Nós - Cap 4

Continuei com o capuz abaixado mesmo quando driblamos os guardas de plantão e saímos silenciosamente pelos fundos do hospital.

Timóteo acelera o carro até parar próximo a minha rua, mas sem entrar nela.

Ele vira o corpo em minha direção. À luz do entardecer, é quase impossível distinguir suas pupilas de suas íris.

- Temos no máximo quarenta minutos para que notem nossa falta. Disse aos guardas que você não estava se sentindo bem e iria levá-lo ao banheiro. Então, se não der certo...

Aperto as mãos.

- Eu sei. Estamos os dois ferrados.

Ele assente.

- Plantei uma pista mais cedo. Espalhei boatos no hospital e na sua vizinhança de que poderia haver uma possível soltura sua e que havíamos achado uma prova que indicava sua inocência.

Olho para ele sem acreditar.

- Porque espalhou boatos sem me perguntar antes?

Pela primeira vez, Timóteo me dá um olhar divertido.

- Porque eu sabia que você aceitaria.

Mordo a língua, com vontade de xingá-lo, mas me controlando.

- Certo – Bufo. Alívio, por poder dizer as próximas palavras enche meu peito – E como esse boato nos ajudará a capturar o culpado?

- Simples – Ele abre as mãos. – Chego com o carro de polícia na sua porta, te deixo. E esperamos.

- E como ele vai saber? Como garante que os boatos chegarão até ele?

- Assassinos gostam de rondar as cenas do crime, para ver o que está acontecendo. Na verdade, gostam de rondar qualquer lugar que possa lhe dar pistas de como a investigação está indo.

- Isso inclui a cena que refizemos hoje... e o hospital – Eu falo lentamente, e ele assente.

- Pela quantidade de provas sólidas contra você, suponho que tenha sido um crime premeditado há muito tempo. Por esse motivo, o assassino não vai querer que seu único trunfo saia por aí ileso. Se você ficar livre... isso quer dizer que alguém tem que assumir essa responsabilidade.

- E você acredita piamente que ele virá atrás de mim?!

- Sim.

A certeza nos olhos dele me faz calar.

Passo a língua nos dentes, olhando para a rua do meu prédio, em sombras com a chegada da noite.

- Não se preocupe. – Ele me tranquiliza – Consegui trazer dois detetives para o meu lado. Um está por perto, e o outro vai contar meu plano para a equipe quando eu sinalizar, então teremos reforços. – Ele bate no bolso do casaco. – vou filmar tudo e vai passar direto na delegacia. Assim que o assassino entrar na sua casa, você me chama. Vou estar por perto.

Me entrega um dispositivo com botão.

- Só apertar.

Dúvida aperta meu peito. Medo também. Medo de não conseguir, medo de dar errado. Medo de ser tudo coisa da minha cabeça sequelada.

- E se... e se ele não vier? – Sussurro.

Timóteo me olha longamente.

- Torça para que ele venha... ou estaremos nós dois ferrados.

WWW

Encaro a porta do meu apartamento, criando coragem para entrar.

Ao meu lado, Timóteo me dá um cutucão e eu olho para ele de cara feia.

Devagar, entro no lugar, fechando firmemente a porta.

Acendo todas as luzes, para deixar bem claro a qualquer um que eu voltei, mas duvido bastante que alguém note, já que o prédio está silencioso, o café lá embaixo está fechado.

Até mesmo Leo não estava a vista em lugar algum. Espero que ele não tenha sido demitido por ter faltado ao serviço tantas vezes.

Percorro o lugar que chamei de lar pelos últimos anos. Meu armário está revirado, as gavetas pendendo frouxas dos espaços, roupas espalhadas no chão, junto com livros, meu equipamento fotográfico.

Os poucos móveis que eu tenho estão jogados, como se eles tivessem procurado por uma pista embaixo deles.

O apartamento fede, por causa do lixo que eu esqueci de tirar há uma semana.

Agacho quando vejo um brilho familiar e pego uma das únicas fotos de Katarina que eles não levaram. Nesse dia, ela usava um suéter azul e calças de montaria. Tinha um gorro na cabeça e um sorriso bonito no rosto, os cabelos castanhos jogados sobre o ombro.

Permito que as lágrimas venham, que eu chore por ela.

Mesmo enquanto eu a olhava em segredo, e tirava fotos, eu nunca pensei em fazer algo contra ela.

Me encolho no chão sujo, a foto pendendo dos dedos e choro por ela, de saudade e pesar.

WWW

Arrumo meu pequeno apartamento, limpo o chão e tento restaurar alguma ordem no local.

Depois, tomo um banho, e vou para cama sem comer nada, já que tudo que havia nos armários havia estragado durante a semana.

Deito, e fico em alerta. Timóteo havia avisado que assassinos que precisam dar cabo de alguém, costumam entrar na casa depois que todo o movimento cessa. Com certeza para ter o fator surpresa do seu lado.

Apalpo um spray de pimenta no bolso da calça, minha única defesa.

Estranhamente, não estou com medo. Ansioso pela expectativa de ver o desgraçado que havia feito aquilo comigo e Katarina, mas não medo.

Parecia que fazia muitos anos desde que eu esbarrara nela, o rosto pegando fogo enquanto fugia.

Aquele garoto tímido e covarde, que se escondia atrás de fotos... ele não existia mais. Aquela sala de interrogatório havia matado aquela pessoa.

Um barulho baixinho me faz sentar silenciosamente na cama, o coração rugindo no peito.

Alguém havia entrado no apartamento.

Passos baixinhos e arrastados seguem pelo corredor até meu quarto.

Engulo em seco. É agora. Finjo que estou ressonando contra a cabeceira, a posição relaxada e os olhos fechados, mas aperto discretamente o botão que Timóteo deu para mim.

A porta do quarto se abre lentamente... e alguém vem até mim.

1 passo. 2 passos. 3 passos.

Antes que a figura possa dar o quarto passo, a porta do apartamento explode e pessoas entram correndo. Abro os olhos, e tomo um susto enorme quando vejo uma figura encapuzada em cima de mim, uma faca reluzindo na mão.

A pessoa pula em mim e antes que eu possa alcançar o spray, sou imobilizado.

Luto contra, usando braços, pernas e dentes, mas nada adianta. Ainda sou arrastado para o outro lado do quarto, trincando os dentes diante da dor do aperto que quase quebra meu braço.

Timóteo irrompe pela porta do quarto quando a figura encosta uma faca no meu pescoço.

Vejo mais policiais atrás, mas meu captor não hesita.

Ele me imobiliza de vez enquanto os policiais nos encurralam, as armas apontadas na nossa direção.

- Abaixe isso – Ordena Timóteo, a arma na mão, apontada pra gente – E solte o Mateus.

E os próximos minutos me lançam em uma torrente de desespero quando meu captor fala:

- Recuem ou eu vou matá-lo.

Aquela voz...

- Leo – Sussurro, sem conseguir acreditar.

Vejo espanto no rosto de Timóteo quando todas as luzes são ligadas.

Atrás de mim, Leo, meu amigo e o porteiro do prédio, respira pesadamente, me usando como escudo contra o número cada vez maior de tiras.

Estou confuso, mas de repente as coisas fazem sentido. Leo era o único que teria acesso ao meu apartamento para colocar aquele exame médico... e isso justificava os pelos de gato em Katarina, já que ele vivia alimentado os gatos da vizinhança... e o fato dele não ter achado um advogado para mim... e Leo foi o único que me viu saindo atrás de Katarina e...

- Leo – Chamo sua atenção, tentando jogar algum ar nos meus pulmões, para me tirar daquele estupor. – O que... o que você está fazendo?

Ele me dá um sacolejo violento e eu solto um grito quando a faca arranha minha garganta.

- O que acha, seu idiota?! – Ele rosna – Meses planejando matar aquela garota, te incriminar e fazer o cenário perfeito! Para dizerem por aí que você seria solto!

Quase não reconheço sua voz, antes tão pacifica, e agora brutal, feroz e jocosamente desesperada.

Meu amigo... Leo era meu amigo...

Timóteo abre a boca, mas eu balanço a cabeça. Vou fazê-lo confessar tudo ali, nem que precise perder minha vida no processo.

- Porque a matou? Porque Leo, ela era quase uma santa!

- Porque você a desejava, Mateus.

Franzo a testa em confusão, mas eu congelo quando a mão livre de Leo desliza pela minha barriga, ainda com o braço enrolado no meu.

- Porque você só tinha olhos para ela, e não para a pessoa que sempre te ajudou, que sempre esteve do seu lado. Ela era um obstáculo entende? Você não me deu outra escolha, Mateus... se tivesse esperado mais um pouco...

Engulo em seco quando sua mão desce mais, tentando manter o nojo longe da voz.

- Mas porquê... me incriminar?

Ele ri, e eu tenho vontade de vomitar. Aproveito que seus dedos não estão mais em volta do meu pulso, e mexo a mão um pouquinho para perto do bolso da calça, movendo os dedos a cada respiração.

- Você acha que eu sou o único envolvido nisso, não é Mateus? Você está imensamente errado. Ele está te observando. Ele está mais próximo do que você pensa – Ele sussurra no meu ouvido e um arrepio sinistro sobe pelas minhas costas – Agora, caros policiais, eu recomendo que abram caminho, se não quiserem que o Mateus aqui vire uma peneira.

Devagar, Timóteo e os outros policiais abrem caminho, e Leo me empurra para a frente.

Antes de chegarmos a porta, finjo tropeçar, enfio de vez a mão no bolso e jogo o spray de pimenta na sua cara.

Leo cai, rugindo de ódio, sem conseguir enxergar nada e é imobilizado pelos policiais.

Não consigo tirar os olhos dele, do homem que eu considerava como amigo e agora... eu só via um monstro no lugar.

Não consigo parar de olhar, de pensar, de... existir, até que Timóteo toca no meu ombro.

Olho devagar em seus olhos, e há ali compreensão. A única pessoa que acreditou em mim quando nem mesmo eu consegui.

O mundo ao redor está em silencio, apesar das pessoas correndo, gritando, gesticulando.

Timóteo é o único que ouço falar:

- Acabou Mateus. Você é inocente.

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