A Morte veste Branco - Sakusa
Este conto é voltado para o público adulto conforme orientação etária estipulada na sinopse, este perfil repudia qualquer tipo de ato com cunho abusivo, manipulador ou que corrobore um ato criminoso. É uma obra ficcional inserida num contexto de situações extremas, alguns temas tratados podem ser de natureza sensível.
Alertas para: Sangue, Abuso, Mortes, Palavras de Baixo Calão, Terror Psicológico.
Par: Sakusa Kiyoomi
A frente da enorme mansão branca que se erguia no meio do nada, me arrependi das decisões tomadas nas últimas semanas. Eu no caminho para o cargo de enfermeira chefe me vi recomendada pelo diretor do hospital a aceitar um trabalho numa clínica do interior, pedia-se por uma pessoa entendida, discreta e disposta a servir de ajudante para o único médico da cidade.
O salário não era ruim, pelo contrário, o mês de trabalho adiantado já foi de grande ajuda pagando um táxi para essa casa no meio do nada. Com certeza o velho rechonchudo que fez a corrida ficou mais do que feliz quando as incontáveis notas deixaram a minha carteira, ele nada sabia do lugar mas o tal médico parecia bem famoso. Afinal ele que morava na cidade vizinha já havia ouvido falar do tal doutor.
Não parecia haver pacientes no momento, e as instruções foram muito específicas. Terça-Feira até às onze da manhã, nem um minuto a mais.
Com uma mochila nas costas e a mala em mãos andei até a entrada subi a pequena escada de dava para a varanda e toquei a campainha, a princípio pelo silêncio me perguntei se havia de ter alguém na enorme casa. Todas as janelas com vidros fechados com cortinas também de cor branca.
Deste tapete de boas-vindas, as cadeiras de descanso chegando às flores no pequeno jardim, todas brancas.
Deveria ser a cor favorita do médico.
A porta se abriu num solavanco e parada junto a ela um homem, não muito mais velho do que eu mesma, um jaleco impecável sem uma dobra sequer, as mãos cobertas por luvas, uma máscara no rosto e cabelos que se distribuíam em ondas. Não disse nada, mirou em mim os olhos afiados encarando da cabeça aos pés a princípio julguei suas feições duras demais para alguém tão novo.
-Você gosta de branco?
Lançou-me a primeira pergunta, não sobre qual era meu nome, se havia feito uma boa viagem. Mas sim sobre a cor.
-Suponho que sim – respondi sem saber exatamente o que deveria falar – É uma cor pura, limpa.
Me corrigi quando o vi franzir a respeito do primeiro adjetivo que dei, mas a segunda pareceu satisfatória o suficiente pois ele abriu a porta me dando passagem, indicando especificamente para deixar os sapatos a porta e usar dos chinelos, brancos, alinhados ao lado da entrada.
Tudo parecia estranho, mas precisava causar uma boa impressão ao meu pagador, já tinha planos para os salários dos meses seguintes e precisava deles. Não se ofereceu para me ajudar com as malas e tão pouco pareceu chamar alguém para que o fizesse apenas andou em direção a escada que dava de frente para a porta em silêncio.
Como esperado era gigantesca, a casa, mas ao mesmo tempo completamente vazia, o homem que eu supunha que seria o Doutor Kiyoomi – pelo menos esse fora o nome assinado pelo contratante – andava com as mãos nos bolsos com passos firmes e ritmados.
Na ala direita do segundo andar, a última porta do corredor. Era onde ficava meu quarto.
O homem indicou para que eu mesma abrisse, minimalista como todo o resto, uma cama, uma cômoda e uma pequena mesa. Adjacente havia um banheiro simples, mas mesmo assim suficiente.
-Seu cronograma e tarefas estão na folha em cima da mesa. Não tenho pacientes às terças feiras mas começaremos amanhã às sete horas em ponto.
A porta foi batida logo após as palavras proferidas.
-Encantador – resmunguei tomando algum tempo para observar melhor o quarto, da janela à vista dava para o jardim atrás da casa onde um salgueiro-chorão se assentava sozinho, era alto talvez uns vinte metros, as ramas pendentes caiam em cascatas de um verde pálido e triste. Balançando vagarosamente enquanto uma brisa parecia dançar por entre as folhas.
No chão em volta dele um círculo perfeito de terra vermelha e depois disso uma grama verde bem aparada. Finalmente alguma cor naquele lugar.
Andei até a mesa onde tinham as minhas tarefas, café da manhã, os horários das consultas, almoço, mais consultas e jantar. A mesma rotina todos os dias da semana, exceto às terças e aos domingos, dias extremamente agitados me aguardavam pelo visto.
Pelo menos pegava sinal de internet, teria alguma coisa para me entreter - já que nem uma televisão tinha por perto, ou pessoas - a cidade ficava a bons quarenta minutos de distância. Não tinha um carro, apesar da carteira de motorista estar no mesmo lugar na carteira a anos, então dar uma volta estava fora de cogitação.
Me escorei na mesa apenas para poder digitar uma mensagem para minha mãe, ela deveria estar no tratamento então provavelmente não veria até a noite. Era simples, apenas uma frase avisando que cheguei bem, teria mandado uma foto do quarto se a mesinha não tivesse arrastado quase me fazendo cair para trás.
Os móveis eram antigos, não deveria ficar me encostando neles descuidadamente abaixei segurando a mesinha pelos pés. Não a puxei logo de início mas sim tomei nota da base completamente arranhada eram finas demais para serem humanas, mas não tinha nenhum animal a vista também.
A coloquei na posição original antes de mirar a mala para que pudesse a desfazer, não tinha tantas coisa mesmo. Que ganhasse um tempo até o horário do almoço que estava marcado para meio dia segundo a agenda do doutor, quem sabe no mais esperançoso dos sentimentos fosse menos estranho do que a minha chegada.
Ilusão que foi criada apenas para que fosse completamente quebrada quando me vi a cinco cadeiras de distância do médico depois de ter levado um sermão arrogante. Prometi com um sorriso que não iria se repetir.
Era pelo dinheiro, fazia isso pelo dinheiro.
A comida era boa, e não era apenas branca. Embora muito dos elementos dos pratos fossem claros e o prato principal fosse de peixe. Me perguntei se foi uma entrega ou de fato foi preparada na casa, afinal não vi ou ouvi ninguém nos momentos em que o acompanhei na refeição.
Doutor Kiyoomi se levantou e sumiu em meio aos gigantes corredores no momento em que coloquei os talheres de volta à mesa depois de terminar de comer. Inclinei-me na cadeira para ver por onde ele foi, um homem bem peculiar ele era.
O tilintar das porcelanas praticamente aos meus ouvidos me fez assustar, uma mão pálida e magra tomava meu prato e colocava no carrinho.
-Jesus Cristo – levei a mão ao coração pela figura fantasmagórica que estava ao meu lado.
-Não usamos o nome do senhor aqui – ela respondeu com um tom leve, calmo quase sussurrado.
Olhei para os lados para ver que ela já tinha tirado boa parte dos pratos sujos da mesa, bem pelo menos sabia que não estava sozinha na casa. – Claro, me desculpe. Não achei que tivesse mais alguém na casa.
Pigarrei e me levantei batendo de leve a perna na mesa na hora de sair – [Nome], [Nome] Conway sou a nova enfermeira fui contratada para ajudar Doutor Kiyoomi. – estendi a mão para a garota.
Dolorosamente magra, pálida como eu havia observado, mas provavelmente pela condição de albinismo que levava já que os cabelos e cílios também eram desprovidos de melanina. Olhou minha mão estendida por alguns minutos antes de curvar os dedos magros respondendo o meu cumprimento.
-Ava – ela respondeu – Ava Costello, eu... Cuido da casa.
-Certo, entendo é um prazer Ava – disse – Precisa de ajuda com alguma coisa? Não me importo em ajudar com algumas tarefas.
Com cuidado e destreza ela voltou a colocar os itens de porcelana no carrinho – Não é necessário pode descansar, imagino que a viagem tenha sido um pouco longa.
-Agora que você disse me sinto realmente cansada – era verdade, foram algumas incontáveis horas de viagem até chegar a última etapa que foi o táxi – Talvez eu siga a sua sugestão.
Ava sorriu de leve – Nesse caso bons sonhos senhorita Conway.
Retornei ao quarto até com algum vigor recém encontrado e me permiti desmontar na cama por algumas horas, surpreendentemente confortável apesar de todo resto do quarto ainda ser de móveis velhos. Quando finalmente voltei a consciência o sol já começava a se pôr.
Os fios de sol alaranjados atravessando pelas folhas dançantes do salgueiro enquanto o céu tinha os mais variados tons de laranja. Mas entre os ganhos algo pareceu se mexer chamando a minha atenção, cerrei os olhos na intenção de identificar o que era mas não consegui o que quer que fosse se mexeu rapidamente entre os galhos deixando apenas os ramos agitados para trás.
Se eu ficasse por ali no conforto do edredom provavelmente dormiria novamente, ficaria muito atrasada para a ceia da noite ou sequer desceria para à ter. Essa segunda me dizia que seria extremamente afrontosa para o doutor então que me fizesse útil e pelo menos desse uma explorada pela casa, já que havia visto apenas o caminho até meu quarto e a sala de jantar.
Levantei num pulo e em seguida sai do quarto, aquele corredor sempre foi tão comprido? Era estranho, apesar de grande não parecia ter tantas portas quanto deveria. Pelo menos do lado que o meu quarto ficava, a ala esquerda parecia ter mais quartos.
Desci as escadas com a mão apoiada no corrimão, teria que encontrar o caminho para o jardim, não vi Ava para que pudesse perguntar então segui o meu instinto. Passei pelo que parecia uma sala de recepção já que poltronas e uma pequena mesa estavam dispostas, na lateral dela uma sala de estar espaçosa com lareira e sofás grandes e estofados.
Tudo na cor favorita do médico.
Mas pelo menos as portas de vidro no fundo levavam para o lado de fora da casa, até o jardim vazio na parte de trás. Na soleira da saída uma pilha de sapatos descartáveis como os que eu usava, o doutor parecia ser bem rigoroso com a questão de higiene das coisas. Girei a maçaneta e a empurrei.
As folhas do salgueiro ainda balançavam mas não sentia nenhum vento ou brisa para que elas dançassem. Com passos lentos andei até a árvore com tronco de cortiça escura, os rebentos delgados e longos formavam uma copa arredondada, toquei na madeira de leve com certeza já estava ali plantado naquela terra a muito tempo.
Olhando para cima os galhos retorcidos sobrepostos uns aos outros fazia um emaranhado confuso e grotesco. Bem diferente da aparência misteriosa que a árvore tinha por fora, virei quando ouvi um farfalhar agitado, algo pulou na minha direção fazendo com que levasse os braços aos olhos e um grito assustado saísse da minha garganta.
Joguei meu cabelo para trás virando, apenas para encontrar Ava parada com os braços solenes a frente do corpo e nos pés dela um gato de pelagem branca parecia ronronar. Então era essa bola de pelos que eu vi pulando de galho em galho da janela do meu quarto.
Respirei fundo enquanto mantinha o maxilar travado, não querendo demonstrar mais do susto que eu havia levado. A governanta, se é que podia falar isso, se abaixou e pegou o felino nos braços. O bichano parecendo mais do que feliz de receber um afago atrás das orelhas.
- Vejo que conheceu Diamante.
-Sim – respondi, tentando não deixar meu sorriso falso tão aparente – Uma gracinha, é seu?
Ava balançou a cabeça ninando o animal – Uma das antigas enfermeiras trouxe ele para cá, mas quando ela se foi, Diamante ficou para trás.
-Parece apegado demais a casa.
Os olhos do bicho se encontraram contra os meus e o som de descontentamento foi praticamente imediato. Diamante não gostava de mim, e na minha posição não poderia dizer que o sentimento não era mútuo, Ava o soltou para que voltasse ao chão e sem esperar mais um segundo as patas bateram contra o chão em direção ao salgueiro subindo pelo tronco centenário logo em seguida.
Ava me indicou para que entrasse, com ênfase no descartar os calçados usados e pegar um novo par na soleira da porta. Dessa vez pelo menos estava no horário, naquela mesma noite depois de haver ceado – no mais absoluto silêncio – voltei ao meu quarto para que pudesse tomar um banho.
Se a minha rotina fosse como essa todos os dias, já estava vendo os quilos se acumulando em lugares que eu não gostaria. A rotina do hospital, intensamente agitada, costumava me ajudar a manter o número na balança onde eu queria. De maneira menos saudável do que o indicado, mas ajudava.
Aqui no meio do nada, precisava arrumar algo para fazer. Nem que fosse uma caminhada pela estrada estreita que ia da propriedade até a rodovia mais próxima.
Ainda com a toalha úmida envolta do pescoço sentei-me na cama alcançando o celular, a mensagem que tinha enviado para minha mãe ainda sem resposta. Algumas mensagens de grupos desinteressantes, minhas antigas colegas falando de como o novo cardiologista era um gato e apostando quem iria para a cama com ele primeiro.
Uma risada seca deixou a minha boca e enquanto digitava uma resposta para alfinetar o plano de umas delas uma ligação me interrompeu. E não era uma que eu poderia deixar para depois.
-Boa noite raio de sol.
O sorriso imediato, a voz tranquila quase cansada da minha mãe soou aos meus ouvidos como um bálsamo.
-Sol e noite numa mesma frase não combina muito – ela riu fraco do outro lado – Como você está?
-Melhor que ontem, os médicos parecem animados com uma recuperação.
Eles sempre estão, que motivação tem um paciente que sabe que vai morrer? Claro que esse pensamento ácido ficou trancado na minha mente.
-Que bom mãe, é melhor descansar.
-Você criança teimosa, pare de tentar me colocar para dormir. Me conte sobre seu novo emprego.
–Não tive muito o que ver ainda, mas assim que tiver eu conto. Bons sonhos.
-Bons sonhos.
E então foi finalizada, deitei-me encarando o teto. Sabia que no momento que eu descrevesse iria receber um sermão ou algo parecido sobre o doutor ser estranho. E como ela não concordava com nada daquilo, principalmente porque a maior parte do dinheiro era para pagar o tratamento dela.
Câncer... Continuava sendo uma vadia de doença.
Num impulso me levantei, próxima manhã às sete horas em ponto. Se eu perdesse tempo demais pensando, nunca acordaria a tempo. Pendurei a toalha num gancho do banheiro e andei até a janela para fechar as cortinas. Mas algo chamou a minha atenção.
Parado no meio do jardim próximo ao salgueiro de frente para a minha janela Diamante observava. A cauda balançando de um lado para outro enquanto mantinha a pose, os olhos verdes luminescentes como vagalumes por conta da noite pareciam estar perfurando a minha figura completamente estática.
Fechei as grossas cortinas interrompendo de uma vez o contato visual, qual seria o problema do gato? Estranho, o felino parecia quase ter uma feição maléfica por debaixo daquela pelagem doentiamente branca. Um calafrio me tomou a coluna.
Tentei ignorar achando que era apenas uma coisa passageira, mas tanto a casa quanto seus residentes eram peculiares, bizarros por assim dizer. Se moviam como aparições, em completo silêncio, e carregavam em suas sombras um agouro de má sorte.
Nunca fui religiosa, mas nessa primeira noite torci para que algum ser superior tivesse pena de mim e permitisse que eu presenciasse o nascer de um novo dia.
Era um cubículo, uma caixa, não mais de dois ou três metros de espaço para onde meu olhar seguia. Paredes nevadas, de um tom tão puro que me faziam arder os olhos e acima de minha cabeça uma lâmpada dançante que se mexia como um pêndulo de relógio.
Meus braços e pernas estavam firmemente amarrados a uma cadeira, no rosto uma mordaça fixa tinha o papel de abafar qualquer som que pudesse fazer.
O quarto me engolia aos poucos, fazia minhas entranhas revirarem minha mente latejante clamando por um pequeno momento de escuridão. Mas mesmo assim a maldito luz não parava de se mexer, do mesmo jeito, no mesmo ritmo e brilhando tão intensamente quanto antes.
Pulsos e tornozelos vermelhos pelas tentativas de fugas fracassadas, saliva que escorria pelo meu pescoço pelas tentativas clamando desesperadamente por socorro entre gritos sufocados. Me contorci, gritei, puxei meus membros até que a pele abaixo das amarras se desfizesse, arranhei por horas a madeira abaixo dos meus dedos até que as farpas que me furaram a pele se tornaram minhas amigas.
Sem parar, sem vacilar e então desisti.
Aceitei meu fim e o destino perverso que aquela câmera construída de aflição e agonia tinha especialmente guardado para mim.
Cansada ergui os olhos para a lâmpada, esquerda e direita, tic-tac, bom e ruim, céu e inferno.
Vida e morte.
No momento que esse pensamento cruzou a minha mente a luz se foi, me banhando na mais densa penumbra. Parecia bom, estar mergulhada no vazio abraçada pelas sombras depois de ser violentada pela luz intensa e o branco doentio.
Um clique e minha visão voltou, escarlate. Escorria pelas paredes, me alcançava a cintura e subia rapidamente. Uma torrente de líquido vermelho viçoso com cheiro de metal, algo pareceu bater contra a minha perna e os restos do que um dia fora um corpo humano subiu a superfície depois outro.
Podres, corroídos pelos vermes que lhe devoravam a carne fria. Abertos como borboletas mas sem um único órgão aparente, casulos vazios de morte. Bile me subiu a garganta, estava sufocando numa mistura grotesca de sangue e o meu próprio vômito quando do meio da sala a luz piscou.
Alva, novamente. E presa ao meu pescoço uma foice empunhada por uma criatura esguia coberta por um véu de luz de lua cintilante.
A morte veio para me buscar, vestida de branco.
Levantei num salto correndo para o banheiro os pés batendo contra o chão frio num som surdo me levando a abraçar o vaso sanitário jogando para fora o que quer que tivesse restado no meu estômago depois do jantar e da noite de digestão.
O pesadelo fora tão vívido, tão intenso, que ainda sentia minhas pernas banhadas pelo sangue viscoso. Podia ver quando fechava as minhas pálpebras os vermes inchados se revirando sobre a carne de tom esverdeado cheia de buracos e...
Segurei a borda da porcelana mais uma vez, usando minhas próprias lembranças para me sabotar. Precisava de um banho, talvez dois ou três para me livrar da sensação de náusea que ainda me tomava as tripas.
Por sorte acabei me levantando antes do previsto, então a sete em ponto estava na frente do escritório do doutor, com as vestes típicas de enfermeira. Um rosto pálido e olheiras.
E assim como eu, o médico também se apresentava para um dia de serviço. Não fez nada além de me direcionar um breve aceno de cabeça, reconhecendo a minha presença, antes dele mesmo abrir as portas que separavam o consultório do restante da casa.
-Vamos começar – ele indicou a cadeira.
Olhei em volta, não parecia ter ninguém por ali.
-Esse paciente precisa de alguma preparação para quando chegar?
Encarou-me com um ar de molestia, como se o que eu tivesse perguntado fosse o maior dos insultos feito ao homem.
-É para você.
Ainda não tinha conseguido compreender o que ele disse, então tomando uma prancheta e me entregando em mãos voltou a falar com uma voz entediada e levemente sarcástica.
-Não espera que eu coloque uma pessoa doente para cuidar dos meus pacientes. Os exames do hospital estão desatualizados, vamos tirar suas amostras de sangue e fazer todos os procedimentos corretos.
-Posso garantir que-
Não tive tempo de continuar com as mãos cobertas pelas luvas de látex, o homem segurou meu rosto forçadamente pela bochecha se aproximando do meu rosto.
-Olhos fundos, olheiras. Levemente esverdeada eu não chamo isso de estar bem – apertou meu rosto ainda mais sobre os dedos me olhou nos olhos antes de continuar – A próxima vez que você se recusar a fazer algo que eu peço será descontado diretamente do seu salário e sei muito bem que destino você pretende dar a ele.
-Uma mãe no corredor da morte lutando contra um câncer terminal numa clínica patética do outro lado do país. Eu sei tudo sobre você [Nome], então siga as ordens e continue recebendo normalmente.
As lágrimas vieram aos meus olhos mas me recusei a deixá-las cair, e o Doutor Kiyoomi soltou minhas bochechas empurrando meu rosto para trás.
-Sente-se.
Engoli seco e travei o maxilar. Faria isso pelo dinheiro e na primeira oportunidade me livraria daquela casa odiosa e moradores nefastos.
Foi com esse pensamento que me sentei na cadeira como me fora comandado, os braços apoiados nas madeiras laterais numa posição similar ao pesadelo que eu andava querendo expulsar da minha mente por algum tempo.
Em seguida prendeu minha circulação com uma borracha e seguiu com os exames. Foi o dia inteiro seguindo as ordens do homem em silêncio tendo agulhas, amostras e todo tipo de exame feito. Parando apenas para um breve almoço que foi supervisionado por Ava, a qual disse que não poderia comer coisas muito pesadas pois teria que fazer mais processos na parte da tarde.
Os dias seguiram e eu não passava de mais um espectro, uma aparição andando pela casa no mais absoluto silêncio. Não fazendo mais do que me era pedido e ajudando a atender os pacientes da melhor maneira que podia.
Pobres almas condenadas à enfermidade não tinham nada a ver com a minha vontade iminente de deixar a terra dos vivos ao pé do salgueiro dançante.
Minha iminente contribuição pareceu agradar o doutor pois soube nos dias seguintes pelo meu antigo diretor que fui bem elogiada, a mais prestativa das enfermeiras que tivera. O doutor mesmo declarou em voz alta para um coronel que veio tratar de uma dor nas costas certa vez.
-Estava necessitado de um toque feminino amigo – o velho bigodudo proferiu num sotaque pesado do interior enquanto eu o acompanhava e ajudava a descer as escadas da frente da casa.
-Essa casa sempre branca, parece viva com uma flor tão colorida quanto você enfermeira.
Sorri com o comentário dele, mal sabia que eu estava louca para ser arrancada dali.
-Bondade sua coronel – deixei que o mordomo dele tomasse seu braço auxiliando o mais velho a entrar no carro.
O doutor não desceu, apenas ficou acompanhando da soleira da porta aberta até que o último paciente do dia se fosse e o carro desapareceu na estrada sem fim. Subi os degraus trocando os sapatos na entrada como a regra da casa dizia.
-Ava vai levar seu jantar no quarto - Doutor Kiyoomi manteve as mãos nos bolsos enquanto parecia me ver descartar os pares – Tenho uma reunião e receberei alguns convidados, não deve em hipótese alguma sair do dormitório.
Mantive a boca fechada e passei por ele, não tinha trocado palavra alguma que não fosse relacionada aos pacientes ou ao trabalho. Também não tinha interesse, podia ser um homem belo por fora mas por dentro não era melhor do que um dos vermes que me consumia pensamentos desde o dia em que coloquei os pés nesta casa.
Era o salgueiro que balançava sem vento, o gato que me observava da janela e os ruídos de arranhões que me perseguiam todas as noites. Como a cadeira que me prendia, me esfolava a pele dos dedos num pesadelo constante.
Permaneci no meu quarto e um pouco depois das sete da noite batidas suaves soaram na porta, devia ser a minha terceira assombração.
Ava tinha uma bandeja nos braços com certeza menos cuidadosamente preparada do que a do Doutor Kiyoomi. Uma garota sabe as coisas e a antipatia crescente da albina não me passava despercebida.
Eu passava o dia ao lado do homem enquanto ela se mantinha nas sombras pálidas da mansão, as palavras que ele diria a mim eram em maior quantidade do que as feitas a ela. Minha presença de certa forma ameaçava a o pequeno mundo perfeito que achava que tinha ao lado de Kiyoomi.
-Obrigada Ava – tomei a bandeja dos braços dela. Mas antes que a figura fosse embora lancei a ela uma pergunta, mesmo que não esperasse uma resposta.
-Quem são os convidados que o doutor vai receber?
Então nos lábios rosados um sorriso se formou, inicialmente doce mas com uma crueldade escondida debaixo deles.
-Talvez deva ver por si mesma.
Vadia.
Abaixei a cabeça de leve sorrindo – Entendo. Obrigada pela refeição, boa noite Ava.
-Boa noite Srta. Conway.
Coloquei a bandeja na cama, não iria comer, não quando não tivesse uma única garantia de que não estivesse envenenado. Durante as refeições na mesa como me servia dos mesmos pratos que o dono da casa tinha certeza que estava salvo. Mas ali? Nem fodendo.
Em certo dia me vi na cozinha sozinha e tomei a liberdade de me servir de algumas coisas, frutas e não perecíveis na maioria. Uma maçã e uma fatia de pão velho teriam de ser o suficiente, não ouvi e nem vi nenhum veículo se aproximando, nem mesmo pela janela Diamante parecia me observar.
Mas o salgueiro estava lá, dançando com o nada sob a luz da lua. Um amante solitário.
O ruído que me atormentava a noite soou nas minhas costas, os arranhões feitos na prisão de madeira. Calafrios me subiram a espinha e virando lentamente eu vi.
Alinhado junto à mesa que tinha no quarto o próprio diabo de pelagem branca estava, arranhando a lateral do móvel com suas garras afiadas.
-Você só pode estar me fodendo – disse para o gato que nem me deu atenção – Todas as noites aquele ruído que me atormenta... É você? Seu merdinha.
Estava farta daquele bichano, eu não sabia por onde diabos ele conseguia entrar e sair do meu quarto. Andei em sua direção e como esperado, pela rejeição mútua, Diamante avançou no meu rosto em seguida correndo por todos os lugares possíveis do quarto, derrubando, quebrando e fazendo todo o barulho possível.
A bandeja de jantar caiu pelo chão, os cacos se espalhando e num ataque planejado Diamante se lançou as minhas pernas mordendo e arranhando com tudo que podia. É óbvio que o resultado foram alguns cacos de louça que entraram nas solas dos meus pés.
-Puta merda! – me sentei na cama com a ardência, era um senhor caco que achou morada na minha planta do pé. – É melhor que você fuja mesmo bola de pelos, ou seu destino vai ser o mesmo do Plutão! E surpresa você não vai ganhar um conto do Edgar Allan Poe depois de virar tapete.
Gotas de sangue pingavam no chão, claramente eu precisaria de pontos. Andei até o banheiro colocando o pé sobre a pia enquanto me equilibrava na outra perna, todos os palavrões passando pela minha mente enquanto tomava coragem para puxar o pedaço de caco.
-Você é uma garota grande, você consegue. Não pense, só faça.
Certamente era mais fácil fazer essas coisas quando era em outras pessoas. O caco bateu contra a porcelana da pia enquanto meu lábio estava firmemente preso entre os dentes, água corrente se tornando vermelha imediatamente. A toalha teve que servir de atadura improvisada enquanto eu fazia meu caminho para o consultório a fim de conseguir alguns pontos.
Não tinham vozes por ali, então se a reunião do doutor fosse verdade. Deveria ser em outra parte da casa.
Eu sabia onde os suprimentos ficavam guardados então não foi problema nenhum os achar, a questão maior foi conseguir olhar meu próprio pé a fim de fazer a sutura. Digamos que rendeu uma posição um tanto quanto interessante, eu no chão com uma agulha na boca, gases cobertos de vermelho e uma tentativa de curativo.
Estava no escuro, tinha luz noturna o suficiente pra eu conseguir ver o que estava fazendo, mas é claro. Como tudo neste lugar parece me odiar, a luz se acendeu.
A princípio achei que seria Ava, aparecendo apenas com o motivo único de caçoar de mim e mostrar o quão patética eu estava. Mas na verdade era pior, muito pior. Era o próprio carrasco vestido de branco.
Kiyoomi parou, me observou. Provavelmente me repreendeu mentalmente por estar sentada no chão do local. Mas vendo a situação dos gases ao meu redor aparentemente se preocupou começando uma aproximação.
-O que aconteceu?
-Diamante entrou no meu quarto, quebrou algumas coisas e eu acabei pisando num caco de vidro.
Mirou-me confuso, enquanto se abaixava para olhar o ferimento mais de perto.
-Quem é Diamante?
-O gato... Ele normalmente fica no salgueiro Ava disse que era da antiga enfermeira.
Não sei qual foi o gatilho na frase, mas ele ficou com uma expressão sombria me pegou pelo braço me forçando a levantar e mandou que eu deitasse na maca.
-Eu mesmo vou te suturar.
-Doutor não há necessidade de-
O olhar que se voltou para mim foi austero então recuei até a maca e me sentei, o doutor pegou os suprimentos – Falei para se deitar, não sentar.
Ele sequer me olhou para falar, continuou mexendo sistematicamente nas agulhas e linhas, havia uma certa beleza nos movimentos dele. Sempre preciso, somente o necessário e nenhum pingo de hesitação. Me peguei o observando demais então num rompimento súbito de pensamento resolvi deitar.
Kiyoomi puxou um braço da cadeira, e sem seguida tomou meu tornozelo levantando a minha perna apoiando no braço extra. Fiquei surpresa pelo toque quente invés de ser coberto por luvas, firme mas mesmo assim suave um pensamento isolado me disse que o doutor devia cuidar das próprias mãos com zelo.
Um silvo de dor deixou a minha boca me fazendo apertar com firmeza a lateral acolchoada da maca, quase pude ver um fantasma de sorriso no rosto do médico e algo no olhar que era diferente da frieza habitual. Mas poderia ser apenas uma ilusão pela visão marejada.
-Não é muito adepta a dor, eu vejo.
-Não esse tipo eu posso garantir.
-Mas certamente não deve se importar de infligir dor aos outros não é?
O homem fez menção de começar a sutura mas instintivamente eu recuei, novamente a mão do doutor segurou a minha perna. Dessa vez mantendo o aperto para que eu não me mexesse.
-Fique quieta ou vai doer mais – a mão dele escorregou um pouco para cima me puxando logo em seguida – Se continuar recuando talvez seja necessário que eu te amarre.
Me mantive quieta, olhando para o teto em silêncio tentando acalmar meu coração e deixando que a luz da lua que entrava pelas janelas levasse o resto embora. Já não sentia mais a dor da sutura ou o toque do doutor no meu tornozelo, tudo que tinha era sensação ardente nos meus pulsos, me vi presa naquela sala branca com a lâmpada balançando em pêndulo sem parar ao mudar o ritmo. Esquerda e direita até que a luz se apagasse e de repente tudo que estivesse na minha frente fosse vermelho.
-[Nome]!
Senti como se estivesse sendo puxada de uma piscina depois de estar afogando por muito tempo. Meus braços estavam dormentes e de repente me vi buscando por ar desesperadamente.
-Você teve uma paralisia do sono, mais comum ao acordar mas quando se está tentando adormecer também. O cérebro relaxa todos os músculos do corpo e os mantém imóveis para que se possa conservar a energia. Tem isso com frequência?
Dedos estralaram na minha frente o barulho me fazendo focar no rosto do homem à minha frente – Tem paralisia do sono com frequência?
Balancei a cabeça apertando com força as minhas mãos uma contra a outra – Não, não são frequentes. Foi a primeira vez.
Não sabia o que possivelmente estava passando na cabeça dele, mas algo que o deixou com raiva talvez até possesso. Ele passou os braços pelas minhas pernas e costas me pegando no colo.
-Não quero você sujando a mansão, ou o corte – a mão esquerda dele segurava minha coxa exposta pelo pijama. Um pouco mais à frente, Ava estava parada com Diamante rondando.
-Creio que as minhas ordens foram claras sobre deixar essa... Criatura entrar na casa Ava. – disse mirando a gato – Soube pela Srta. Conway que ele andou causando alguns infortúnios em seu dormitório.
-Minhas desculpas, doutor. – ela abaixou a cabeça de leve, alguma adoração estranha em ser repreendida por ele marcada em suas feições – Aceitarei qualquer punição que me for direcionada.
-Apenas arrume o quarto de [Nome], essa noite ela ficará ao lado do meu.
Aquela ação estava longe de ser uma coisa boa, se Ava já me odiava agora certamente
ela gostaria de me matar. Kiyoomi não disse mais nada, apenas subiu comigo pelas escadas, eu não fazia ideia de qual era o quarto dele antes de claro estar na porta ao lado.
De alguma forma ele conseguiu abrir a porta e me colocar pra dentro, me deixando sentada na cama. – Tem cobertas e tudo que você precisa, venho pela manhã checar o ferimento.
-Mas e os pacientes? Você vai dar conta deles sozinhos?
-É terça, não temos pacientes às terças, está aqui a mais de um mês já deveria saber disso.
-Claro – bati na cama e alisei o edredom – Acho que perdi um pouco da noção dos dias. Quero dizer... Faz um mês que eu não saio de casa.
O doutor pareceu tomar ciência da situação e parou na porta antes de sair – Vou à cidade no fim de semana. Pode me acompanhar, se seu corte estiver curado o suficiente.
-Parece ótimo. – não consegui conter o sorriso no meu rosto - Obrigada.
Ele assentiu com a cabeça e disse boa noite eu fazendo o mesmo, certamente o quarto era bem melhor que o mesmo. Começando pela cama que era gigante, bom minhas coisas estavam no quarto com exceção do celular que foi o meu objeto de auxílio até chegar na enfermaria e a corrente que minha mãe tinha me dado de presente anos atrás. Tinha um pequeno pingente de pedra verde que a mesma dizia ser mágica.
"Para que os desejos do seu coração se tornem realidade"
Por mais uma noite os meus sonhos foram tomados por imagens grotescas da mesma sala, com as mesmas coisas, o mesmo banho de sangue e a dor de cabeça latejante. Toda a noite repetindo, e de novo e de novo.
A casa estava me deixando doente, então fiz de tudo que podia para que no fim de semana seguinte meu pé estivesse bem o suficiente para que eu pudesse ter um pouco de ar fresco. Era verão, o céu estava limpo e me permiti colocar um dos poucos vestido que trouxe, já que quando não estava com as roupas de enfermeira estava de pijamas.
Meu pé parecia bem, nada que fosse interferir numa pequena visita à cidade. E eu nem sabia que existia um carro escondido naquele maldito lugar e muito menos que o doutor sabia dirigir.
Era um sedã de luxo embora fosse bem discreto e claro, branco. Os assentos dentro eram de um couro cor de sorvete de baunilha e bem parecia novinho em folha, imagino que ele não deve ser usado com muita constância.
Tamborilei os dedos no meu joelho durante o caminho e me animei quando vi a cidade se erguer na estrada bem a nossa frente. Prédios e pessoas, finalmente. Claro que ele já tinha todo o caminho programado, e a primeira parada foi na farmácia.
E não parecia ser uma comum, muito mais especializada do que eu esperaria ter numa cidade como essa.
Sai do carro logo depois de Kiyoomi, e o acompanhei para dentro da loja, aparentemente já deviam estar acostumados pois ele não esperou sequer cinco minutos para ter uma caixa de suprimentos posta a sua frente.
-Como sempre o mesmo pedido separado, gostaria de adicionar algo Sr. Sakusa?
-Não, parece bom – ele respondeu. Eu tomei a liberdade de andar dentre alguns dos corredores virando alguns vidros ou apenas lendo os rótulos.
-Quem é a moça da vez? – uma senhora mais velha passou andando por trás do atendente apontando para mim em seguida.
-Desculpe – andei até o balcão – [Nome] Conway, sou a enfermeira assistente do Doutor Kiyoomi.
A senhora sorriu para mim – Pode me chamar de Darla querida, esse é meu neto George, somos os donos dessa farmácia velha, por gerações. É bom saber que o doutor está bem acompanhado, vocês fazem um belo casal.
-Obrigada eu acho, mas não somos um casal – respondi.
-George porque não coloca as coisas no carro do doutor – ela o empurrou para o lado e Kiyoomi deixou um envelope em cima do balcão com o pagamento em dinheiro.
-Sabemos que muitas vêm e vão – disse, claro que fazendo fofoca sobre a troca constante de enfermeiras. – Mas ele nunca trouxe uma para a cidade, você é uma garota de sorte.
Não soube o que responder porque claramente na minha mente não classificaria como sorte.
-Desculpe pela intromissão. Aqui o troco – ela voltou algumas notas na minha mão e eu deixei a loja com um desejo de bom trabalho. Na saída o neto George pareceu segurar meu braço.
-Srta. Conway, por acaso se você precisar de alguma coisa. Me ligue. – um cartão escorregou para a minha mão. Bom, o homem não era feio, mas o olhar dele parecia ser bem mais de preocupação.
-Hum, obrigada.
Kiyoomi estava parado ao lado do carro, tomando minha atenção pelas roupas. Não tinha reparado antes, mas a camisa social de mangas três quartos estava alinhada e as calças de um tom de cinza escuro também. Nunca tinha o visto sem roupas sociais antes, mas parecia combinar mais do que bem nele.
-Tudo que precisamos fazer está nessa rua, não vamos tomar mais de trinta minutos.
-Parece ser a única rua na cidade então é compreensível. – ri da minha própria piada, ele se virou na direção a seguir e esperou.
Oh. Ele estava me oferecendo o braço para andarmos juntos, não parecia algo que ele faria. Tomei seu braço e começamos a andar com passos lentos na direção do nosso próximo destino.
-Eu gostaria de me desculpar.
Franzi o cenho e me virei pra ele, o olhar estava no horizonte – Pelo que exatamente.
-Pelo primeiro dia, o dos exames. Como seu contratante foi desprezível o meu ato, portanto minhas desculpas.
Tinha levado mais de um mês para aquelas palavras serem proferidas, mas no fim foram.
-Não sei suas motivações, doutor, mas eu sou um ser humano. E desejo ser tratada como um, independentemente do que eu faço com o meu dinheiro.
-Você merece isso.
-Então desculpas aceitas.
Como o previsto, não demorou mais de trinta minutos, mas foram os mais agradáveis que eu tive em um bom tempo. Quando voltamos, Ava estava parada na varanda, parecia estar de vigília esperando que o carro aparecesse na estrada da propriedade.
-As viagens para a cidade não tomam mais de uma hora, já se passaram trinta minutos – ela disse tentando não soar hostil e controladora.
-Andamos um pouco mais devagar – rebati – Mas ainda não nos atrasamos para o jantar certo. Foi uma tarde adorável doutor, obrigada por isso.
Ele fez uma menção com a mão e eu resolvi subir, o curativo estava começando a me incomodar. Mas nada que jogar as pernas um pouco para o alto não resolveria.
Peguei-me pensando sobre o rapaz, George... O que será que ele quis dizer? Puxei o celular e usando o número do cartão mandei uma mensagem um simples "oi", "o que você quis dizer com aquilo?"
Minha suspeita foi que ele ainda devia estar no balcão por isso não respondeu, então resolvi me lavar. Tentei achar um conjunto, mas eles não estavam em nenhum lugar por perto ou à vista. Então optei pela roupa mais confortável depois dele.
Coloquei o colar sobre a cama assim como o celular. Era simples mas ter a água correndo pelo meu corpo me servia de bálsamo ajudando a esquecer a sensação de agouro que me seguia para todos os lugares.
Enrolada na toalha voltei para o quarto, George parecia ter respondido. E eu não estava preparada para o texto que ele me mandou.
"Hey [Nome], que bom que entrou em contato fiquei com medo de que aquele cara tivesse te mantendo prisioneira ou algo do tipo. Mas a questão é a seguinte: há meses atrás precisei fazer uma entrega na mansão já que o doutor não conseguiu retirar os medicamentos.
Naquela visita eu conheci Audrey a enfermeira anterior. Ela me passou um bilhete pedindo socorro, algo sobre a clínica ter um comércio de órgãos ilegais ou algo do tipo. Não pude chamar a polícia sem ter evidências e depois disso ela também sumiu. Então só tenha cuidado."
Tráfico de órgãos?
Aquilo colocou muitas perguntas na minha cabeça e me deixou muito mais alerta aos meus arredores nos dias seguintes. Mas nada aparente. Cheguei até a olhar os arquivos das enfermeiras antigas, mas nada demais, apenas exames como os que eu fiz nos primeiros dias.
Dúvidas eram tantas que me vi sentada na sala de estar uma madrugada sem conseguir dormir, lendo sem atenção alguma um dos muitos livros técnicos que tinham espalhados pela casa inteira.
-Esta tarde para estar acordada.
-Cristo – o livro quase voou da minha mão – Por favor não me assuste desse jeito.
Kiyoomi estava parado a alguns passos de mim, ainda com a mesma roupa que tinha o visto durante o jantar. Ele manteve o olhar como se estivesse esperando uma resposta.
-Pensamentos demais, só uma noite de insônia.
-Deveria tentar tomar um chá, geralmente funciona nas minhas noites... Inquietas.
-Não sou a maior fã, mas obrigada.
Ele seguiu o caminho dele e despretensiosamente o meu olhar bateu na manga da camisa dele, repleta de respingos de vermelho.
-Algum problema?
-Não, na verdade – me levantei rapidamente, fechando o livro e o guardando no mesmo lugar em que achei – Acho que a leitura foi chata o suficiente até mais doutor. Boa noite.
Não dei tempo para ele responder, passei por ele praticamente correndo e subi para o meu quarto, fechando a porta em seguida. A janela estava aberta então a brisa de verão entrava refrescando, mas quando me virei o próprio demônio estava sobre a minha cama. Olhos maléficos de fendas, íris amarelas me olhando e da boca peluda uma corrente balançava.
O presente de minha mãe.
Antes que eu pudesse fazer algo Diamante correu e se lançou pela janela sabe se lá por onde desceu. Quando me debrucei no parapeito ele já tinha desaparecido.
Sempre tirava a corrente para dormir para não quebrar o feixe e agora o maldito gato o comeu.
Se a sorte sorrisse para mim talvez encontraria o colar largado nos ramos do salgueiro, mas é óbvio que isso não aconteceu. Se passaram dias e nem sequer o gato eu vi por perto, poderia ter engolido e morrido engasgado, mas mesmo assim era a lembrança da minha única família.
-Vou ter uma reunião hoje, de extrema importância. – Kiyoomi disse, não precisando ser mais claro sobre o assunto.
-Certo – concordei depois de descartar meu par de luvas, e passar o braço pela minha testa. O calor era quase insuportável e tirava o melhor de mim então fiz o que eu geralmente fazia nos dias secretos, subi não jantei o que Ava me levou e aguardei pelo dia seguinte.
Nem mesmo a janela aberta me tirou do calor então coloquei uma camisola que havia trago na bolsa. Porque? Nem eu mesma sabia.
Me deitei para dormir, mas acordei não muito tempo depois com barulhos de coisas sendo jogadas pela casa. Sabia que não deveria sair, mas algo sério poderia estar acontecendo, coloquei a cabeça no corredor e não havia nada ali. Talvez se eu chegasse na escada pudesse ver algo.
Saí do quarto e andei com passos leves, mas mesmo assim não consegui ver a fonte de tanta cólera.
-Srta. Conway – me virei para encontrar Ava, e quando menos esperei ela injetou algo no meu braço, o sorriso diabólico sendo a última coisa gravada na minha mente antes de eu apagar – Tenha uma boa viagem.
Minha mente estava embaralhada, como se tivesse passado horas bebendo e ainda estivesse bêbada. O teto e a luz estavam girando e a sensação de vertigem me atingiu em cheio, precisei manter os olhos fechados por um momento antes de conseguir enxergar alguma coisa.
Estava ali a fonte de todos os meus medos e pesadelos, a sala branca a luz acima da minha cabeça. Mas mesmo assim era diferente, a cadeira que me prendia era mais sensual, erótica, mantinha minhas pernas abertas e os braços esticados como cruz.
Puxei meus membros – Não, não, não!
-Ninguém vai te ouvir – a voz veio das minhas costas, mas eu não precisava virar para saber quem era.
-Kiyoomi por favor.
Ele tirou alguns fios de cabelos do meu rosto – Eu disse para você ficar no quarto. Mas você simplesmente não me ouviu, os clientes te viram e resolveram adiantar a carga.
-Porque você não me obedece [Nome]! – o homem segurou meu rosto – Eu poderia ter arrumado mais tempo, contratar outra para te substituir. Mas você e seu estupido desprezo pelas regras.
-Por favor, eu não fiz nada. Eu juro, eu não deixei meu quarto, eu fiz o que você falou.
Um som agudo e uma dor dilacerante na minha bochecha esquerda – Não minta para mim! Eu vi você, eles viram você!
Levantando a outra mão ele deixou que caísse a corrente que eu levava no pescoço, a mesma corrente que Diamante havia surrupiado de mim dias antes.
-Isso pertence a você.
As vestes que sumiram, os pertences remexidos, tudo fazia sentido agora. Os pesadelos que foram plantados em minha mente, aquele tabuleiro montado e todos os pequenos jogos de intriga. Eu tinha perdido o jogo, para uma jogadora que até agora se manteve invicta, uma jogadora que tinha dezenas de troféus ganhos com sangue. Essa jogadora representava a morte, vestia branco e a sua foice era feita de diamante.
-O que você vai fazer comigo?
Kiyoomi virou meu rosto lentamente, para que pudesse me olhar nos olhos – Você não está com medo.
Aquela vadia pode ter dado um jeito de me tirar fisicamente da jogada, sempre fui orgulhosa correndo atrás dos meu próprios objetivos. Se ela esperava que eu fosse gritar ou implorar para escapar, estava enganada. Poderia morrer naquela cadeira, mas eu levaria cada pedaço da mente do doutor comigo.
-Eu sou sua, faça o que tiver que fazer – olhei para o teto – Eu vivi a minha vida do jeito que eu quis. Que pelo menos meus órgãos sirvam pra deixar algumas pessoas a continuar as delas.
Ele pareceu surpreso, mas nem tanto, então aquela era a verdade absoluta. As enfermeiras vinham trabalhavam e quando chegava o momento eram mortas e desmanchadas servindo de combustível para o mercado de transplantes.
-Você não vai acreditar em mim, não importa o que eu diga. – continuei mantendo a minha voz firme. A mão que segurava meu rosto ficou mais leve a ponto dele virar e continuar o carinho com as costas dela - Não gosto de regras. Mas não sou uma mentirosa.
-Foi minha favorita. No momento que passou por aquela porta diferente das outras. Mais audaciosa, se tivesse me dado mais tempo.
-Eu acabaria morta de qualquer jeito – interrompi sua fala – Não finja que você não vê a devoção doentia que Ava tem por você. Você é um homem esperto, elegante e que pode ser um completo babaca às vezes. Mas não a culpo por se apaixonar por você.
-Você se apaixonou por mim?
Ele estava perto bem perto, inclinei meu rosto apenas para que pudesse sussurrar contra sua pele – Que diferença faz, você vai me matar de qualquer jeito.
-Posso tentar negociar...
-E acabar com sua reputação? Não... Faça o que tem que fazer, me seduza. Me toque Kiyoomi, me ame e quando o momento chegar me mate.
Um suspiro longo deixou a boca do homem, arrastado como se estivesse contendo dentro dele mesmo uma besta voraz. – Não posso tocar na mercadoria, são as regras.
-Então toque o que é seu.
As mãos não demoraram a começar explorar a pele exposta, arranhando acompanhando o comprimento das minhas pernas enquanto beijos mais desajeitados eram depositados no meu pescoço e colo. Era um homem desesperado provavelmente que se privou de tocar um outro corpo intimamente por muito tempo, seja por afeição ou pela governanta psicótica.
Então o convite foi um ato de salvação.
-Você é linda, pura como a primeira neve de inverno. Voraz como a primeira brasa na lareira. – a mão bateu no pequeno suporte na lateral alcançando um bisturi cortando com qualquer que fosse o tecido que separava a minha pele de ter algum contato com ele. As palmas tomaram meus seios por completo apertando com força em seguida contornando minha cintura, cada curva e pedaço de carne exposta sendo exploradas memorizadas pelas mãos excepcionais do médico. Até que chegou às minhas dobras, o polegar passou dolorosamente devagar sobre o clitóris antes dos dedos começarem seu trabalho.
Devagar mas fundo o suficiente para que me fizesse gemer e atraindo a atenção do homem para o meu rosto
-Grave a minha imagem, o meu cheiro, as minhas formas em sua mente Kiyoomi e todas as noites que você estiver sozinho eu estarei com você. Você é meu?
-Sim.
-Eu vou ser a única dona dos seus pensamentos?
-Sim.
Respirei fundo e ergui a cabeça ainda sem desviar do olhar dele - Se você foder comigo eu vou mudar sua vida.
-Então mude.
O jaleco foi jogado para longe, e a camisa desabotoada devagar junto com o cinto e a calça, as mão soltaram as amarras das minhas pernas por conveniência. Kiyoomi me puxou pelas pernas pelos pulsos ainda estarem presos meus braços esticaram o máximo que podiam dor passando por eles como se alguém estivesse pronto para arrancá-los.
-Achei que gostasse desse tipo de dor – ele se pressionou contra mim, roçando na minha entrada senti seu tamanho, seu membro quente pulsando. – Vou tomar meu tempo com você.
A primeira estocada foi funda e como tudo que ele parecia andar fazendo, devagar e intensa. Seu corpo se deitou sobre o meu os braços circulando minha cintura ajustando a posição, estava dentro de mim a respiração ofegante batendo contra meu colo nu enquanto o homem tomava os mamilos rijos com a boca alternando entre pequenas mordidas e chupões.
-Quero você Kiyoomi, seu corpo, seu coração e sua mente.
-É seu.
Kiyoomi começou a se movimentar, enquanto minhas palavras enlaçaram e enfeitiçam dentre sussurros feitos com desejo e devoção. Ele lembraria de mim, pelo resto da vida ele veria o meu rosto em seus sonhos pelo resto da vida, seu corpo continuaria na terra mas a mente, o pensamento e o coração iriam comigo para o outro lado.
A cadeira rangeu, minhas pernas se fecharam sobre a sua cintura tentando o trazer para mais perto.
-Mais rápido.
Espasmos me tomavam os braços e as minhas pernas tremiam que até meus dedos se curvaram sobre eles mesmos.
-Diga que só vai pensar em mim.
-Que nunca mais vai tocar uma mulher como toca a mim.
-Me prometa que nunca vai encostar um dedo em Ava.
No canto do meu olho a pedra verde do colar jogado pareceu ganhar um brilho cintilante. Esse era o meu desejo, que aquela vagabunda morresse sem saber o que é ser amada.
- Kiyoomi – os gemidos se tornaram mais altos e quando percebi estava gritando o nome dele para os quatro ventos. Pele batendo contra pele, gemidos grunhidos e todo tipo de som seguindo daí até que um orgasmo violento tomou meu corpo. Kiyoomi escorregou para fora do meu centro mas se manteve pressionado gozo se espalhando pelo meu abdômen até que se escorregasse pelos lados.
-Você sempre ficou melhor de branco.
-Então coloque seu sobrenome no meu obituário.
As mãos dele se afastaram, apenas para alcançar a seringa que estava no carrinho ao nosso lado a todo tempo.
-Pela primeira vez, eu não quero fazer isso.
-Eu sei – minha voz rouca cansaço, ele bateu no líquido que estava destinado a me desligar desse mundo. Kiyoomi posicionou a agulha no meu pescoço e se abaixou encostando o rosto no meu.
-Salve muitas vidas.
-Eu vou.
Nosso primeiro beijo veio acompanhado de morte.
N/A: Quem matou quem? Foi o gato que condenou [Nome], foi Ava?
Sakusa matou a enfermeira ou ela matou a mente do doutor com uma maldição?
Fica os questionamentos.
Xx
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