veja lá o que você vai fazer.

          — O que vou fazer? Vou entrar! Vamos! Vamos até o telefone. Rápido. Estou com pressa! Se fizer qualquer movimento estranho, eu atiro.

          Não entraram na casa. Havia um cômodo lateral que logo o rapaz percebeu tratar-se de um escritório. Os dois entraram. A porta foi trancada por ele, que ainda tirou de uma sacola um aparelho telefônico equipado com viva-voz.

          — Vamos! Troque seu aparelho por este!

          — Mas, para quê?

          — Não faça perguntas! Troque a merda do aparelho! Agora!

          O homem trocou, rapidamente. Argumentou:

          — Lembre-se, se você me matar, vão saber que foi você. A ligação foi gravada, não foi? Você mesmo disse.

          — Aquilo é conversa fiada. Foi gravada coisa nenhuma. Vamos! Agora você vai ligar. Eu estarei apontando este revólver para você. Deixe a viva-voz ligada. Você irá oferecer cartões de crédito a quem atender. Se a pessoa for mal-educada, puxo o gatilho, certo? Se for bem educada, vou embora e você nunca mais me verá. Torça para que do outro lado não atenda um animal ignorante igual a você!

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