Conto I - Horror em Aqbah

   Kalil desmonta do cavalo baio e o amarra sem demora à uma aroeira, uma das poucas árvores na paisagem árida e seca. A brisa que começa soprar é como um alento nesta tarde quente de primavera, balançando suas vestes cujo linho tem o tom da terra onde pisa, o Deserto de Al Saet.

   Seus olhos, tão escuros quanto sua espessa e bem alinhada barba, encaram as rochas no sopé da colina à sua frente. Entre as rochas, uma fenda cujo interior é escuro como a face do abismo ameaçando engoli-lo. O cavalo, seu fiel companheiro, logo busca alívio na sombra da aroeira, e resfolega ao notar um odor fétido vindo da caverna, um aviso que seu dono parece não compreender.

   Kalil leva seu cantil à boca, mais pela ansiedade do que pela sede. O frescor da água faz surgir um sorriso no semblante sisudo, fazendo-lhe aparentar menos do que seus trinta e poucos anos. Ele olha o cabo de sua cimitarra descansada na bainha, como se vê-la lhe encorajasse, embora no fundo deseje não usá-la, pelo menos não hoje.

   – É Rufus, esta é a parte chata de ser um caçador. A gente passa muitas tardes sozinho patrulhando estas estradas. Só você é quem sabe, está sempre comigo.

   – Por que os guardas do império não fazem isso? – ele pergunta a si, como se repetisse a pergunta do cavalo. – Rufus, eu já expliquei isso! Não há muitos como eu por aqui, posso acertar um calango na penumbra a cinqüenta metros, e no claro então nem se fala. E posso seguir o rastro de uma presa por dias a fio. Sem falar que sou bem rápido com as mãos. Modéstia a parte eu caço melhor que dez homens.

   – Convencido eu? Não Rufus, sou até modesto. Você sabe que sou bom. – ele bebe mais um gole do cantil. – Sabe Rufus, hoje é aniversário do meu filho, ele vai fazer oito anos, já está um meninão esperto. Amanhã vou ensiná-lo a montar, você vai gostar dele.

   Rufus roça suavemente o focinho em seu dono que lhe retribui com um afago. – Se ele vai ser caçador como o pai? Ah, queira o destino que não. Este trabalho é bem perigoso. Bem, mas alguém tem que fazer o trabalho difícil né? Já que aqueles magos não fazem, eles só ficam nas suas bibliotecas, fazendo sabe-se lá que tipo de bruxaria.

   Kalil retira seu bordão, que estava junto à sela de Rufus, e com ele traça um círculo envolta do cavalo, e após recita uma antiga oração. Ele afivela novamente o bordão na sela. – Não precisa se preocupar Rufus, tá tudo bem. – ele volta seu olhar para a caverna a frente, com a confiança recobrada, e segue em direção à ela. Seu cavalo se agita novamente.

   – Rufus! – ele fala com autoridade. – Quieto! Coragem rapaz!

   Kalil adentra a caverna curvado evitando esbarrar seu arco longo nos rochedos da entrada. – Se tudo o que ouvi forem só boatos minha aljava vai voltar tão cheia quanto agora. – ele pensa enquanto penetra a escuridão que se adensa a cada passo. Vendo que o local é mais escuro do que seus olhos treinados podem ver, acende sua lamparina e continua.

   Um odor de carniça vem à suas narinas como uma saudação de mau gosto. – Isso não é cheiro de animal morto, tem gente morta por aqui. – pensa ele, mal ousa dizer temendo ser ouvido. Então desembainha sua espada tão silenciosamente quanto consegue e caminha apreensivo.

   O caminho é sinuoso e pouco inclinado como se penetrasse suavemente na terra, Kalil torce o nariz sentindo o incomodo fedor aumentar. – Esta com certeza não é a toca de um troll, a julgar pela altura da entrada. – ele pensa em meio ao silencio perturbador, o som dos próprios passos é tudo o que ouve. Nem a brisa lá fora lhe chega aos ouvidos.

   O túnel rochoso se mostra mais longo do que Kalil esperava. Ele para um instante, mas continua ouvindo passos. Então percebe que os passos não são seus. – Merda! Tem mais alguém aqui. – ele pensa, nota que os passos vêm do túnel à frente, o lado desconhecido. Estica a mão da tocha pra ver melhor, quando vê surgir uma silhueta humanoide com rosto oculto pela escuridão.

   Kalil não consegue distinguir o rosto nem as vestes do homem adiante, se é que é homem, e Kalil intimamente torce pra que seja. – Auto! – ele ordena. – Quem está aí? Identifique-se! – e novamente nenhuma resposta. Então se aproxima devagar, ansioso por iluminar o homem e descobrir o que a escuridão oculta.

   É quando o estranho investe na sua direção. – Pare! – mas seu grito é ignorado. E quando a luz da tocha ilumina o estranho Kalil arregala os olhos, o fôlego abandona seu peito. O estranho corre com um furor selvagem, saltando sobre Kalil, que joga seu corpo de lado, guiado pelo instinto, conseguindo se esquivar do agarrão. Logo que pisa o chão o estranho tenta novamente agarrar Kalil que reage com um rápido golpe de sua espada, de cima pra baixo. O estranho cai estirado no chão com um talho vertical no seu peito. Kalil olha atônito duvidando dos próprios olhos.

   O estranho traja uma calça bem desgastada e trapos que já foram uma túnica branca, a bem arroxeada e inchada como se fugido do próprio funeral. Um sulco na bochecha direita, tão fundo que se ver pedaço do osso. A falta de um maxilar deixa a parte inferior da boca frouxa e escancarada, destacada ainda mais pela falta de barba, a mesma situação que a cabeça careca. No lugar que outrora havia o olho esquerdo jaz apenas o buraco oco, ocupado por um verme que por pouco não caíra com a queda da criatura, quem sabe estivesse devorando o que sobrou do olho esquerdo. Já o olho direito fita Kalil tão arregalado como se prestes a saltar. Se o homem porta sapatos, ou o estado de suas mãos, Kalil não sabe, pois seu olhar está fixo no rosto do cadáver que acabara de lhe atacar.

   Mesmo com os dedos firmes entorno do cabo da espada esta treme enquanto sua mente luta para entender o que testemunha. – Como pode um cadáver andar e saltar? – O rosto lembra um velho conhecido, que Kalil não vê faz semanas, recusa-se acreditar que a criatura possa sê-lo. Mas sua aflição parece longe de terminar ao perceber que o cadáver, rapidamente se levanta.

   Se antes o instinto de sobrevivência falou mais alto, agora é o medo quem assume o controle. O caçador corre tão rápido como não fazia a muito tempo, quase pode sentir o bafo fétido da criatura em seu cangote. Nenhum animal ou fera que caçara, por maior que fosse, jamais lhe causou tamanho pânico. E ele acaba deixando a tocha escorregar de sua mão enquanto corre. Neste momento alcançar seu cavalo e sair daí é a única ideia em sua mente. Mesmo na escuridão ele encontra o caminho.

   O coração bate tão forte como se o peito fosse explodir, a respiração cada vez mais vacilante, sufocada pelo pânico que lhe toma conta. Finalmente ele vê a entrada da caverna, a claridade do dia como uma esperança para este pesadelo. – Falta pouco. – E quando ele finalmente vira na curva, se depara com outro cadáver, lhe encarando de pé no caminho, pronto para atacar-lhe. O grito de Kalil escapa da caverna como se ela própria gritasse em agonia no deserto. Os boatos são reais. O terror está em Aqbah.

ELES estão em Aqbah!


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créditos da capa: Ingred_O


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