Veneno sobre a grama - 13
Wulfric fez uma careta ao provar do antídoto que supostamente faria o ácido em suas veias voltar a ser sangue novamente. O líquido verde conseguia ter um gosto pior do que o óleo de bezoar. O jovem culpou a si mesmo por esperar um sabor decente vindo de um coquetel de ervas, raízes e algumas gotas de veneno de lâmia. Ele tapou o nariz e bebeu o restante em um gole só, forçando-se a imaginar que a substância viscosa que descia por sua garganta era na verdade iogurte de morango e que ele não sentia nenhuma ânsia de vômito.
Devolveu o cadinho de barro à Aura e agradeceu com um aceno de cabeça.
A dor que já lhe incendiava o corpo novamente começou a regredir minutos depois e ele pôde ver nas costas de suas mãos que sua cor foi de pálida a não tão pálida logo em seguida.
Blitz aproximou-se do garoto sentado ao chão, cruzando os braços ao encará-lo de cima para variar.
– Você não parece que vai morrer agora – ela disse.
Wulfric olhou para cima e tentou ver através da máscara que era a expressão monótona da garota. Não obteve sucesso, como sempre. Blitz era extremamente difícil de se ler e ele não tinha certeza se ela se importaria caso ele passasse desta para melhor ou se bocejaria ao encarar seu cadáver. Sabia somente em qual opção apostaria. A garota não era tão má quanto fazia parecer.
– Eu me sinto assim também – respondeu.
– Bom. Quer dizer que podemos ir embora. Eu estou com fome. E um pouco cansada.
Um pouco cansada era o eufemismo do ano. Wulfric estava um pouco cansado. Blitz estava exausta. A garota podia estar ali o encarando de cima com expressão resoluta e postura firme, mas as bolsas negras sob seus olhos não mentiam.
– É. – O garoto preferiu fingir não notar o cansaço da jovem. – Eu acho que eu poderia dormir uma ou doze horas também.
– Ótimo. – O alívio na voz da garota foi sutil, mas com certeza pôde ser notado. – Vamos.
Wulfric ameaçou se levantar, mas Aura agarrou seu braço.
– Esperar – ela disse. – Ter o que falar com você. – A animorfa encarou Blitz. – Só eu.
A jovem revirou os olhos começou a se afastar. Estacou logo em seguida e voltou-se para Aura:
– Sabe... Quando Nagina estava me segurando e você a atacou na forma daquele falcão minúsculo... Aquilo foi... – Blitz parou de falar. Pareceu escolher suas palavras por meio minuto e então finalmente disse: – Nada mal, passarinho.
Depois se virou e caminhou em direção ao spriggan.
Wulfric demorou um pouco para entender o que acabara presenciar e então voltou-se para Aura, encontrando uma andorinha castanha no lugar onde a elfa estava.
"O que foi isso?", a voz da animorfa soou em sua cabeça.
– Hmm... Eu acho... Acho que Blitz não sabe dizer obrigado.
"Hmm... Eu pensava que eu era a única a lutar para aprender sua linguagem..."
– Ah... Não foi bem isso que eu quis dizer... – Ele sorriu. Sarcasmo era outra linguagem que Aura precisaria lutar para aprender. – O que você queria falar comigo?
"Eu queria dizer obrigada. Por salvar minha vida naquela hora".
– Não foi nada – o garoto disse, escondendo o embaraço. – Eu não podia ficar parado.
"Mesmo assim, eu quero retribuir o favor".
– Aura, você acabou de fazer isso. Eu não sei se você notou, mas cinco minutos atrás eu estava destinado a ter uma vida bastante curta.
"Não é a mesma coisa. Eu não arrisquei minha vida ao lhe prover o antídoto, portanto, minha dívida ainda existe. E eu prefiro que você não insista em negar. Nós kalinis somos bastante sérios quanto a quitar nossos débitos".
Wulfric já começava a negar, mas se absteve. Suspirou e assentiu uma vez.
"Eu espero que você não se ofenda. Você tem sorte de ter nascido em sua forma não-animal".
O jovem não sabia se concordava com a elfa, mas preferiu não interrompê-la.
"Isso quer dizer que você tem a liberdade para se transformar em vários tipos de animais, desde que tenha afinidade com eles. Você será limitado pelo seu inconsciente, mas não estará preso por ele a somente uma forma animal como eu estou. E é um desperdício o fato de você não fazer isso direito".
– Eu--
"Por isso eu quero lhe ensinar".
– O quê?
"Se você não se importar, quero dizer".
– Ah... Eu... V-Você quer ser minha professora?
"Sim. Eu posso lhe ensinar a se transformar mais rápido e até mesmo enquanto estiver em movimento. E posso te ajudar a desenvolver afinidade com outras formas animais. Além de te mostrar como se comunicar apenas com a voz de sua mente e... Bem, a manter suas roupas também".
Wulfric corou com a última frase, mas se recompôs logo em seguida. Aquela era uma oportunidade única de aprender com alguém que soube ser uma animorfa desde seu nascimento. Uma oportunidade de aprender a controlar seus próprios poderes que tanto o evadiam. E principalmente, de ficar mais forte.
O garoto olhou para Blitz ali ao longe.
– Eu aceito – disse sem hesitar.
* * *
Wulfric e Aura se aproximaram de onde o spriggan e Blitz conversavam, junto aos restos de Nagina. O Povo da Floresta deixaria a lâmia ali, intocada até que seu corpo se decompusesse. De primeiro, o jovem achara que eles sentiam rancor por ela, o que faria sentido, mas ficou surpreso ao saber que aquele era o jeito deles. Sempre que alguém morria, seu corpo era deixado onde havia caído, como aconteceria na natureza selvagem, para que a Mãe-Terra recuperasse a vida que um dia cedeu.
– Você tem certeza disso, pequena? – o spriggan perguntou.
– Pela milésima vez, sim – Blitz respondeu com tom irritado.
– Seria normal você pedir por mais. O mesmo pagamento é--
– O suficiente – a garota interrompeu.
– O que aconteceu? – Wulfric perguntou curioso.
– O velhote quer pagar mais do que foi combinado pelo trabalho.
– E você está recusando?! – Wulfric sequer precisou fingir surpresa.
– Nosso trabalho era trazer o elfo babaca de volta vivo. Ele está morto. Mas como salvamos o bosque de ser tomado por uma víbora egocêntrica, eu acho que merecemos o combinado de antes. Você discorda?
– Não, só estou surpreso que você não esteja pedindo metade do Bosque como pagamento.
– Há. Hilário – Blitz disse, a voz sem emoção. – Podemos ir?
– Sim.
Wulfric já começava a se despedir do spriggan quando o viu fitando a parte da clareira onde o corpo de Torithen ainda jazia. O elfo podia ter sido o responsável por quase destruir o Bosque, mas aparentemente o spriggan ainda lamentava sua morte.
O olhar de tristeza do Senhor da Floresta não pareceu passar despercebido por Blitz também, mas sua reação foi diferente do que o garoto esperava.
– E sobre isso – a garota disse ao acenar com a cabeça para o elfo caído. – Talvez seja a hora de escolher um sucessor descente, velhote. Independente da raça dele.
– Mas a tradição--
– A sua tradição quase destruiu seu bosque. Você não deveria segui-la cegamente. Há pessoas aqui que não seriam completamente terríveis no seu cargo. – Blitz se virou para Aura. – E você, passarinho. Talvez seja a hora de ser mais honesta com o velhote.
– O que ela quer dizer, Aura querida?
A elfa estacou em surpresa e depois encarou a garota. Sua expressão variou de irritada para temerosa para pensativa. Blitz sustentou seu olhar, sem sequer piscar, por todo o tempo e Aura só pôde suspirar e baixar a cabeça. Pareceu pensar por segundos que duraram horas e finalmente disse:
– Eu querer ser Senhora da Floresta.
– Você?! Mas minha querida, você não é uma elfa da floresta pura. A tradição--
– Poupe-me dessa discussão – Blitz interrompeu. – Eu estou cansada e faminta demais para acompanhar vocês. Estamos indo embora. E vamos pegar nosso pagamento naquela sua casa desorganizada, velhote.
Wulfric sorriu e olhou para Aura.
– Boa sorte.
Depois seguiu Blitz.
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