A Simpatia
Ela arrumou uma pequena mesa em sua casa com cuidado e atenção aos detalhes. Cobriu-a com uma toalha limpa, delicadamente estampada com margaridas coloridas. Além disso, cuidadosamente arranjou os copos e talhares sob a mesa, criando uma mesa posta para duas pessoas. Na cabeceira, duas velas foram acesas, trazendo uma atmosfera acolhedora e romântica ao ambiente.
Com todo o carinho, ela começou a servir os pratos típicos nordestinos do período junino. As comidas juninas são uma verdadeira festa para os sentidos, repletas de sabores autênticos e ingredientes que remetem à tradição e cultura. Ela preparou uma seleção de iguarias irresistíveis, que proporcionam uma experiência gastronômica única. Entre os pratos, destacam-se a canjica, o arroz doce e a pamonha.
Tudo estava organizado com cuidado e precisão. Joana tinha feito tudo de acordo com o ritual. No entanto, ela não pretendia comer o que fora servido, nem estava esperando alguém. Na verdade, há muito tempo ela não tinha companhia. Com quase 40 anos, sentia a pressão social para encontrar o que chamam de "alma gêmea". A maioria de suas amigas estava casada, grávida ou já tinha filhos. E Joana? Era considerada a solteirona pela qual todos sentiam pena e fofocavam.
Mas hoje seria diferente. Era véspera de São João, uma data especial, e o momento ideal para colocar em prática uma antiga tradição de adivinhação. Segundo suas pesquisas e relatos das anciãs de sua família, quando Joana fosse dormir, ela teria um sonho revelador sobre o homem com quem iria se casar no futuro.
Tudo estava preparado e agora só restava que ela se deitasse para dormir. Ansiosa, Joana deitou-se na cama, aguardando o que seu sonho revelaria. Ela se lembrava de que era importante ter cuidado ao interpretar o sonho. Se ela aparecesse à mesa, compartilhando uma refeição ao lado do noivo, isso indicaria que se casaria. Apenas essa revelação já traria um certo alívio, renovando suas esperanças para o futuro de sua vida amorosa.
Deitada, Joana fixou o olhar no teto. A porta do quarto encontrava-se entreaberta, permitindo que a suave luz das velas na sala de estar projetasse sombras no teto. As sombras dançavam e ganhavam vida, formando figuras enigmáticas que pareciam contar histórias ocultas. Era como se um espetáculo misterioso se desenrolasse acima dela. Joana se questionava se poderia desvendar algum presságio a partir dessas figuras sombrias. Seriam elas mensageiras de seu futuro? Quando finalmente alcançaria o sono? E se a inquietude a mantivesse acordada? Seria esse um sinal de que nunca encontraria seu par, que o amor seria um destino negado?
Então, ela ouviu: o som dos talheres raspando nos pratos, o ruído dos copos sendo preenchidos com líquido, o arrastar das cadeiras. Joana sentiu seu coração acelerar. Será que alguém havia invadido sua casa? Isso só poderia demonstrar o quão azarada ela era.
No entanto, se fossem realmente ladrões, será que eles se dariam ao luxo de parar para comer o jantar cuidadosamente preparado por ela? Não seria mais provável que eles estivessem interessados em vasculhar a casa em busca de riquezas? Com essas dúvidas pairando em sua mente, Joana tomou coragem e decidiu se levantar, caminhando lentamente em direção à sala.
Havia de fato alguém sentado à mesa. No entanto, a iluminação, mesmo com as velas acesas, não era suficiente para identificar as feições ou a vestimenta da pessoa. Joana apenas sabia que se tratava de um homem.
Joana esperou para ouvir se havia mais alguém na residência, mas não ouviu nada. Aparentemente, só havia aquele homem, que se empanturrar com as oferendas preparadas por ela.
Agora, Joana sentia-se irritada. Ela tinha se esforçado muito para montar todo aquele cenário e não permitiria que tudo fosse destruído por um desconhecido mal-educado.
Determinada, ela se aproximou da mesa, fazendo as velas tremerem, o que tornou o ambiente ainda mais escuro e sinistro. No entanto, o homem parecia não notar a presença de Joana.
Ele comia vorazmente, parecendo um faminto desesperado. Utilizava tanto os talheres quanto as mãos, devorando a comida de forma quase animalesca. Joana podia ouvir claramente o som alto e intenso de sua mastigação, ecoando pela pequena sala. Cada mordida parecia ressoar de forma perturbadora, preenchendo o ambiente com um ruído desconcertante.
Enquanto isso, as velas tremiam e vibravam, mesmo sem a presença de qualquer corrente de ar. A chama dançava de maneira inquieta, lançando sombras sinistras pelas paredes.
"Quem é você?", exigiu Joana, determinada a descobrir a identidade do indivíduo. O sujeito parou abruptamente. Mesmo estando próximo, sua forma não se delineava nitidamente. Era como se fosse uma sombra, uma figura misteriosa que desafiava a compreensão lógica.
Além disso, algo estranho acontecia: vozes começaram a ecoar na escuridão. O som parecia surgir de todos os cantos da sala. As velas, apesar de fornecerem uma fraca iluminação à mesa, não ajudavam a dissipar a obscuridade que parecia ter se intensificado no restante do ambiente.
"Salve, Rainha, mãe de misericórdia, vida, doçura, esperança nossa, salve!", entoaram as vozes roucas. Era como se estivessem cantando, mas de uma forma arrepiante e sinistra.
"A Vós bradamos, os degredados filhos de Eva. A Vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas", as vozes ecoavam, agora em gemidos e choros. Eram sons horríveis, que penetravam os ouvidos de Joana como lâminas afiadas. Desesperada e aterrorizada, ela cobriu os ouvidos com as mãos, lutando contra a confusão que tomava conta de sua mente.
"Eia, pois, advogada nossa, esses Vossos olhos misericordiosos a nós volvei", as vozes prosseguiam com seu canto aterrorizante, envolvendo o ambiente em uma atmosfera sinistra.
Mesmo em meio ao caos e ao pavor, Joana conseguiu identificar. Aquela era a oração da Salve Rainha, a qual supostamente deveria ter recitado antes de dormir, como parte do ritual. Ela deveria entoar essa oração até um certo ponto... mas o ponto exato escapava de sua memória.
De repente, o homem misterioso soltou uma risada perturbadora. Era uma risada estranha, mais animalesca do que humana, ecoando pelo espaço com um tom enlouquecedor.
"Quem é você?", exigiu Joana, gritando para além das vozes, tentando se fazer ouvir acima do caos.
"Ora, Joana... você me chamou, não é mesmo? Essa refeição é para mim", falou o ser misterioso. O fogo das velas se intensificou, aumentando bruscamente a iluminação da mesa.
"E, depois deste desterro, nos mostrai..."
Enquanto as vozes continuavam seu cântico macabro, Joana finalmente pôde ver as feições daquele que estava sentado à sua mesa, desfrutando da comida que ela mesma havia preparado. Um grito de agonia escapou dos lábios de Joana.
Subitamente, as velas se apagaram, mergulhando a sala em total escuridão.
~~Palavras da Autora ~~
Sou nordestina e as simpatias durante o período do São João sempre me assustaram e fascinaram desde a infância. Esta história foi inspirada em relatos contados pela minha mãe, que remontam à sua própria infância. Minha avó e tia costumavam realizar esse tipo de simpatia, oferecendo alimentos na véspera de São João e interpretando os sonhos que teriam naquela noite. Acreditava-se que, por meio dessas práticas, elas seriam capazes de prever com quem cada uma das irmãs de minha mãe (incluindo ela mesma) e outras pessoas da rua iriam se casar.
De acordo com Câmara Cascudo, um renomado folclorista nordestino, essa forma de adivinhação tem suas raízes na ancestral prática de oferecer alimentos aos deuses, presente tanto nas culturas europeias e asiáticas quanto em algumas das culturas nativas das Américas e da África. É uma tradição milenar que conecta diferentes povos e nos revela a riqueza e diversidade cultural presente no nordeste brasileiro.
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