Conto de Ano Novo - Parte 03


O Grande Rei respirou fundo esfregando as mãos no rosto, sentindo uma inquietação crescer em seu peito. Qualquer outro felin provavelmente não se importaria de estar em seu lugar, mas a última coisa que ele queria era estar preso numa festa luxuosa repleto de celebridades chamarizes da mídia, e sem Anmyuu, ainda por cima.

Por mais que estivesse sentindo a frustração tomar conta, ele sabia que usar seus poderes ou sua posição para forçar um retorno seria desnecessário e inconveniente para todos. Ele pensou em invocar as asas de sua forma celestial e tentar voar de volta para a bahia, contudo, foi só olhar em volta para perceber que não seria uma boa ideia. Tudo que ele conseguia enxergar era a vastidão do mar sob a luz da lua, que com a escuridão da noite recém chegada, parecia ser infinita. E mesmo com o céu estrelado, enxergar o caminho seria complicado, ainda mais considerando que Kin não fazia ideia de para que lado ficava o cais. Com forma de Arcanjo ou não, ele certamente se perderia se tentasse.

Desconsolado ao ver que não parecia haver saída, Kinmyuu apanhou o C-Tech no bolso para ligar para Anmyuu. Já que não podia ter sua companhia, seria bom pelo menos ouvir sua voz. Ademais, pensou que ela deveria estar se perguntando porquê ele não tinha ido encontrá-los. Contudo, até estranhou um pouco ao deslizar a tela de seu aparelho e ver que não havia nenhuma ligação perdida de Anmy, apenas uma mensagem pedindo que ele ligasse quando estivesse de volta para se encontrarem no salão principal do luxuoso resort.

“Quem dera eu já estivesse de volta…” Kin pensou suspirando alto, enquanto utilizava a discagem rápida ligando para a esposa.

“Oi querido… Você chegou?” Anmyuu logo perguntou ao atender, algumas boas chamadas depois. No entanto, ao contrário do que Kin imaginava, não havia qualquer sinal de urgência ou ansiedade em sua voz. A rainha parecia extremamente tranquila, ele quase diria sonolenta, de tão relaxada que sua voz soava.

O rei então explicou o mal entendido, e quase como se a coordenadora da revista tivesse profetizado, Anmyuu respondeu tranquilamente que acidentes aconteciam, e que o esperariam no resort até que o iate retornasse ao final da festa, mesmo que isso fosse acontecer apenas quase ao amanhecer.

“Não se preocupe amor, estamos bem. As crianças estão ótimas. Tsuki está se divertindo muito com os monitores do espaço kids, eles tem uma fazendinha com pôneis marinhos aqui…E pelo que Aken me disse numa mensagem, ele conheceu um novo amigo no arcade e foram até dar uma volta juntos. Enquanto isso eu estou no SPA do resort fazendo uma sessão completa e, nossa! Eu estava mesmo precisando relaxar! Você deveria fazer o mesmo, querido. Sei que não é o seu tipo de evento favorito, mas já que você está numa festa, tente aproveitar um pouco, nem que seja só pra se acabar no buffet ou algo assim, hah! Além do mais, toda essa história com a entrevista e as fotos da The Regal foi para mostrar que mesmo o Rei Supremo sabe relaxar e se divertir, então não deixe isso só no papel, ou pelo menos tente, tá bem? Ah! Eu tenho que ir, minha massagem com pedras quentes vai começar. Nos vemos mais tarde, mozão, te amo, beijinhos!”

Sendo assim, Anmyuu desligou, e só restou a Kin aceitar seu “terrível” destino de passar as próximas horas preso naquele enorme iate festivo e ostentoso.

Tentando passar-se o mais discreto possível, a princípio ficou apenas perambulando pelo deck sem saber muito o que fazer, observando os convidados se divertindo. As batidas da música eletrônica soando da pista de dança podia ser sentidas ao longe. O show de luzes ao mar vindo dos refletores led espalhados ao longo da popa e proa brilhavam coloridos por toda à parte, aumentando a animação vibrante da atmosfera. Felins com trajes despojados, e alguns inclusive apenas com roupas de banho, desfilavam pra lá e pra cá, erguendo suas taças de bebida, rindo e comemorando, fazendo questão de posar para fotos e não se importando nem um pouco com a presença dos paparazzi ali.

E de repente, Kinmyuu se sentiu um pouco incomodado. Não pelo ambiente ou pelo espírito festeiro de todos que estavam ali, mas sim por não entender por quê ele simplesmente não conseguia sentir o mesmo e se juntar a eles. Não era apenas a ausência de Anmyuu que contribuía para que ele não se sentisse tão à vontade quanto gostaria; na realidade, ele realmente queria conseguir se soltar, mas era como se houvesse algo a mais que o restringia, e ele simplesmente não conseguia saber o que era, mas que o fazia sentir como se sua versão retraída não fosse seu verdadeiro eu.

Por sorte, Kin decidiu abstrair-se de sua quase crise existencial quando sentiu seu estômago reclamar. Fazia tempo que ele não comia alguma coisa além do frappé de café com laranja, portanto, resolveu seguir o conselho de Anmy e aproveitar nem que fosse apenas o buffet.

Sem conseguir evitar pelo caminho algumas fotos por paparazzi e saudações reverenciadas de rostos surpresos ao ver o Rei Supremo ali, Kinmyuu enfim chegou ao chegou ao salão principal onde o buffet estava sendo servido. O espaço era uma combinação impecável de sofisticação e alegria tropical, com mesas de mármore branco com detalhes dourados dispostas ao redor de um amplo deck de madeira polida. Lustres de cristal em formato de conchas pendiam do teto, espalhando uma luz suave e dançante, enquanto ao fundo, uma banda ao vivo tocava um jazz descontraído misturado a ritmos caribenhos. A música só o fez pensar mais em sua rainha, já que tocavam a melodia de “La Isla Bonita”, um dos clássicos sucessos da cantora Mewdonna, que Anmy adorava.

Mesmo com outro suspiro desejando que sua amada também estivesse ali, ele tentou não deixar de apreciar o ambiente ao redor. Kin se dirigiu até o centro do salão, onde uma enorme mesa estava decorada com frutas tropicais artisticamente dispostas, flores exóticas de pétalas brilhantes e esculturas de gelo em forma de felins sereias e pequenos narvais.

As opções gastronômicas eram igualmente impecáveis. Kin observou fileiras de pratos luxuosos dispostos para os próprios convidados se servirem, e escolheu um prato moderado, com uma porção de lagostins dourados, um pouco da salada de algas arco-íris e um espetinho de lula flambada. Com o prato na mão, ele caminhou pelo salão, procurando relevar todos os olhares curiosos e os cochichos que o seguiam.

Kin escolheu um lugar próximo ao bar, em uma mesa alta e elegante, de onde podia observar tanto o buffet quanto a pista de dança ao fundo. Sentou-se com um suspiro, descansando por um momento antes de acenar para o bartender.

— Um martini de expresso, por favor.

Pediu com um tom educado, enquanto o bartender rapidamente preparou a bebida, servindo-a em uma taça de cristal decorada com uma casca fina de laranja. Kin deu o primeiro gole e sentiu a mistura robusta do café gelado com o toque sutil alcoólico e cítrico, que combinava perfeitamente com o frescor de seu prato. Então por um breve momento,ele se permitiu relaxar, esquecendo-se de sua relutância inicial sobre estar ali.

No entanto, não muito tempo depois, Kinmyuu quase derrubou seu martini ao avistar uma figura peculiar na mesa de sobremesas, a alguns passos de distância. Ele piscou algumas vezes, acreditando estar enganado, contudo, o brilho aceso inconfundível daquela cabeleira dourada como o sol e a maneira irreverente com que o indivíduo se deliciava com uma fatia generosa de bolo branco não deixavam dúvidas. Era Ghaceus.

O próprio Deus Supremo da Luz, Criador de tudo que existia, estava ali, disfarçado de mortal, sentado casualmente em uma das mesas mais próximas ao buffet de doces. Ele vestia roupas despojadas, com uma camisa azul aberta no peito, revelando o medalhão do sol que brilhava como uma estrela viva, enquanto apanhava mais fatias generosas de bolo, cercado por uma plateia risonha que o incentivava a experimentar mais.

Kinmyuu estreitou os olhos. Talvez os demais felins ali não o reconhecessem, mas, como um semideus, ele conseguia enxergar além da postura descontraída e a energia vibrante que emanava daquele felin, ciente de sua verdadeira identidade. Além do mais, justamente por ocupar a posição de semideus arcanjo daquela Era, já havia se encontrado com Ghaceus em sua forma mortal noutras ocasiões. Todavia, nunca antes numa tão descontraída e informal. Por isso, toda a cena ainda parecia surreal pra ele.

A serenidade e a informalidade com que o deus provava a fatia de bolo e mergulhava um garfo em sua textura macia, enquanto saboreava o doce com um sorriso satisfeito, pareciam até um pouco fora de lugar para uma entidade pertencente ao mais alto plano além do mundano.

— Não pode ser… — Kin murmurou para si mesmo, inclinando-se para frente como se sua visão pudesse estar pregando uma peça.

Ghaceus estava claramente à vontade. Ele lambia um pouco do glacê que ficara no canto da boca, olhando para a mesa de sobremesas como quem planeja uma estratégia para experimentar ao máximo cada uma delas. Seus olhos brilhavam com a mesma luz calorosa que Kin poderia associar à aurora, mas naquele momento carregavam uma simplicidade desconcertante, como os de uma criança deslumbrada em um parque de diversões.

O Rei Supremo ficou congelado, dividido entre se aproximar ou fingir que não havia visto nada. Afinal, não é todo dia que se encontra o próprio Criador em um ambiente tão… descontraído.

Finalmente, reunindo coragem, Kin respirou fundo e caminhou na direção de Ghaceus. Ao chegar mais perto, percebeu ainda mais detalhes que o deixaram perplexo, como o bracelete simples com a inscrição "VIP", as lentes de óculos de sol repousadas sobre sua cabeça — claramente pelo look, visto que já havia escurecido —  e a descontração em seu rosto despreocupado, que era quase contagiante.

Foi quando Ghaceus ergueu o olhar e notou Kinmyuu se aproximando.

— Kinmyuu Terceiro! — exclamou Ghaceus, levantando-se e agitando os braços abertos, enquanto acenava animadamente como se estivesse reencontrando um velho amigo.

Realmente aquilo estava acontecendo, mas isso não impedia Kin de ainda se sentir incrédulo.
— Lorde Gha…

Ele ia completar a frase, porém, antes que pudesse Ghaceus rapidamente moveu um dedo em frente aos lábios, claramente querendo manter seu segredo (embora os cabelos intensamente brilhantes e chamativos, assim como seus olhos que pareciam tão acesos quanto o sol da manhã, denunciassem que havia algo bem diferenciado com aquele “felin mortal”).

— Shh…! Sou só “Ghamew” aqui.

Ele meio que sussurrou, piscando com um sorriso malandro.

— Ah… s-sim, claro…
Kinmyuu respondeu olhando em volta, preocupado que alguém pudesse ouvir.

O deus felin gesticulou para que o rei se sentasse ao seu lado.
— Meu caro Kin 3, que surpresa maravilhosa te ver por aqui! Você precisa experimentar esse bolo! É simplesmente divino, e pode acreditar quando eu digo isso, hahaha!

Kin piscou, perdido entre a reverência e a perplexidade, enquanto Ghaceus, despreocupado, cortava outra fatia.

— Miahn… Posso perguntar… err… O que exatamente o senhor está fazendo aqui?

— Celebrando, claro! — respondeu o deus despreocupadamente, enquanto um dos bots garçons do iate lhe trazia numa bandeja uma bebida tropical colorida, servida numa bela taça alta com um pequeno guarda chuva em cima, e dizendo com sua voz metálica e robotizada que havia sido “outra cortesia do cavalheiro da mesa 3”. 
— Eu não perderia uma festa como essa! Música, luzes… e eles preparam um bolo branco de três metros de altura, dá pra acreditar?! Não poderia ser mais perfeito! Simplesmente deslumbrante!

Ele completou, virando o rosto na direção da dita mesa três e sorrindo desinibido em agradecimento.

Kin ainda estava tentando processar tudo, enquanto a resposta de Ghaceus só o fez olhar mais intrigado para a pulseira de identificação VIP que estava no braço esquerdo do deus disfarçado.

— Certo mas, isso quer dizer… que então… o senhor foi um dos convidados pra essa festa?!

Ghaceus pareceu pensar um pouco, enquanto lambia uma boa quantia de cobertura branca de seu garfo.

— Bem… Os mortais tão talentosos que prepararam esse bolo esplêndido o devotaram a mim, para que abençoasse esta viagem e tudo corresse bem nesta celebração tão festiva. Então posso crer que isso conta como um convite, não?

O deus felin concluiu com um sorriso divertido, enquanto observava cuidadosamente a mesa posta, decidindo qual seria a próxima sobremesa que ele iria atacar, mas junto a mais um pedaço de bolo, obviamente.

Embora fosse uma entidade suprema e criador de toda a vida, Ghaceus não era um deus distante. Tanto ele como os demais deuses guardiões costumavam comparecer aos festivais e celebrações sagradas devotadas a eles em seus templos — porém de uma forma mais etérea e divina — para manter sólido o vínculo com seus descendentes mortais. E era de conhecimento geral, talvez desde o início dos tempos, a preferência curiosa e quase obsessiva de Ghaceus a bolo branco. Portanto, era comum quando em busca de suas bênçãos sobre algo mais específico, alguns felins preparassem um belo bolo e dedicassem ao deus da Luz como um agrado a mais.

— Até entendo mas, ainda assim, por que o senhor…

Antes que Kin continuasse, Ghaceus sutilmente o interrompeu novamente.

— Ah, vamos meu querido Kin, não precisa me chamar desse jeito. O “senhor” está no céu. Hah! — o deus felin gargalhou alto — Fiz uma piada! Eu sempre quis dizer isso!

Ele exclamou divertidamente, enquanto saboreava uma garfada bem servida de creme com pedaços morangos.

Kinmyuu estava tentando ser respeitoso, mas nesse momento, nem mesmo ele “tankou” a fala de Ghaceus.

— Tá, e não era exatamente lá que o se… quer dizer, que você deveria estar?

Kin aproveitou para perguntar, já que os felins que antes estavam rodeando Ghaceus, rindo e comemorando com ele — como se fosse a personalidade mais popular daquele iate — agora tinham dado licença e se afastado, ao ver que ele conhecia o Rei Supremo, para que pudessem conversar de maneira mais reservada.

— Se está se referindo ao primeiro céu, Angeligard, lá é responsabilidade do meu amado filho Kamy-My… Ou digo, Kamyel. Ele tem vergonha quando o chamo por seu apelido na frente de outros, heh. Agora, se se refere a Teodise, posso afirmar que também estou lá. Afinal, K3, você nunca ouviu outros mortais dizerem que “Deus está em todos os lugares”? Pois é, e eu estou mesmo, é uma das vantagens de ser Onipresente, hahaha!

Ghaceus riu, aparentemente sentindo muito prazer em ser literal e ao mesmo tempo irônico.

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