Futuro neoliberal dos órgãos
O pai olhava atentamente através do vidro para o interior do quarto estéril onde sua filha estava internada. O ambiente era preenchido com uma miríade de máquinas médicas, cujas luzes piscavam e se entrelaçavam com tubos e fios, conectadas ao frágil corpo da menina. Entre monitores cardíacos que exibiam linhas pulsantes e respiradores com ritmos constantes, havia uma cacofonia ordenada de sons, todos meticulosamente sincronizados. Painéis de computadores repletos de números, gráficos e porcentagens, refletiam um estado de saúde que ele não conseguia decifrar. A única certeza que tinha era que a vida de sua filha dependia daquele emaranhado de tecnologia, a menos que conseguisse um coração novo.
— Ah, o valor do órgão nos dias de hoje é uma questão complexa, mas eu estou aqui para guiá-los por esses mares desconhecidos — começou o médico, ajustando o colarinho sob o jaleco branco que usava por baixo de um terno elegante. Seu tom era afável e persuasivo, mais parecido com o de um vendedor de carros de luxo do que com um profissional da saúde. — Compreendo que seja um órgão vital, e, naturalmente, há uma grande demanda. Temos opções para todos os gostos e orçamentos. Há corações mais econômicos, provenientes de indivíduos que talvez não tenham mantido os melhores hábitos de vida, mas que certamente farão o trabalho. E, é claro, temos os corações de alto desempenho, extraídos de doadores jovens e excepcionalmente saudáveis. Esses últimos, admito, vêm com um preço mais elevado, mas a qualidade, meus caros, a qualidade é incomparável!
O pai e a mãe olhavam para os valores listados, com expressões de choque e incredulidade. Alguns corações tinham o preço de uma casa nova, e eles se viram navegando em um mercado que nunca imaginaram existir, guiados por um médico que parecia mais interessado em fechar um negócio do que em confortá-los em seu momento de desespero.
— Querido... Nós não podemos pagar por nada disso, nem pela versão econômica. — sussurrou sua esposa, a voz carregada de desespero. Ele assentiu com tristeza. Mal tinham conseguido pagar para internar a filha. Viviam em um mundo onde tudo era controlado por empresas privadas, e cada serviço tinha seu valor, até mesmo aqueles essenciais para a sobrevivência e dignidade humana.
O pai mirou o médico, com lágrimas brotando nos olhos.
— Será que não haveria um desconto?
O médico negou com a cabeça, ainda mantendo o mesmo sorriso polido.
— Ah, como é uma pena que vocês não tenham internado sua filha no mês passado! — disse ele, seu tom leve e quase brincalhão. — Estávamos com uma promoção especial do Dia das Crianças, oferecendo 15% de desconto em órgãos infantis. Oportunidades como essas não aparecem todo dia!
Então era isso, não podiam pagar pela sobrevivência de sua filha. A mãe soltou um gemido de dor e o pai enxugou uma lágrima com as costas da mão.
— Não fiquem assim — disse o médico, sorrindo ainda mais amplamente. — Vejo que a situação é desagradável, mas não é totalmente sem solução.
Os pais se entreolharam, confusos, afinal, foram informados pelo mesmo médico que sem o transplante não haveria escapatória.
— Vejam estes valores. — falou ele, girando a tela de seu tablet para mostrar outra planilha de orçamento. Os números, repletos de zeros, eram ainda mais altos que o anterior.
— Mas não podemos compr... — começou o pai.
— Ah! Esses não são os valores de compra, mas de venda! — interrompeu o médico, o entusiasmo em sua voz quase contagioso. — Já que não podemos realizar o transplante, que tal considerar uma alternativa prática? Não vamos deixar que o falecimento de sua adorada filha seja em vão, não é mesmo? Se optarem por coletar seus órgãos, este será o valor que vocês adquirirão ao final. Pensem nisso como uma forma de investimento, uma oportunidade inesperada em meio à tragédia.
O pai sentiu-se enojado ao apenas cogitar aquela possibilidade. Preparou-se para responder ao médico, ansioso para expressar seus sentimentos em meio àquela discussão monetária, enquanto sua filha lutava pela vida a apenas alguns metros de distância. Contudo, foi interrompido por sua esposa, que agarrou fortemente seu braço, os olhos arregalados fixos no tablet.
— Querido, poderíamos finalmente comprar a casa que tanto queríamos, naquele condomínio fechado... E um novo carro. Deus sabe o quanto precisamos de um carro. E férias, faz mais de 10 anos que não tiramos férias de verdade.
O pai a encarou estarrecido. Não podia acreditar no que estava ouvindo.
— Neste momento de luto, é fundamental considerar como este dinheiro poderá auxiliá-los a se recuperar. — disse o médico, sua voz repleta de entusiasmo. — E como parte de nossa abordagem integral, o hospital oferece até um desconto em um programa de reprodução assistida! Pensem na oportunidade de um novo começo, com novos sonhos, um novo lar, tudo isso tornando o processo de cura ainda mais significativo.
— Maravilha. — respondeu a mãe, com um tom animado que contrastava com o desespero de momentos antes. — Onde assinamos?
O pai ainda observava tudo aquilo com terror, uma sensação gelada tomando conta de seu ser. Lançou um último olhar para sua filha, e só então percebeu que ela estava consciente, fitando-os com olhos entendidos. Um sorriso leve transpareceu em seus lábios ressecados.
O pai levou a mão à boca, sufocando um grito de pesar que se formava em sua garganta. Seu coração parecia se rasgar, enquanto uma mistura de repulsa, traição e desespero o invadia. Ele se sentia perdido, como se tivesse sido arrancado de sua própria vida e jogado em uma realidade cruel e implacável. A imagem do sorriso de sua filha, frágil e resignada, ficaria gravada em sua memória, um símbolo da perda de sua inocência e humanidade, em um mundo onde até mesmo o amor e a compaixão tinham seu preço.
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