As Rosas Fatais
O homem estava lívido, feito cera. Os cabelos desalinhados. A roupa amarrotada. Gaguejava.
— Acalme-se, por favor. Deem-lhe um copo com água, pelo o amor de Deus!
Ele tomou-o, sem piedade. Engasgou-se. A escrivã adiantou- se, batendo-lhe nas costas:
— São Brás! — soltou automaticamente.
O delegado, que se detivera ali quase que por acaso, a caminho de sua sala, ao ouvir a inusitada declaração daquele homem, encorajou o pobre, que de pobre não tinha nada. Via-se claramente que tinha posses, por suas roupas. E era jovem, forte, atlético. Trinta anos, talvez menos.
— Você poderia repetir o que disse?
No rosto trazia uma expressão de dor. Na mão, uma caixa de sapatos, pequena, que até então passara desapercebida, tal era seu estado de deploração. Abriu-a:
— Veem isso aqui?
Da caixa tirou um botão de rosa vermelho, fechado. Artificial. O delegado irritou-se:
— Mas que diabos! O que significa tudo isso? Quer brincar conosco? Vai repetir o que disse ou não?
O tom de voz chamou a atenção de outros que esperavam a vez, na fila do boletim de ocorrência. Estavam no saguão, junto ao balcão de preenchimento. Intuição ou não, o delegado sentiu haver ali algo de verdadeiro e importante, apesar da aparente maluquice dita pelo sujeito minutos atrás. Por isso, ordenou-lhe:
— Venha comigo, vamos até minha sala.
Chamou a escrivã, para que os acompanhasse. Seguiram por um corredor e entraram à direita em uma sala. Acomodaram-se.
— Como é seu nome?
— Carlos. Carlos Alberto.
— Pois então, Carlos, poderia me explicar o que está acontecendo? Se bobear, sai daqui direto para um manicômio!
— Não sou louco! Apenas estou desesperado! E quero prestar queixa!
— Sim, disso tudo nós já sabemos e já pudemos perceber. Contra quem é a queixa?
— É contra uma mulher.
— E qual é o nome dela?
— Cida.
— Cida? E o sobrenome?
— Não sei!
— E onde ela mora?
— Também não sei!
— Rapaz, não brinque comigo.
— Mas realmente não sei o sobrenome, nem onde ela mora! O que sei é que se chama Cida. Só isso! É por isso que quero prestar queixa, pra que vocês possam ir atrás dela. E prendê-la!
— Mas quem é essa mulher? E o que ela lhe fez?
— Não sei quem ela é!
— Como, não sabe? Olha! Te ponho em cana por desacato! Você só pode ser doido mesmo e eu perdendo tempo aqui!
— Eu posso explicar!
— Então, vamos, explique logo!
— O que sei é que ela é morena, linda, maravilhosa. Cabelos compridos, negros. Lábios carnudos, seios fartos. Um corpo estonteante. Não há quem possa resistir. Ninguém. Ninguém mesmo! Vocês têm que encontrá-la. Agora mesmo, enquanto estamos aqui conversando, deve haver outro, ou até mais de um, quem sabe, talvez dois, três, sei lá. Eles podem estar agora, recebendo pelo correio, uma caixa como esta, com uma rosa vermelha. E com um bilhete, igual a esse.
— Bilhete? Que bilhete?
Tirou-o da caixa, dando-o ao delegado, que o leu. A expressão do homem da lei desanuviou-se. Agora tudo fazia sentido. O estado daquele homem, a rosa, o bilhete, a frase dita lá no saguão. Sua intuição estava certa. Estava diante de um caso sério, muito sério, de consequências e proporções imprevisíveis.
Carlos repetiu novamente, ainda para espanto da escrivã, mas não mais para o do delegado:
— Entende agora por que eu disse que fui assassinado?
•
Garoava, fenômeno meteorológico típico da cidade de São Paulo. Carlos Alberto entrou na boate quase que sorrateiramente. Não tinha mais o hábito de frequentar tais ambientes, mas naquele dia queria que tudo fosse às favas. Logo cedo, brigara com a namorada. Mais tarde, foi demitido. Deixou o escritório, nem quis saber de falar com ninguém. Quase foi atropelado ao atravessar a rua. Aquele não era mesmo seu dia. Já ouvira uma piada como aquela, na qual um sujeito, depois de um dia como aqueles, onde lhe acontecia de tudo, acabava por beber, por engano, o conteúdo de um copo envenenado de alguém que ia matar- se, antes mesmo que o suicida pudesse avisá-lo. Era só mesmo o que estava faltando.
Ficara a tarde toda vagando pelo centro da cidade. Acabara por parar ali, já tarde da noite, numa rua próxima à avenida Ipiranga, em frente àquela boate. Entrou. Era tarde, para a maioria das pessoas, mas cedo para frequentadores de boates. Estava praticamente vazia, uns e outros espalhados pelo salão. Não era um local de programas, mas local em que se combinavam programas, isto ele deduzia. Dali, os casais saíam para um motel ou hotel de quinta categoria
Mas que era aquilo? Que mulher espantosa! Mediu-a de cima a baixo, morena, linda, linda mesmo! Garota de programa? Não, não parecia. Não vestia roupa decotada ou curta, nem mesmo usava maquiagem chamativa. Mas se não era garota de programa, o que estaria fazendo ali? Tudo estava dando tão errado para ele, que era bem capaz de sair com aquele avião e descobrir depois que se tratava de um homem travestido. Mas que se danasse. Homem ou não, ele iria falar com ela. Ou ele.
— Oi?
— Oi!
Percebeu logo a receptividade dela. Sentou-se ao seu lado e pediu uma bebida. A moça já bebia.
— Como é o seu nome?
— Cida. Mas Cida com "S", viu? Foi um erro no cartório de registros..
— Que importa? Com "c" ou com "s"... Sida... O que importa é que você é muito linda, sabia?
— Sei, sim. Mas essa não é uma cantada muito original.
— É que não é uma cantada. É uma constatação. Inclusive, estou tentando lembrar com qual atriz de novelas você se parece, mas não consigo lembrar de alguém tão bonita quanto você.
— Ah, esta já foi melhor. Acho que você tem chance comigo.
— Por que está aqui? Não parece local para uma moça como você.
— É, realmente não é. Mas você também parece deslocado.
— Estou mesmo. É que tudo deu tão errado pra mim hoje, que resolvi lembrar dos meus dezoito anos. Não parece, mas já tenho trinta. Agora, você tem quanto, vinte e um, vinte e dois?
Ela sorriu:
— Claro que não. Tenho um pouco mais. Mas isso não vem ao caso. Também não vem ao caso o que te trouxe aqui. Deve ser algo parecido com o meu dia. Tudo deu errado pra mim também. Por isso, por que não fazemos tudo terminar bem? Vamos daqui, pra algum lugar mais sossegado.
Quem poderia resistir a um pedido daqueles? Carlos acatou a sugestão, claro, sem pestanejar.
•
Foi uma noite de muito sexo. Até pela manhã. Ela era incrível, maravilhosa. Acabaram por dormir, agarradinhos. Pela manhã, ela levantou-se, ele sonolento, ainda atordoado pelo champanhe da madrugada. Mas tinha a impressão de ter tomado um calmante. Não conseguia levantar-se. Teria a danada colocado algo em sua bebida? Acabou dormindo, vendo o vulto nu através do biombo de vidro, deliciando-se sob o chuveiro.
Quando despertou novamente, dessa vez por completo, viu-se só. A garota não mais estava. Ligou para a portaria. Ela havia saído, a pé, deixando-lhe a conta. Nunca mais a viu. Que coisa estranha!
Alguns dias depois, em sua casa, ainda desempregado, recebeu aquela caixa, aquela maldita caixa, embrulhada em papel vermelho. Não havia remetente. Era anônima. Abriu-a, sem entender.
Tirou de dentro um botão de rosa vermelho, artificial. E um bilhete, que dizia o seguinte:
"Lembra-se de mim, daquela morena com quem passou a noite um dia desses? Pois então! Agora você é um de nós, meu querido. Você e todos aqueles que já dormiram comigo e não usaram camisinha. É por isto que lhe digo, de forma solene, bem vindo ao mundo de Sida, ou seja, Síndrome da Imunodeficiência Adquirida."
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