Manuel

Alfoncina era uma daquelas cidades que precisavam ser puxadas da memória. Não fosse alguém mencioná-la, "Estive em Alfoncina esse feriado!", talvez ela se apagasse do imaginário popular. "Onde fica Alfoncina?" Quase ninguém sabia. Estava ali, perdida, quase escondida no meio das montanhas das Minas Gerais. Olhando do céu, cabia inteira em uma fotografia. Era diminuta, pouco desenvolvida, mas inegavelmente charmosa. De ruas de pedra, algumas de asfalto, uma ou outra de barro, gente simples, simpática, pobre, ignorante, muito religiosa, o que movia a cidade era o agronegócio, o que restou da fábrica e o turismo. Havia sempre um grupo seleto de curiosos bem avisados ou estudados que conhecia as belezas naturais que agraciavam Alfoncina e seus arredores.

Na única avenida da cidade, denominada avenida por questão meramente referencial, se encontrava o também único hotel, da mesma forma denominado hotel por carinho e mérito: o Boa Paragem, uma construção de dois andares antiga, preservada pelos donos e cuidada com esmero pelas mãos cansadas de Seu Maneco, o zelador. O Boa Paragem era a hospedaria das pessoas simples, joviais e de espírito aventureiro. Havia pousadas e resorts para os abastados e sossegados em Alfoncina, mas contra esses não dava para concorrer, que eles já se instalavam à beira do lago, lá para perto da estrada. Não tinha jeito: hospedar-se dentro de Alfoncina era para ficar na casa de alguém ou no Boa Paragem.

A história da pousada-hotel não era nada hercúlea. Um homem, vendo a chegada da indústria siderúrgica a uma vila tão pequena, resolveu abrir um pensionato na expectativa de lucrar com os operários que viriam de fora para trabalhar sem ter moradia. Nada além disso. Da história de Maneco — Manuel Antunes de nascença — quase ninguém sabia; a única certeza que se tinha era que ele também trabalhara na fábrica e se aposentou por lá mesmo, doze anos atrás. Solteiro, sem filhos, sozinho, cansado da vida doméstica na cidade paralisada, foi ele mesmo quem se ofereceu para trabalhar como zelador no hotel; era conhecido da família.

Foi cordialmente acolhido por Regina, matriarca da penúltima geração, que sempre valorizou tanto o trabalho quanto a presença do velho taciturno. Quando ela morreu, Fernandes, o filho, assumiu o comando, mas a verdade era que ele não era um grande empresário ou entusiasta da hotelaria; e, àquela altura do campeonato, as marcas de Maneco já estavam tão impregnadas naquele lugar que era como se o dono fosse ele. Não era raro ouvir se referirem ao Boa Paragem como "O hotel do Seu Maneco", que, também vítima do tempo, se transformara em uma espécie de figura pública, folclórica de Alfoncina.

Expondo as coisas desta forma, incorro no risco de transmitir uma imagem paternal, tranquila e bucólica de Maneco, mas não se engane. Algumas pessoas tinham até medo dele. A falta de informações sobre seu passado, seu semblante sempre sério, sua velhice engessada, o falar nada mais que o estritamente necessário, o caminhar rígido, os hábitos estranhos... Era um velho alto, de cabeleira branca sempre penteada. Andava de boina italiana, camisa de manga curta enfiada para dentro das calças de poliéster e sapatos sociais. Dispensava os óculos por teimosia. Era áspero aos olhos; não se parecia com o avô de ninguém.

Maneco era um notívago. Acordava muito tarde, lia as notícias do dia muito tarde, almoçava muito tarde, sentava-se à varanda para olhar a rua, fumava dois ou três cigarros de palha, às vezes um charuto. Às seis ou sete da noite, tomava um banho, trocava de roupa e ia para o Boa Paragem, onde geralmente encontrava Fernandes entretido com o computador. Cumprimentava-o com um aceno de cabeça ou um grunhido, quando cumprimentava. Andava lento, grave. Ia até a cozinha, verificava se a louça estava lavada e guardada. Subia as escadas; verificava quantos quartos estavam ocupados e se os desocupados estavam em boas condições. Descia. Procurava algo para fazer. Uma lâmpada para trocar, um cano para desentupir, uma roupa para lavar. Quando encontrava, fazia; quando não, fumava.

Assim que ele chegava, Fernandes partia. Combinaram isso sem combinar. As madrugadas do Boa Paragem eram todas de Seu Maneco. Sozinho, indecifrável, de sobrancelhas grossas e bigodes longos, velho como o Tempo, ele velejava pelas noites silenciosas como um marujo experiente: sereno, imperturbável. A solidão para ele tinha outro sentido, era outra experiência: estar-sozinho era a norma, de forma tal que a não-solidão, quando ocorria, era sempre um susto. Um hóspede surgir porta adentro ou afora na calada da noite, por exemplo, era praticamente um acontecimento astronômico.

Das manias de velho, Maneco preservava apenas uma. Às seis da manhã, interrompia o que quer que estivesse fazendo, levantava-se e varria o chão de todo o hotel. Lentamente. Cômodo por cômodo. Térreo; escada; primeiro piso, depois calçada da rua, às vezes o quintal. Com uma vassoura de pelos dentro, com uma de piaçava fora. Quando Fernandes chegava, lá pelas sete e meia, oito horas, trazia o café da manhã, que Maneco organizava com toda minúcia. Só então considerava-se dispensado: estando a mesa asseadamente posta, podia voltar a casa para dormir, acordar e repetir um dia depois.

Uma vez por ano, porém, durante uma semana, a rotina de Maneco e de todos os alfoncinenses era chacoalhada por um evento quase cataclísmico.

Assim como acontece com algumas cidades pequenas postas pelas mãos do Criador no meio do caminho para outras cidades maiores, aconteceu com Alfoncina: houve um tempo em que a juventude estabeleceu que as ruas da pacata cidade eram um bom lugar para comemorar o carnaval. Não se sabe quando nem como; simplesmente aconteceu; uma vez aqui, outra ali, até se tornar tradição. Assim que se aproximava o início das festividades, em algum momento de fevereiro, Alfoncina começava a ganhar mais cor, mais alegria, mais carros, mais gente, e o Boa Paragem celebrava a época mais próspera do ano inteiro, quando conseguia manter ocupados todos os quartos a semana toda.

As principais atrações eram os blocos de rua e matinês, organizados pela prefeitura, e as festas particulares próximas ao lago. Por sete dias, Alfoncina não descansava: viam-se e ouviam-se atrações pela manhã, pela tarde e à noite: o ecoar estridente da percussão enquanto o sol estivesse no céu, os foliões desfilando pelas ruas, os moradores locais botando reparo nos visitantes, os shows e feirinhas nas praças, os encontros nos bares... e Fernandes, no Boa Paragem, trabalhando duro pela única vez no ano.

Maneco continuava o mesmo, só um pouco mais atento e sendo solicitado mais vezes durante as madrugadas; nada tão perturbador — afinal o Boa Paragem não era um Copacabana Palace: sua lotação máxima dava quase tanto trabalho quanto sua lotação mínima. O que mudava era que, quando pessoas mais jovens se hospedavam, a calada da noite não era assim tão muda. Tal como Seu Maneco, eles tinham hábitos noturnos. Conversavam alto, riam, às vezes ouviam música, TV, mesmo às duas, três da manhã; saíam para passear quando já não havia mais uma viva alma na rua, chegavam dos passeios quando o sol já estava a pino, tendo passado a noite em claro...

Aconteceu numa madrugada dessas assim. Era segunda-feira, a festança começava a perder força, pois quarta-feira era o dia das cinzas, de voltar à realidade. Maneco passara parte da noite ocupado com um chuveiro que se queimara em um dos quartos e o restante do tempo sentado no balcão da recepção, onde não costumava ficar, olhando para fora, para o céu. Fazia calor. Dois hóspedes saíram e um entrou durante a madrugada; os três jovens e apressados. Quando os pássaros começaram a cantar e o céu clareou, o velho foi cuidar de suas coisas. Foi a passos lentos até os fundos da casa buscar sua vassoura de pelos para executar seu ritual de todos os dias.

Varria um pouco, juntava na pazinha, jogava no lixo. Varreu a recepção, um pedaço do corredor, um quarto desocupado. As portas trancadas abreviavam seu serviço. Passou pela cozinha, voltou, rumou para a escada. Recebeu um pedido de desculpas afoito quando levou um esbarrão de um rapaz, que chegava da rua apressado, acompanhado de outro. Nada disse; só sinalizou que estava bem. Ajeitou a boina na cabeça enquanto eles acabavam de subir feito dois foguetes. Jogou fora toda a poeira do térreo, então se dedicou à escada. Varreu degrau por degrau, até o último. Trouxe sua pazinha consigo, mas decidiu primeiro acumular a sujeira do piso de cima num cantinho.

O silêncio do piso de cima era maculado por um som metálico surdo, indistinguível, que não era o ruído branco quase inaudível dos pelos da vassoura contra o chão. E Maneco varria. Uma porta fechada aqui, outra ali e o ruído se tornou alto o suficiente para chamar atenção, e levou apenas um girar de pescoço para a vida do velho zelador se desfazer em duas ante seus olhos.

Por entre um vão de quatro dedos de largura, Maneco testemunhava os dois rapazes que acabaram de esbarrar em si protagonizarem uma cena que dois homens não deviam protagonizar. Desnudos da cintura para cima, deitados um sobre o outro, um entre o outro, eles se entregavam a carícias e prazeres tais que, pela pressa ou pelos efeitos do álcool, os distraíram de fechar a porta direito. Atentavam-se apenas um ao outro; uma atenção dispersa, aflita, de não saber onde repousar as mãos, qual peça de roupa tirar a seguir, qual área do corpo provar. As calças foram as próximas a serem baixadas, em frenesi, sem nenhuma elegância, e depois as cuecas, e um par de nádegas robustas se elevou quando o rapaz de cima se apoiou em seus joelhos e cotovelos, como se se preparasse para outra manobra.

O que quer que ele fosse fazer, contudo, foi interrompido pelo mesmo movimento que lançou Maneco para fora de seu torpor: tomando controle das ações, o rapaz que estava por baixo segurou o outro pelos ombros e os dois giraram em seus próprios eixos, invertendo as posições.

A porta permaneceu semiaberta. O rangido abafado da cama, misturado aos pequenos ais de prazer também seguiram, mas naquele instante, naquele minuto de contemplação silenciosa, uma parte de Manuel Antunes morreu. Não: ela já estava morta; o que aconteceu foi o início de uma autópsia que ele nunca fizera e, agora, aqueles dois jovens desatentos lhe obrigavam.

Pela primeira vez desde que pisara no Boa Paragem, o velho não finalizou seu ritual. Pegou de volta a vassoura, a pá, juntou o lixinho do canto, colocou num saco plástico e desceu. Deixou os itens no quintal, onde era seus lugares, e se sentou num degrau de cimento alto, levando os olhos anuviados aos céus ainda lívidos.

Já fazia mais de quarenta anos, pôs-se a lembrar. Uma vida. Conheceram-se na mocidade, quando vieram, cada um de seu canto, trabalhar na siderúrgica, o que, na época, era a única chance que dois mambembes vindos da roça tinham de tentar fazer algum dinheiro. Tales era seu nome — Talico para os mais chegados; um rapazote risonho, extrovertido, contador de piadas.

Trabalhavam juntos no mesmo setor, horas por dia, sem contato, até que um dia se sentaram um ao lado do outro no refeitório e a amizade começou a florescer. De modo um tanto obtuso, a princípio, pois levou algum tempo para Manuel se ajustar às extravagâncias de Tales. É que ele era artista: tocava viola, cantava, dançava, fazia pirueta, era um showman completo, enquanto Manuel o assistia com um terço de sorriso no rosto, sempre calado, ranzinza, mas presente, amigo: era o yin para o yang de Tales.

Depois que amizade se estabeleceu, estavam sempre juntos, para todos os lados, dentro e fora da fábrica; conversando, murmurando, rindo, trocando tapas no pescoço, no ombro, derrubando a boina do outro no chão... Entre seus colegas de turno, logo começou a circular o rumor de que Tales fosse fresco, e a isso ele jamais respondeu senão com uma piada, mesmo quando inseriam Manuel na equação. "Isso me'mo: 'cês pode tirar o olho, qu'o Manuel já tem dono." Os operários riam. Tales se arriscava: o que parece bobo, inofensivo a quem lê hoje poderia lhe ter custado muito na época em que fazia essas brincadeiras. Sua sorte era que não havia alma em Alfoncina que pudesse lhe desejar mal, pois a vida de Tales era ser e fazer a alegria dos outros.

Os anos passaram, a maturidade foi chegando e a amizade com Manuel nunca enfraqueceu. Viam-se ainda com a mesma frequência, conversavam sobre praticamente as mesmas coisas, mas agora já não eram assim tão moços. Aos trinta e um anos, continuavam solteiros, morando sozinhos, bebendo demais, fumando demais, tendo apenas um ao outro demais. Os maneirismos mais moleques dos primeiros anos na fábrica foram morrendo; os hábitos foram mudando. Os espetáculos de Tales se tornaram shows mais particulares. Quando passava as tardes de sábado na casa de Manuel, levava sua viola, e, no pequeno quintal, sob a luz morna do sol poente, cantavam e murmuravam. Já não se estapeavam mais; fazia tempo Tales não jogava a boina de Manuel no chão. Às vezes saíam para jogar cartas, para vagar sozinhos pelas ruas vazias da cidade; iam até a beira do lago pescar, voltavam, sóbrios ou não; paqueravam moças na pracinha, mas nunca namoravam nenhuma...

Nunca namoravam nenhuma. Depois dos trinta, estavam, definitivamente, na fase da vida em que logo teriam de constituir uma família, mas esse assunto era raro entre os dois. Falavam de outras coisas: de trabalho, de política, de economia, de si mesmos, dos outros, de planos para o futuro... E, curiosamente, os planos dos dois os incluíam mutuamente. "Quando eu conseguir juntar um dinheirin', nós vam'bora dessa Alfoncina lá pra Belo Horizonte."

Falavam dessas coisas em dias de quietude, em seus dias de mais intimidade, quando já estavam tão absolutamente dependentes um do outro que se encontravam mais para manutenir uma relação que se tornara simbiótica do que para conversar. Na calmaria de Tales, Manuel se encontrava, se completava de forma tal que a ideia de ir embora com ele para Belo Horizonte não lhe causava outra sensação senão um calor gostoso no coração. Não entendia o porquê, mas a conjectura de uma vida inteira ao lado dele parecia tão natural quanto necessária. Seus olhos amendoados sempre presentes, seu sorriso de lado, o modo de se vestir, o cigarro compartilhado durante os intervalos, as pescarias, aquela interdependência tão óbvia, mas, ao mesmo tempo, por algum motivo, tão mal-agradecida, tudo se tornara parte intocável da mitologia pessoal de Manuel, que ele realmente eternizaria se tivesse a chance.

Nessas tardes de vazio mútuo, de solidão interiorana compartilhada no quintal de casa, olhando o amigo fumar calado, distante, às vezes Manuel sentia, do alto de sua mais santa ignorância, um sentimento tão esmagador lhe apossar e sufocar o peito e entalar na garganta, que era como se ele precisasse transbordar; mas esse transbordar dependia da resolução de um enigma de Esfinge pessoal, íntimo demais, e ele não tinha léxico, não tinha intelecto suficiente para decodificar, nomear o que era aquela angústia, aquele desejo de ser e estar o outro como se ele fosse uma experiência, uma sensação que se pudesse atingir...

Manuel sorria um sorriso especial quando se via pensando nisso; geralmente apertava o ombro do amigo, quando era oportuno, ou lhe dava três tapinhas nas costas. A relação era de poucos toques: um aperto de mão aqui, meio abraço quando muito bêbados ou em dia de Natal ou aniversário ali, nenhuma declaração verbal explícita de amor fraterno: tudo subentendido. Manuel respondia grosseiramente seu enigma como gratidão profunda por ter encontrado o melhor amigo do resto de sua vida, com quem um dia se mudaria para um lugar maior e viveria uma vida mais feliz. Essa era a utopia da vida de Tales, que ele jamais realizou, ao menos não como a idealizou.

Talvez a culpa tivesse sido dele mesmo, mas seu único erro foi um tiro no escuro. Não, não um tiro no escuro: um tiro ao coração; ele sabia o que estava fazendo, só apostou alto demais. Era quase meia-noite. Voltavam de uma festa de carnaval organizada na pracinha da vila em expansão — talvez tenha vindo daqueles tempos a ideia de que Alfoncina era um bom lugar para celebrar o carnaval. Todos os anos, desde que se conheceram, a dupla nunca perdeu um baile sequer, fosse manhã, tarde ou noite. Em meio a conhecidos e desconhecidos, mascarados ou não, às vezes fantasiados, às vezes vestidos do sexo oposto, pulavam e cantavam as marchinhas à exaustão. Chegavam juntos, iam embora juntos.

Vestiam roupas engraçadas naquele dia, andavam cambaleantes rumo a suas casas. A festa não acabara; ainda se ouviam ecos da folia pelas ruas escuras. Quando alcançavam certa altura do trajeto, partiam caminhos, cada um para sua casa. Neste carnaval, porém, Tales continuou acompanhando Manuel até o final. Estavam alegrinhos, mas em plena consciência de seus atos. Entraram na pequena casa, que Tales visitava com tanta frequência, e se sentaram à beira da cama, lado a lado.

Houve um silêncio confortável. Manuel tirou os sapatos e as meias; deitou-se de braços abertos e olhos fechados, respiração pesada. Estava cansado, mas feliz. Sem declarar suas intenções, Tales, que se manteve incomumente calado pelos últimos minutos, se sentou na beirada lateral do colchão. Na intimidade e na secretude da meia-noite do quarto mal iluminado, observou o amigo em silêncio, e, como quem esperara por isso por tempo demais, inclinou-se e simplesmente o beijou.

Foi repelido como praga assim que Manuel sentiu o calor úmido e aquele perfume almiscarado estranhos sobre seu rosto. Agarrando a fantasia de marinheiro do amigo pelos ombros, ele olhava Tales com pavor de algo que só entenderia décadas depois. Seus segundos de silêncio e imobilidade foram a última chance de Tales, que, na segunda investida, foi pego por um movimento que o colocou por baixo de Manuel — o mesmo movimento que o velho flagrara no Boa Paragem, com uma única diferença crucial: Tales não recebeu afagos, mas o soco que marcou o fim de sua amizade com Manuel.

Depois disso, suas vidas nunca mais foram as mesmas. Já fazia mais de quarenta anos, e ainda doía; mas fazia tempo que não doía como naquela manhã; tempo que a memória não era arremessada com tanta violência... Fazia uma vida que Manuel fugia daquele fantasma, e talvez no fundo fosse melhor assim, porque o peso, o fardo da frustração era demais: levou quarenta e quatro carnavais mais um para que ele aceitasse que a raiz mais profunda da insignificância de sua existência era a ausência de Tales, e que este lhe era agora ausente porque o que consumiu Manuel de pavor naquela noite de 1969 não foi apenas a confirmação de que o amigo era, em verdade, fresco, mas sim o fato de Tales ser conhecedor tão profundo da alma de Manuel a ponto de saber que ele também era...

Manuel nunca perdoou o amigo, que o procurou incontáveis vezes. Na fábrica, em casa, por cartas, por recado. Tales só queria se justificar, se desculpar, voltar atrás, recuperar a amizade, mas a amargura, o medo de Manuel não permitiu: as portas de seu coração se fecharam ao fim daquele carnaval, quando Tales partiu para nunca mais, e foi essa a principal razão de sua ruína.

Fernandes chegou. Despistando os pensamentos por um instante, o velho foi arrumar a mesa do café para poder ir embora. Partiu caminhando, a passos lentos, como sempre, com as mãos para trás, o cenho franzido para proteger os olhos do sol. Em casa, só fez tirar a boina e os sapatos antes de se deitar. Lembrou-se da casinha em que morava na vila, dos tempos da fábrica, de como fora feliz. Seria possível que Tales ainda estivesse vivo? Se sim, como estaria sua vida? Se ele se manteve fiel a quem sempre fora, se fez as escolhas certas, se realizou o sonho de ir para Belo Horizonte, decerto teve tempo de ser feliz.

O jardim das lembranças foi regado com lágrimas doridas. Há tempos Manuel não visitava esse jardim. Cansado, com o coração pesado de tantas recordações, repousou ao lado de uma fonte. Sentiu trêmulo a brisa de tudo que poderia ter sido se tivesse tido tempo de se entender, se tivesse tido maturidade, sabedoria para compreender que o que existiu entre ele e Tales foi nada mais que amor; o amor mais bonito e imaculado: o que nunca se concretizou; se tivesse sido metade do homem que Tales foi ao reunir a coragem para beijá-lo e tivesse ao menos ouvido o que ele tinha a dizer depois da noite do beijo; se soubesse quão desesperadamente um dia desejaria retribuir aquele beijo que rejeitou com um soco; se soubesse que sentiria falta do amigo até o fim de seus dias... Ele soube, mas tarde demais, por isso doía tanto.

Em seu jardim das lembranças, Tales era o Sol, e foi nele que Manuel dormiu, para nunca mais acordar.


(Fevereiro de 2018, publicado no LGBTemas)

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