Conto IV - Uma Prevenção Angelical
Uma pandemia assola o mundo e a humanidade não está preparada para lidar com algo tão grave. Sendo assim, hordas celestes foram designadas a ajudar o planeta, e o Brasil está sob os cuidados de uma equipe muito especial. Os anjos nada ortodoxos, Dercy, Hebe, Lolita, Nair, Rogério e Golias prometem cuidar do povo.
Os dias e as noites sempre iguais, outra vez a mulher pensa enquanto resmunga, e volta a revirar os olhos quando o som das harpas celestiais entoa os cânticos divinos.
— Dedé...! Oh, Dedéee...! — A voz chama pela mulher que finge não escutar. — Onde ela está? — Dá leves batidas na porta do quarto. — Dedé! Está aí?
A mulher sentada no sofá permanece olhando a vista da janela, os jardins tão lindos com seres e flores ainda mais belas, várias que não conhecia — depois de tantos anos, já descobriu o nome de quase todas.
— Dedéee!!! — Impaciente, abre a porta e reclama. — Dercy! Além de morta, está surda?
— Nesse exato momento gostaria de estar.
— Então ouça... tive uma ideia.
— Estou fora!
— Ainda não contei o que é!
— Sua última ideia foi um bingo e não pude nem trapacear!
— Então continue fazendo o certo, estamos no céu.
— Saudades do purgatório. Corrigindo: do inferno mesmo...
— Quer voltar para lá?
— Já tentei e não deixaram.
— Dercy Gonçalves, não ouse blasfemar!
— Fui sincera. Purgatório é muito sofrimento, muita dor. No inferno, há umas festinhas clandestinas, um churrasquinho de couro quente! Tanto bandido e salafrário contando suas histórias que passaria a eternidade rindo e, olhe isso, o som das harpas não cessam nunca, me dá tanto sono. Estou entediada...
— Oh! Dedé, sei que anda um tanto melancólica e por isso vim contar. — Se aproxima e continua: — Conversei com Lolita e Nair...
— Suas comadres...
— E decidimos fazer uma festa!
— Mais anjos nesses cânticos sem fim...
— Uma grande festa para mandar bênçãos ao Brasil, ajudar nosso país a superar o Corona.
— Hebe Camargo, não me meta nessa confusão, festa boa é churrasco, é cachaça, é gente bonita! Aqui não se come, bebida é proibida e você já viu morto bonito? Somos velhaaaas! VE-LHAAAS!
— Não! Somos eternas. Se dizem que o céu é eterno... Morta é a sua avó e deixe de besteira! Me encontre hoje no templo ecumênico para a nossa reunião.
Como todos sabem, no céu o tempo também é eterno, não ouso contar, mas depois do período necessário, Dercy chega ao local marcado. Balança a cabeça em negação ao avistar algumas mesas com cadeiras enfileiradas uma ao lado da outra e em frente um enorme sofá em L. Hebe segura fichas em suas mãos, a dificuldade da leitura está no fato de ter esquecido seus óculos no quarto celestial, e usa o de Lolita, que assiste à televisão com curiosidade.
— Estamos no seu programa? Você não havia sido demitida?
— Não. — Seu olhar a encara. — Morri. É bem diferente.
— Foi a mesma coisa que comentei — Nair Bello debocha, arrancando um sorriso de Dercy.
— E ela acha que estamos em horário nobre, por isso, nos fez vir aqui uma hora dessas — Lolita Rodrigues diz, ainda entretida com o assunto transmitido.
— Tinham algo para fazer por um acaso?
— Eu tinha, tô toda atrasada nas minhas novenas — Nair responde, segurando uma caneta e lendo os papéis nas pranchetas distribuídas em cima de cada mesa.
— Qual o plano? Diga de uma vez — Dercy pede ao se sentar em uma das cadeiras. — O maravilhoso da morte é não ter dor nas costas, sentei que nem uma rainha. Viu, Nair?
— E não ter dor nas juntas. Oh, Glória! — As quatro levam as mãos aos céus em uníssono.
— Uma festa, irei entrevistar alguns famosos.
— Finados famosos — Lolita a corrige.
Hebe revira os olhos e continua:
— Vou ler alguns nomes e aí podemos tirar ou colocar mais...
— Defuntos — as amigas dizem às gargalhadas.
As mulheres aguardam a amiga começar a ler quando é interrompida por um barulho estrondoso de taças de cristais quebrando e duas vozes graves xingando um ao outro.
— Tá doido? Você tá doido?
— Eu? Foi você que quis abrir aquela caixa que dizia "o Corpo e o Sangue de Cristo"!
— Disse que queria ver e não beber! Idiota!
— Ah, chegaram! Até que enfim! — Nair comenta, segurando o riso. — O que já fizeram de errado?
— Ué! Beberam o Cordeiro de Deus! — Dercy responde com simplicidade e Lolita prende o riso ao ver Golias limpando a boca.
— Não era sangue! Era vinho! Tem bebida no céu sim! Mentiram pra gente! — o velho afirma convicto.
— Ainda bem que estamos mortos — Rogério diz ao colocar a boina cinza. — E quem vai pagar penitência vai ser você.
— Você também, porque quebrou as taças! Todas! Quem mandou se apoiar pra tirar o corpo do Dono da Coisa toda do lugar!
— CHEGA! — Lolita diz alto e os homens se afastam. — Os dois vão pagar e vamos começar porque não tenho todo o tempo do mundo.
— Tem sim! — Dercy e Nair dizem juntas e todos caem na gargalhada.
— A lista...
— De quê? — Golias a interrompe.
— Deus! Quanta paciência! — A apresentadora, nervosa, coloca as mãos na cabeça. — Lista dos mortos famosos para nossa festa.
— Hebe, se quer fazer isso dar certo, festa não pode ser!
— De quê? — É a vez do Rogério perguntar e cutuca Golias, que ri, piscando para Nair e Dercy.
— Então, diga a sua ideia. — Lolita tenta ajudar a amiga.
— De quê? — Dercy faz de propósito e ri. — Puta que pariu! Uma música é o suficiente, festa está proibida, não pode ter aglomeração.
— É? Achei que fosse apenas na Terra! — Nair conversa com a outra, entretida. — Estamos aqui com dois pecadores que tomaram o vinho sagrado e querem descobrir pela lei hierática que todos vamos ajoelhar e rezar ainda mais? Quando penso em Salve Rainha, sinto câimbras.
— Você tem razão — Camargo afirma pensativa.
— Meninas... — Golias arruma a camisa vermelha e caminha com seu jeito peculiar. — Posso ver a lista? — Recebe o papel e passa a vista, rasgando-o em seguida.
— Agora ele morre! — Rogério diz e Nair gargalha ao seu lado.
— Já está! — Lolita brinca também.
— Não precisamos de lista, pois há uma fila lá fora, todos já sabem da sua ideia. Vamos fazer uns testes e selecionar os melhores cantores para fazer a música.
— Primeira vez que o vejo dizer algo inteligente — Hebe concorda e se levanta, caminha e abre as enormes portas do templo.
— Atenção, todos! Um por um irá fazer o teste e, no fim, os selecionados farão uma música para mandar bênçãos ao nosso país e ajudá-los contra a pandemia que se alastra. Entenderam?
Várias vozes concordam e, animados, passam a aquecer os vocais.
O primeiro a entrar carrega um violão, arruma os óculos à procura de um banco e não encontra.
— Procurando um lugar para se sentar, meu rapaz? — Rogério pergunta com o semblante sério e Lolita prende o riso. — Cante em pé e não enrole, somos avaliadores sérios e competentes.
— Sim, senhor.
— Comece. — Ainda fingindo seriedade, coloca as mãos na barriga.
— Ainda se eu falasse
A língua dos homens...
— FORA! — Golias grita.
— O que fiz de errado?
— Caralho, morto há tanto tempo! — Dercy responde com as mãos no ar. — Todo mundo aqui fala a mesma língua, anjo, homem, puta!
— Fora! — Golias repete divertido. — Qual o nome do desavisado?
— Renato Russo — Hebe responde, escondendo o rosto em meio a tantas risadas.
— Muito se explica. Russo! — Golias diz ao anotar o nome e riscá-lo em seguida.
— Próximo! — Lolita pede e vê entrando outro rapaz com uma bandana amarrada na cabeça. — Pode começar, por favor.
— Não me convidaram
Pra essa festa pobre...
— FORA! — Dercy diz com o tom alto! — Menino mal educado, respeite os mais velhos!
Todos o encaram com seriedade.
— Ai, ai, ai, essa juventude... — Nair comenta com sarcasmo. — Anote, Golias, o nome dele é Cazuza.
— Anotado, Bello. — Risca o papel outra vez.
— Próximo... — Hebe pede e vê Elis Regina entrar com seu sorriso largo e uma linda flor em seus cabelos. — Gracinha... Pode começar.
— Madalena, o meu peito percebeu
Que o mar é uma gota
Comparada ao pranto meu... Iéh iéh iéh..
— Gostei! Começamos com a pecadora. — Dercy anota o nome na lista de aprovados, tamborilando a caneta no papel, e Rogério se levanta, dançando ao lado de Nair, Golias e Hebe.
— Aprovada! — Lolita faz os passinhos também enquanto grita. — Próximo!
Chico Science entra e sorri para todos.
— Vim apenas deixar um recado, Chorão pediu que viesse dizer que não irá participar, pois ainda está na clínica, mas gosta da ideia!
— Owm! Muito bom! — Hebe diz, feliz. — Diga que agradecemos e estimamos sua melhora!
— Darei o recado. Obrigado e parabéns pela ideia!
— Gracinha esse menino! Pede para o próximo entrar.
O homem, com seu cavanhaque estiloso e o porte magro, liga a guitarra no seu amplificador e a voz sai, deixando-os alegre pela melodia transgressora.
— Eu não sou besta pra tirar onda de herói
Sou vacinado, eu sou cowboy
Cowboy fora da lei
— Aprovado! — Hebe diz, dando pulinhos alegres. — Precisamos de um perfil como o seu!
— Gosto da barbicha — Nair conta e anota seu nome. Raul Seixas.
— Próximo! — Dercy grita e adentra o galanteador. — Fora! Vaza!
— Dercy, nem cantei.
— A música é para falar de bênçãos e você só fala de mulher. Tchau, Jobim! FORA! VAZA DAQUI! PORRA! Próximo!
O homem sai rindo e um grupo entra em seguida, com roupas espalhafatosas.
— Aqui é o teste?
— Sim, nome do grupo? — Rogério pergunta, tirando a caneta das mãos de Lolita.
— Mamonas Assassinas.
— Alguém anotou o nome do garanhão do Leblon? — Nair pergunta ao procurar entre os papéis.
— Anotado e riscado — Hebe confirma.
— Podem começar.
— Um ser humano fantástico
Com poderes titânicos
Foi um moreno simpático...
— Aprovadíssimos! — Dercy grita, dando os parabéns.
— Sério? — Dinho a questiona, incrédulo.
— Sim. Diversidade, nordestino, viado e católico na mesma música, precisamos causar. Aprovados! — Os mais velhos concordam.
Beth Carvalho entra e todos se cumprimentam. Logo, a sambista começa a cantar uma canção de Cartola.
Golias nega com a cabeça.
— Betinha, pensei que ia sambar... Não, sinto muito, mas está reprovada.
— É uma música muito bonita!
— Sim, também é triste e queremos algo alegre. Tinha apenas uma chance.
— É, Beth, dessa vez não. Na próxima pandemia você volta — Nair a dispensa. — Próximo.
Os cabelos encaracolados chegam e os óculos escuros são sua marca registrada.
— Nome... — Lolita pede.
— Reginaldo Rossi.
— Terá apenas uma chance.
— Lembro com muita saudade
Aquele bailinho
Onde a gente dançava...
— Reprovado! — Hebe diz com o semblante triste. — Mesmo problema da antecessora. É triste, queremos algo alto astral.
Nair anota o nome e deixa Golias riscar, sua maior diversão.
— Próximo.
Luiz Gonzaga carrega a sanfona, sorridente como ele é, ajusta o instrumento e deixa o som fluir.
— Todo tempo quanto houver pra mim é pouco
Pra dançar com meu benzinho numa sala de reboco...
Rogério convida Nair e o casal dança animado, o mesmo faz Golias com Dercy. Lolita junta os papéis e se aproxima de Hebe, conversam animadas sobre alguns resultados e ponderam ao som do nordestino.
As palmas e vivas no fim da música despertam as mulheres, deixando que as atenções voltem ao grupo.
— Aprovado, Gracinha — a apresentadora diz ao segurar seu rosto. — Quando sair, diga que os testes estão encerrados e já temos nossos vencedores.
— Oxe! É pra já! — O sanfoneiro sustenta o instrumento e sai do ambiente aos pulos de alegria.
— Acabou? — Rogério a questiona.
— Sim, temos pessoas talentosas para fazer a música e pode chamá-los se quiser.
— Graças aos Anjos — Dercy solta e senta-se em seguida.
— Dessa vez, nós somos os anjos, amiga — Bello diz alegre.
O homem sai para convocar os cantores. Hebe, Nair e Lolita seguem em uma conversa animada. Golias se aproxima da comediante sorrateiramente.
— Dedé...
— Hum. — O olhar carrancudo é voltado para o humorista. — O que queres?
— Quando os artistas — faz aspas com os dedos e mantém a fala debochado — estiverem fazendo a música, topa um carteado?
— Só jogo valendo...
— Eu também. — A conversa passa a ser sussurrada. — Há um grupo seleto e a mesa só pode ir convidados.
— Onde é isso que nunca ouvi falar?
— No quarto celestial do Mussum.
— E qual o nível da aposta?
— Alto... do Altíssimo... — Ele cochicha em seu ouvido. — Só pode rosários.
— Tô dentro. — A mulher semicerra os olhos e o encara. — Você não está trapaceando, está?
— Não! De maneira alguma, jamais. Nunca!
A conversa é encerrada quando os cantores voltam à sala ecumênica e Nair se faz ouvir:
— Parabéns aos escolhidos. — Os cantores comemoram com abraços e tapinhas nas costas.
— Chega! Foco na missão — Rogério interfere, ansioso. — Tenho um compromisso, vamos logo com isso.
— Temos! — Dercy o corrige.
— Então, vocês precisam criar uma música divina para ajudar o nosso povo a se prevenir contra o Covid.
— Isso! Uma música alegre tipo chiclete! Que fica na cabeça das pessoas! — Nair os instrui.
— Engraçada e feliz como nosso povo! — Golias completa.
— Certo — Raul concorda, seguido pelos outros.
— Não nos decepcionem, ainda podemos trocá-los. Lembrem-se de que há muito morto sem poder fazer sua arte — Dercy continua.
— Tenham o tempo que precisar e nos chamem quando estiver pronto — Hebe finaliza.
— Boa sorte — Golias diz e sai caminhando apressado.
— Quer dizer pra gente, não é? — Dercy o segue, com Rogério ao seu encalço.
Horas divinas se passam e os criativos músicos permanecem entretidos em sua nova missão. Não tarda e Elis sai à procura dos anjos, lhes trazendo novidades.
O grupo se encontra e os anjos brasileiros sentam-se no sofá da cantora.
— Estou me sentindo no Programa da Hebe! — Rogério diz e cutuca Nair, que cai na gargalhada.
— Presta atenção, Rorô — a mulher responde com risadas.
— Tô prestando...
— Como conseguiu se livrar de cinco rosários? — Golias faz as contas nos dedos ao encarar Gonçalves, que se apoia na bengala ao se sentar. — Você trapaceou?
— Claro que não, cara. — A mulher ajusta a roupa e dispara. — Blefei!
— Minha Nossa Senhora!
— A mulher que me perdoe, mas sempre durmo no meio da Salve Rainha e tenho que recomeçar — Dedé afirma tristonha. — É um horror!
Hebe, atenta ao grupo de cantores, sorri ao dizer:
— Estamos ansiosos, então...
— Eu não estou — Golias implica, levando um tapa com o gorro de Rogério, que gargalha com o amigo.
— Está sim, Amado Mestre.
— Anísio não quis vir, tava cantando a enfermeira, aquele safado!
Os instrumentos misturados dão harmonia, trazendo o ritmo alegre e dançante do samba que o povo tanto gosta.
— 3... 2... 1... — Raul marca o tempo.
Acredite nas bênçãos
Dos anjos divinos
Que clamam por nosso povo
Alegre, mas sofrido.
Fique em casa
Seja na da sogra
Ou na da vovó
Que a união é a melhor
Forma de lutar
E não se esqueça
De pensar
Que antes a prevenção
Do que o caixão
Um dia a vacina irá chegar
E Você precisa se cuidar
Pra ajudar
Aquele nosso irmão
Por isso,
Pegue o álcool
E use a máscara
Pro vírus não passar
E grite com todos os amigos...
Xô xô xô
Covid, Xô
Xô xô xô
Corona, xô
Tudo vai passar
As bênçãos vão chegar
Ensine a criança a usar
E a mamãe explicar
Que quando a vacina tomar,
São duas doses que vai precisar
Xô xô xô
Covid, Xô
Xô xô xô
Corona, xô
Tudo vai passar
As bênçãos vão chegar!
E nosso povo irá sarar
Com amor
No coração
O melhor aconteceu nos dias que se sucederam na Terra. Os brasileiros se encheram de coragem, com tanta alegria e de uma maneira engraçada como esse seleto grupo, a música foi enviada como intuição e Zeca Pagodinho gravou, trazendo alegria e conscientização.
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