Conto IV - A Fuga de Elih

Elih acorda vendo-se na mesma sala fria e úmida que se acostumara a ver, iluminada por uma tocha tremeluzente na parede à esquerda. Sente a mesma cadeira dura que dormira. No lado oposto, a porta por onde seu capataz entrara e saíra nestes sete dias. O odor da própria urina, impregnada nas calças, já não lhe incomoda tanto e o sabor da fome preenche-lhe o estomago como uma refeição não digerida, e a saliva não lhe parece suficiente para umedecer-lhe os lábios.

A respiração difícil, o nariz quebrado e as dores no corpo lembram-no que ainda está vivo. Sente as mãos enlaçadas por uma corda, atrás da cadeira, e os pés amarrados, mas não à cadeira, agradece ao seu deus por isso. Então tenta ajeitar-se na cadeira e se arrepende de fazê-lo, sentindo nas costas o ardor dos açoites que recebera. Ao menos a dor lhe ajuda manter a consciência, tão vacilante ultimamente.

As lembranças começam a voltar numa ordem não continua, a surra, a chegada à Torre Solitária, a fuga, ser cercado pelos inimigos. Varinhas, espadas, o duro chão quando sua cara fôra passada nele, uma explosão, vê-se amarrado à uma tora com os braços esticados por cordas, as chibatadas, o riso sádico do inimigo. Os rostos dos seus captores lhe interrogando, lhe açoitando. Socos e chutes, e o nariz. E lembra ainda mais. Escrever uma carta como seu captor mandara, contar a ele os planos da Ordem.

A sensação de impotência volta à mente de Elih, ter sua mente revirada e seus segredos lidos. A raiva e o medo transbordam por cada fio de cabelo, e ele se lembra da carta que escrevera, e do quanto esteve acordado todo este tempo, assistindo tudo sem nada poder fazer, sua boca entregara tudo o que seu captor pedia sem conseguir resistir. Lembra também da escuridão, e acordar, e outra vez escuridão, pois assim tinha sido por muitas vezes, lembrando de despertar e adormecer. Neste momento de total impotência Elih encontra uma luz como se brilhasse num canto escondido da sua mente.

Numa sala, a vinte metros da outra, um homem tatuado lava as o rosto numa bacia com água, após de exaustivas horas de interrogatório. Ele senta-se na cadeira e bebe um gole de vinho cuja garrafa descansa sobre a mesa, ali relaxa adormecendo. Até que lembra assustado, que deixara os pés do prisioneiro livre. – "Para onde aquele infeliz vai ferido daquele jeito?" – ele pensa enquanto relaxa e adormece.

Elih se levanta, com o corpo arqueado devido ao tronco preso à cadeira, e assim vai pulando até a tocha, que a derruba com a cabeça, tal como um cachorro usando o focinho. tenta deitar, sem sucesso, então deita o corpo pro lado, caindo no chão. O baque da queda é abafado pela porta fechada, e não acorda o homem na outra. No chão Elih se debate até posicionar a corda, entorno dos braços, junto à tocha. O calor da chama se torna doloroso, tão perto, ele serra os dentes suportando, mas queima os fios da corda rapidamente. E ele move os braços livres. Então liberta o braço debaixo do corpo, e começa a desamarrar os pés. Ele se liberta.

O vigia já sentia o calor dos seios das meretrizes, que procurava semanalmente, quando acorda. Ele dá um longo e último gole de vinho, e se levanta. – Hora de voltar ao trabalho. – ele resmunga e volta à sala do prisioneiro.

Quando abre a porta, encontra a sala escura, talvez a tocha tenha se apagado, ele pensa, mas a cautela o faz deixar esta ideia, ele saca a varinha antes de adentrar a sala. E antes que termine de executar o feitiço de luz algo o atinge na cabeça, derrubando-o. Elih, que lhe aguardava na parede ao lado, não dá tempo ao inimigo, pisando forte em sua cabeça. Rapidamente vasculha-lhe os bolsos em busca das chaves.

Com chaves em mão, e também a varinha do inimigo, Elih deixa a sala. Caminha sorrateiro pelo corredor, sem a certeza de que matara seu captor, e entra na primeira sala que vê. Se depara com estantes vazias e uma cadeira igual a que usara como arma. Logo vê, no canto escuro da sala, sua varinha e seu cinto, este com cimitarra na bainha. Sem demora veste o cinto e pega sua varinha. – Está quase seca. Os desgraçados extraíram a energia daqui. Merda! – pensa ele ao examiná-la. Frustrado coloca as duas varinhas na calça, na lateral, e deixa a sala.

Elih passa furtivo pelos corredores e salas, evitando os poucos guardas que encontra, matando os dois únicos que lhe vêem. Numa das salas vê uma garrafa cuja água bebe num só gole. – "Poucos guardas, Ermaq deve ter levado o restante pra Zazimar. Acho que ele não esperava que eu pudesse escapar". – pensa Elih enquanto corre. Até chegar numa porta que, pela luz passando embaixo da fresta, imagina ser a saída.

Elih gira a maçaneta. Trancada. Não demora achar, no molho de chaves, a certa, e com ela destranca a porta. Abre-a com cautela e espia o deserto lá fora. Sente a luz do dia, tão cálida após dias no cativeiro. Ao sair, olha em redor à espera de mais guardas, e pra seu alivio, não vê nenhum. Então deixa a torre.

O feiticeiro abre os olhos, sente na bochecha o frio chão, e na lateral da cabeça a dor latejante. Levanta-se irado, dando falta do molho de chave, e de sua varinha. – "Merda! Como ele pôde passar por mim? Tenho que pegá-lo. Antes que ela saiba". – pensa ele.

Logo entra na sala onde deixara as coisas do prisioneiro, tudo fôra levado, exceto uma fita jogada no chão. O feiticeiro a pega e vai à outra sala, um pouco afastada, com vários vasos e frascos. Apressado, derruba um deles espalhando um pó marrom, com o qual desenha runas no chão. Um dos cacos de barro, do vaso quebrado, lhe serve para fazer um corte no braço, ele mistura o sangue ao pó enquanto murmura os versos de um feitiço. Ao deitar fita no centro do desenho, esta serpenteia antes de apontar rígida numa direção. – Agora pego este maldito! – diz o feiticeiro ao levantar, agora sabe onde está o prisioneiro, e pra onde vai.

Elih anda apressado pela planície árida vendo ao longe raros juazeiros que teimam viver neste ambiente. Ao chegar numa elevação olha ao redor, e se localiza. Até onde os olhos vêem, o Deserto de Al-Saet, as dunas de areia ao norte, e noroeste, e as colinas áridas ao sul. No leste, a Torre Solitária, e bem ao longe, as Montanhas Sem Retorno.

O sol escaldante lembra-o que não come nada decente a dias, seus captores deram-lhe o mínimo para não morrer de fome, teme ser vencido pelo deserto ou pela fraqueza do seu corpo, tão judiado pela torturas. Sua garganta implora por água, suas pernas doem a cada passo. Até parar moribundo junto a um arbusto, quase da sua altura, mal fornece uma sombra. Ao menos serve pro está pensando em fazer.

– Perdão grande Avelus! – diz ele antes de pegar sua varinha e com ela tocar a base do arbusto.

Com um único comando faz verter água da raiz, que esguicha em seu rosto, e mata sua sede. Enquanto bebe, segura num dos galhos enquanto mantém a varinha na base do arbusto. As folhas ressecam e caem, os galhos afinam, tornando-se quebradiços e todo o arbusto começa a murchar, como se a vida lhe fosse drenada.

Elih senta cansado, encarando o arbusto, retorcido e seco como se acometido pela mais severa seca. Culpado, enoja a si mesmo por ter tal vil recurso, para sobreviver.

Sob o sol a pino, escaldante como antes, se levanta, e vê cinco pessoas vindo da torre. Não precisa duma luneta para deduzir que são soldados, além dos três feiticeiros que o capturaram a uma semana. Elih abaixa-se e procura no oeste a frente um lugar onde se esconder, avistando ruínas altas centenas de metros adiante.

O captor caminha a passos firmes colina acima, acompanhado de quatro soldados. O vento, pouco mais que uma brisa, balança seu manto que um dia fora branco, revelando o cabo da espada sob o manto. A fita negra, em sua mão, aponta o arbusto lá encima.

– Ali. – ele ordena e segue pra lá, onde, chegando, vê um arbusto retorcido e morto. A fita se move ereta indicando, como uma bússola, outra direção. As ruínas.

O que um dia foram, segundo boatos, uma cidade habitada por homens dez vezes maiores, agora são apenas ruínas, tão antigas e destruídas pelo tempo, que parecem grandes rochedos, alguns de trinta metros de altura, com várias trilhas. Caberia ali, toda uma frota de galeões. A fita oscila enquanto aponta. – Está correndo. – sussurra o feiticeiro. Até que a fita para. Ele pondera, julgando qual o melhor caminho.

Enquanto eles caminham sorrateiros pelas trilhas, Elih os observa à espreita, através de um buraco numa parede. Vê o feiticeiro olhando em sua direção, a mesma que uma fita de pano aponta. Felizmente o buraco da parede não é grande o bastante pra lhe descobrirem.

O homem faz sinal e os homens se espalham, o que fica com ele tem a espada à mão, e os outros dois seguem com os arcos prontos. A fita sobe vagarosa trinta graus, e o feiticeiro entende que seu alvo está no alto.

Os dois soldados de arco contornam pela trilha da direita à procura do fugitivo, enquanto o feiticeiro segue dá a volta pela esquerda, com seu soldado à frente, por precaução. Eles param junto a uma rocha. Ambos saem de traz dela, o feiticeiro com a braço estendido e as tatuagens brilhando fracamente, e o soldado a frente, de escudo e espada prontos, em defesa do feiticeiro. O feiticeiro vê seu alvo agachado junto a uma pedra. Seria uma emboscada perfeita.

Com um comando, liberta o poder nas tatuagens que saltam vivas do seu braço, e voam como um enxame de vespas assassinas. O enxame zumbe alto atacando por Elih como se não existisse, e o feiticeiro, frustrado, percebe que atacara uma ilusão.

– Senhor! – avisa o soldado, o feiticeiro percebe a fita apontar pra cima, e vê, tarde demais, Elih encima duma coluna, com a varinha apontada.

Elih usa a magia da varinha roubada, e dela voa um crânio sombrio envolto numa nevoa escura, atingindo certeiro o rosto do feiticeiro. A força do impacto joga-lhe contra a parede. O estrondo chama a atenção dos dois soldados que chegam, pelo outro lado, ao local do ataque. Ali vêem o feiticeiro, seu superior, caído com o sangue escorrendo pela cabeça. Um lhe presta auxilio enquanto o outro sai a procura do terceiro soldado, não tarda encontra-lo, e ouve dele o que acontecera.

Do alto da construção em ruínas Elih observa, escondido atrás de uma pedra, os três se aproximarem por todos os lados, um dando a volta pelo chão e os dois, por não vê-los, deduz que estejam escalando. Sua cimitarra desiste de usá-la tão rápido quanto a toca, debilitado como está não está, e em menor número, a vitória lhe parece incerta.

Após subir três metros quase verticais o soldado caminha cauteloso com espada e escudo, enquanto o outro prepara a flecha no arco longo, dando-lhe cobertura. Andam pelo terraço, que mais parece um imenso rochedo, alertas ao redor, se movem devagar, tentando inutilmente ocultar a presença, que o tilintar das armaduras denuncia.

Eles vêem um turbante elevado acima de uma rocha, e se preparam para o ataque. Então a flecha voa e o outro soldado salta com a espada em riste. Pra frustração de ambos, há somente o turbante encima duma rocha. Elih sai de trás duma rocha, bem ao lado donde o arqueiro passara, e aponta a varinha, dela voa uma forte rajada, jogando ambos lá embaixo. – "Se isso não matá-los, a queda mata". – pensa ele.

O último soldado ouve a estrondosa queda. Ao ver os dois companheiros estirados no chão, sai correndo.

Lá de cima Elih ouve o soldado correr, logo o vê se afastando pelas ruas em ruínas. Elih pega o arco e a flecha, caídos na beira do terraço e mira no soldado cada vez mais distante. Elih mira a única flecha, vendo o soldado correndo afoito. A flecha voa no ar e atinge as costas do soldado, saindo pelo peito. Ele cai na areia quente do deserto gorgolejando sangue.

Elih vai até a beirada e vê os dois lá embaixo. – "A queda foi suficiente. Bem, ainda resta energia nesta varinha, mas se os dois magos vierem atrás de mim, isso não vai adiantar". – pensa ele.

Elih desce até o corpo feiticeiro e pega a fita preta caída junto ao corpo dele. – A fita que eu usava pra prender a varinha no cinto, usou num feitiço de rastreio, foi assim que ele me seguiu. – ele diz. Então senta-se na sombra de uma construção e traça um plano.

Após algum tempo se levanta, e analisa a disposição dos corpos, e os ferimentos de cada um. O corpo caído fora das ruínas, morto pela flecha lhe parece ideal. Ao ver o ferimento agradece ao seu deus pela flecha ter atingido acima da armadura, pois a retira toda. Elih veste a armadura do defunto e veste sua roupa nele. Então, com sua bainha, traça um círculo envolta dele. – Bem, agora só falta lembrar os versos da magia. Se eu a tivesse usado mais vezes com certeza me lembraria. – diz ele.

Elih escreve alguns versos na areia tentando lembrar, e lamenta não ter seu grimório. Após muito esforço consegue lembrar, já perto do fim da tarde. Então dá seguimento ao plano, Elih faz um corte em seu braço e goteja um pouco de sangue no corpo dentro do círculo, arranca alguns fios de cabelo de si e colocá-los dentro da boca dele. De pé com ambas as mãos estendidas sobre sua vitima Elih profere verso após verso.

O defunto começa a mudar, torna-se mais alto e menos forte, o formato da barba e do cabelo, o tamanho, os pelos, os dentes, até que todo o corpo seja como ele, exatamente igual. Olha receoso, porém satisfeito. – Elih matou todos aqueles homens, tentou partir, estava ferido, aqui caiu morto. – diz ele enquanto ajeita o corpo deixando-o na mesma posição que morrera horas antes.

Então vai embora pro oeste levando consigo os cantis recolhidos dos corpos, no deserto são muito bem vindos. – Espero que meu plano saia como planejado.

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