Veneno sobre a grama - 1

Blitz abriu seus olhos e sentou-se na cama num movimento único e desesperado. Ela ainda ofegava quando levou a mão à testa e limpou o suor que escorria até seus olhos arregalados. Tocou seu peito, sentindo seu coração agitado, e respirou fundo algumas vezes, forçando-o a se acalmar.

Os detalhes do pesadelo já lhe fugiam à mente, mas ela ainda se lembrava do prédio em chamas, do calor, dos gritos e principalmente do cheiro de carne e cabelos queimados. A garota afastou aqueles pensamentos como fazia quase todas as manhãs.

Seus dias estavam tranquilos, essa era a causa.

Blitz gostava de seu trabalho. Mais especificamente, gostava de receber casos que a obrigavam a lutar. Isso esvaziava sua mente e exauria seu corpo. Ela dormia profundamente depois de uma troca de golpes com uma criatura sedenta por seu sangue. Mas sua última luta havia sido há quase um mês, quando ela e Wulfric derrotaram um wendigo errante em um sanatório abandonado. Seus trabalhos seguintes haviam sido simples, tediosos e mal pagos: duas escoltas e uma entrega de materiais em um antiquário. E era nesses dias de calmaria que sua mente voltava para o passado.

A jovem balançou a cabeça, forçando-se a pensar no presente. Levantou-se e a cama de molas rangeu com a ausência de seu peso. Caminhou até a cozinha, separada do quarto por nada mais que um meio balcão de tijolos, encimado por potes, xícaras e copos. Depositou uma chaleira meio-vazia no seu fogão e acendeu a menor chama com um arco elétrico disparado de seus dedos. Voltou para o quarto.

Caminhou até o toca-discos sobre o criado de madeira e abaixou a agulha sobre um vinil lustroso. As primeiras notas de um jazz instrumental soaram pelo pequeno flat.

Começou a se despir. Vestia um moletom branco de mangas pretas. Uma caveira usando um laço cor-de-rosa no topo do crânio esbranquiçado encontrava-se estampada na frente do blusão. A garota usava calças de moletom cinzas e pantufas cor-de-rosa. O conjunto era largo e confortável, nem muito quente, nem muito frio.

Blitz adorava seu pijama. Ela também mataria qualquer um que a visse vestida daquela forma.

Chutou as pantufas para baixo da cama e jogou o restante das roupas sobre uma cadeira. Não usava sutiã. Não gostava de rotular seus seios como pequenos, por isso pensava neles como discretos.

Entrou no banheiro e abriu a torneira, ajustando a temperatura do chuveiro com a precisão de um relógio. Fechou os olhos ao sentir a água quente cair em seus cabelos pretos arrepiados e escorrer de seu rosto às solas de seus pés. Ela mal sentia a água tocar seus braços. Mal sentia qualquer coisa ali.

Blitz tocou a divisão entre seu ombro e seu braço e sentiu a pele retorcida do início de sua cicatriz. Fez o mesmo no outro braço e deslizou seus dedos pelos membros, sentindo cada detalhe da antiga queimadura que corria de seus ombros até as pontas de seus dedos, arruinando sua pele alva e suave. Tocou então sua mão esquerda, no lugar onde seu dedo médio não mais se encontrava. A ferida já havia sido completamente fechada, mas a pele fina ainda se encontrava sensível e coçava às vezes.

Ela havia perdido um dedo para salvar duas pessoas: um novato ainda mole demais para aquele trabalho e uma menina chorona. Aquilo não combinava com ela, mas ainda assim não se arrependia de fazê-lo. E isso a assustava. Ela não queria se aproximar de ninguém. Era mais fácil assim.

A música vinda de seu quarto deu lugar a um solo de saxofone e Blitz percebeu que estivera distraída por tempo demais. Começou a se ensaboar.

Saiu do banheiro enxugando-se com uma toalha magenta ao mesmo tempo em que a chaleira começava a apitar.

Vestiu sua roupa íntima e deixou a toalha cair sobre seus ombros e seios antes de entrar na cozinha. Despejou a água quase fervente sobre um saquinho de chá de camomila em uma caneca vermelha e alimentou a torradeira com duas fatias de pão.

A garota voltou ao quarto e terminou de se vestir. Vestido preto, meia-calça listrada, coturnos desamarrados. Sentou-se à mesa da cozinha e assistiu a torradeira fazer seu trabalho enquanto bebericava o chá quente.

Quando os pães saltaram da torradeira, a garota não demorou para substituí-los por mais duas fatias frescas. Passou manteiga nas torradas já prontas, tomando cuidado para não se queimar, e comeu enquanto esperava pelas novas. Aquilo se repetiria mais duas vezes, diminuindo seu estoque de pães de doze fatias para quatro.

Blitz voltou para o quarto quando a última música do Lado A do disco começou a tocar. Sentou-se em frente à uma penteadeira simples e começou a laboriosa tarefa de se maquiar. Não gostava de usar pó de arroz, pois tinha uma boa pele, mas as olheiras que descansavam sob seus olhos eram difíceis de se esconder. Rímel e delineador como de praxe e estava pronta.

Acabou ao mesmo tempo em que o baterista acertava uma saraivada de batidas nos pratos, finalizando a trilha daquele lado do vinil, e o toca-discos recolhia a agulha lentamente.

Uma buzina soou do lado de fora e Blitz saltou de surpresa. Olhou para o relógio na parede que marcava nove horas em ponto e estreitou os olhos. Aquele garoto era irritantemente pontual.

Calçou suas luvas e flexionou os dedos. A luva do lado esquerdo agora possuía um pequeno dedo de madeira embutido no lugar do dedo médio. O fundo da prótese encaixava-se no que sobrara de seu dedo, de modo que, quando ela flexionava a mão, um mecanismo simples de molas e dobradiças fazia seu novo dedo de madeira também flexionar. Não era perfeito e ela não conseguia fechar a mão por completo, mas era o suficiente para o uso no dia-a-dia.

Pegou suas chaves sobre a mesa e seus olhos automaticamente ignoraram as contas vencidas ali ao lado, encarando ao invés disso a leve camada de pó que cobria o móvel. A garota passou o dedo enluvado na madeira e franziu o cenho ao olhar para a poeira que manchava o cetim de sua luva.

Caminhou até a cozinha e encheu uma tigela com leite. Derramou metade de um pequeno pote de mel no recipiente e misturou até que o líquido branco mudasse de cor. Depositou a tigela sobe a mesa e dirigiu-se à única porta de sua casa.

Saiu e trancou o flat.

O corredor que levava à saída do conjunto de apartamentos estava coberto pela penumbra e o único som que se ouvia era o dos saltos de suas botas acertando o chão de madeira. A garota ajustou as mangas de seu vestido e suas luvas antes de girar a maçaneta da porta da frente.

* * *

Blitz fechou a porta atrás de si e olhou para Wulfric sentado em sua lambreta, brincando com um capacete tipo coco.

O garoto usava a mesma jaqueta escura de sempre e o mesmo estilo de calças rasgadas. Sua camiseta tinha a imagem de um canhão e o dizer "We salute you" estampado na frente. O brinco em formato de cruz celta brilhava discretamente em sua orelha esquerda.

Blitz olhou para os pés do rapaz, notando a ausência de seus tênis pretos, e observou as botas marrons de cano curto que se encontravam no lugar.

O garoto sorriu, dizendo:

– Resolvi usar algo mais apropriado. Não sei se meus tênis combinariam muito com o ar do campo.

– Hmm...

– Está pronta? – ele perguntou ao lhe atirar o capacete e puxar seus óculos de motociclista sobre os olhos, sorrindo.

Blitz devolveu o sorriso, mas por um motivo diferente. Ela fitou a lambreta do garoto ao dizer:

– Você sabe que não podemos usar isso por todo o caminho, não é?

O sorriso de Wulfric desapareceu.

– Como?

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