Demônios em mim

A vida de alguém comum, era assim que eu diria sobre os dias que passavam e  a minha impaciência sobre eles. Eu sempre me questionava sobre as coisas que, por mais que me esforçasse, estavam distantes o suficiente do meu alcance a ponto de me reduzir em um homem comum demais para o sucesso e impaciente demais para o fracasso. Tinha uma mulher linda de sorriso valioso. Mas que uma vez ou outra me questionava sobre o dinheiro que faltava todo mês. E todo mês faltava algo. Eu estava em uma pequena comunidade judaica, aprendendo sobre a Torá, e lendo sobre os preceitos. 613 mandamentos. Eu cumpria no máximo 20, nunca fui apegado  aos dogmas que desde muito cedo aprendi a respeitar.

Mais um dia me levante, mais um presente desse presente de dia, uma conta lançada sobre a porta. "Vocês poderiam pagar em dia suas contas, judeuzinho" as palavras que estavam gravadas  na mente de um homem que nem sabia ao certo com o que deveria trabalhar para render  mais.  Eu tinha um trabalho de atendente em uma loja de relógios. E  nas horas vagas eu ensinava hebraico, mas nada que rendesse  de fato o meu tempo.

A triste  verdade era que na maior parte do meu tempo eu vivia preocupado com os méritos que eu não tinha. E foi num desses dias que decidi sair para trabalhar e dei um tchau seco para a mulher que eu acreditava ser  a futura mãe dos meus filhos.

Filhos!

Filhos!

"Quando você terá  seus filhos Hadassa"

- Quando Deus permitir - Deus nunca permitiu.  E eu sempre o culpei  por isso.

Quando saindo da porta de madeira, com as bordas desenhadas, tudo semelhante à uma flor de lótus. Eu olhei seu olhos vazios como um verso vago em uma batida eletrônica, mas eu julguei que era mais algum erro que eu cometi, mais um de um vasto arsenal de erros.

Porém como meu pai sempre me disse  "mulheres são demais, você pode até dizer que as entende, mas isso seria inconcebível".

Fui em direção ao carro, contei até dez, mania clássica das pequenas crises que eu tinha, meu psicólogo dizia que contar  até 3 era bom, então usando essa lógica eu contava até 10, porque aí seria bem melhor. Certo?!

Abri a porta para entrar e fui para a labuta. Cheguei no serviço e fiz exatamente as mesmas coisas. Atendi pessoas, ri de piadas sem graça, tanto das dos clientes quanto das do meu chefe. Fingi estar distraído quando um mendigo pediu um mísero real para comprar pão. Sei o pão  que ele queria. Não o ajudei em sua desgraça.

Eu sempre quis entender o curioso caso do ser humano que não se incomoda em depender da caridade dos outros, é  como se você vivesse com olhos te julgando por ser incapaz de andar com as próprias pernas.

Fui até a cozinha da nossa pequena loja. Bebi um café e percebi que as horas já tinham corrido. Geralmente os dias eram bem mais longos, mas naquele em especial foi mais rápido do que eu imaginei.  E sim, depois eu descobriria o porquê dessa sensação nada arbitrária.

Deu o horário!

Fui até o meu chefe e o agradeci pelo dia, era a forma que tínhamos de dizer "não nos mande embora amanhã" após tirar o sorriso nada convincente que eu me esforcei em dar ao sair de lá. A sensação de alívio por não ter aulas me enriqueceu de um sorriso desdenhoso, porém com polidez, sob a lembrança dos meus alunos. Eram boas crianças com pais ordinários. Ser ordinário não era algo ruim. Eu sou. E  tudo bem.  Dias comuns para um homem comum.

A caminho da minha casa vi uma floricultura que estava com várias promoções de rosas.  Hadassa amava rosas, decidi pegar um buquê, eu lembrei dos olhos vazios daquela manhã. Com toda certeza ela irá gostar disso! Eu não sou um homem romântico, mas as rosas estavam em promoção e  ela amava rosas. Por que não?

Entrando no carro. Passei um perfume, e pensei, "ela merece". Ter aquela mãe  é  um peso que ela carrega desde sempre. Eu não consigo nem olhar direito para àquela mulher. Imagina ser filho dela. Só de imaginar esse cenário ja sinto um frio na espinha.

Cheguei! Finalmente consigo estacionar meu carro. Olho pra janela e percebo que todas as luzes estavam apagadas. O que será  que aconteceu?  Pensei de primeira que ela tinha ido a casa de alguém. Talvez para a casa de alguma amiga, ela não tinha tantas, mas as vezes elas apareciam em casa para pedir coisas, falar sobre suas vidas fúteis e goumertizar programas de auditório.

Cheguei na porta e  senti um frio, mas logo percebi que a casa estava caixa já fazia um tempo. Abri a porta.

A sala quieta e sem vida alguma, liguei as luzes e nada demais.  Apenas o que eu lembrara  de ter deixado assim que sai naquela manhã. Foi quando eu senti um cheiro forte de ferro vindo da cozinha. E fui até lá. E quando eu entrei na cozinha.

Quando eu....

Eu pude ver enfim a cena mais triste da minha vida, meu corpo enrijece, minha popila abri como se fosse algo muito mais forte. E começo a contar até dez. Porra! Isso não está fazendo efeito. Me sinto como uma ameba viajante. Sem controle levado apenas por um surto muito mais forte do que os meus braços poderiam segurar. A dor rasgou a minha alma. Comecei a vomitar. Vomitei todo o almoço, e até o café. Aquele mesmo que tomei. E  no meio das lágrimas e tremores. Comecei a sentir como se meu coração fosse explodir em meu peito e  o frio do começo se tornou brisa suave perto do frio que eu senti naquele momento.

A criatura dócil de olhar distante, que sempre quis ser mãe. Que sempre quis ser mais presente na vida dos seus pais e  que estava presa naquele lar comigo. Estava com seus pulsos cortados lançada sobre a nossa mesa. O olhar sem vida dessa manhã, realmente agora estava sem vida. Me olhando como se estivesse saindo de um lugar horrível. Eu não entendi porque meus pulsos estavam doendo tanto e  o frio me pegara  com tanto ódio. Mas aos poucos fui entendendo que a mulher que mais amei em toda a minha vida comum. Estava sem vida. Os olhos azuis de Hadassa me cobravam todas as vezes que prometi levá-la à praia e não cumpri.  O nariz cumprido me lembrava das vezes que esqueci de destacar o quanto ela era importante. Os cabelos cumpridos, me lembravam agora que o homem comum tinha uma mulher nada comum ao seu lado. Ali estava o corpo da mulher que eu amei. E  agora as rosas todas lançadas no chão da cozinha. Destacavam o quão cruel eu fui sem perceber.

Após todas as crises. Peguei seu corpo sem vida em minhas mãos.  E comecei a cantar nossa música. Mas não consegui terminar, parei no "eles dizem que só os tolos amam" e eu era tolo suficiente.

Levei o corpo até o sofá. E fiquei olhando aquela criatura dócil.

Decidi então, policial. Ligar pra vocês e bom... Foi essa a história de um dia que comum. O dia comum que se tornou o pior dia da minha vida.

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