François
"Je parle, tu parles, il parle et ils parlent sont prononcés pareil — a mesma coisa, o mesmo som. L'orthographe est différente, mais la prononciation est la même."
Do décimo quarto andar da torre B do condomínio Maison Dorée (a coincidência do nome não é planejada), Patrícia tinha aulas de francês às terças e quintas-feiras durante seu estendido horário de almoço. Da Avenida São Cristóvão ao escritório eram exatos sete minutos de carro; ela conseguia fazer suas aulas com tranquilidade, almoçar e voltar para o trabalho sem pressa. Estudar francês era seu segundo passatempo; o primeiro era o yoga. Nutria certo fascínio inexplicável pela Europa, mas a França era seu destino de escolha. Das três vezes que viajava para o exterior todos os anos, pelo menos uma era reservada a um passeio ao seu país do coração.
Inglês falava com certa fluência, mas, depois de algum tempo, veio a sentir que era hora de dar um passo além; que era minimamente respeitoso falar o idioma de um país ao estar nele, sendo estar nele algo tão recorrente. Por meio de conversas casuais com amigos e conhecidos, ao expressar seu desejo de aprender o idioma, chegou a François, ou Fran, para os íntimos e os menos acostumados às pronúncias francófonas.
Filho de mãe luniana e pai francês, natural de Lille, François era mais um francês que falava português do que o contrário. Nascido e criado na França até os vinte e um anos, mudara-se para Lúnia pelo motivo mais nobre, ou mais tolo: amor. Conhecera um rapaz por quem se apaixonou em Lille e menos de sete meses depois estava de mudança. Deixou o pai na França e veio morar com a mãe enquanto decidia como organizar a vida junto ao novo namorado.
O relacionamento não deu certo. A convivência não foi harmônica e muito em breve as diferenças de personalidades e hábitos se tornaram grandes demais para tolerar. Mas François, que nunca tinha morado em Lúnia, acabou se apaixonando por Taigo e ficando por lá. Mesmo tendo se formado em commerce em seu país de origem, descobriu a paixão pelo ensino de seu idioma quando encontrou seu primeiro trabalho, em um importante centro de línguas de Taigo, onde ainda trabalhava.
Pele cor de cappuccino, de um marrom claro opaco e muito liso, cabelo raspado, magro, esbelto, François era polido como um cristal. O gesticular, o falar, a postura ao se sentar, o modo de cruzar as pernas, a escolha do sorriso certo para dar em cada resposta, as roupas sempre muito bem escolhidas e muito bem asseadas; um rapaz tão jovem e já tão refinado!... Talvez por isso ele e Patrícia se identificaram logo de cara e não levaram um mês para trocar o vous por tu. Ao contrário do que possa parecer, contudo, François não se tornou o amigo gay; tornou-se a outra metade de Patrícia; a pessoa a quem ela confiava suas verdades mais íntimas; o tipo de homem que ela teria escolhido se não tivesse escolhido outro.
Ernesto era oposto à esposa em inúmeros aspectos. Era um homem de negócios; trabalhara duro para chegar aonde chegou, e continuava trabalhando. Dono de uma importante distribuidora de aço, ele tinha tantas preocupações e tantas responsabilidades que por vezes não conseguia entender como e de onde a esposa tirava tempo para aprender francês. Tampouco via motivo. Ele próprio falava um inglês muito intermediário e se virava bem quando viajavam; via nos gostos da esposa um quê de futilidade que o incomodava. Um pouquinho de cada coisa nela o incomodava, verdade fosse dita: para ele, tudo que ela fazia era hobby. Enquanto, às vezes, ele trabalhava dez horas em um dia, por exemplo, ela trabalhava cinco, seis, dando-se duas horas de almoço por ser a dona do escritório. Não conseguia ver design de interiores como "trabalho". Patrícia era ótima no que fazia, ele reconhecia, mas, aos olhos de Ernesto, o ofício da esposa era mera expressão artística, sem a qual o mundo continuaria girando igualmente. Se ele se desse o luxo de trabalhar cinco, seis horas por dia, a empresa desmoronaria.
"Eu acho que eu vou começar a estudar francês, amor", ela disse um dia.
"Pra quê?", ele questionou; "Você já não fala inglês?"
"Sim, mas eu gosto da França, você sabe. Quero aprender pra conversar quando a gente for pra lá."
Foi assim que tudo começou. Não era como se ela estivesse pedindo autorização: apesar das objeções do marido, Patrícia ganhava dinheiro o suficiente para bancar aquele apartamento sozinha. Ela só gostava de dividir ideias com o parceiro, que nem sempre as recebia com toda a boa vontade.
Pouco tempo depois, François visitou o Maison Dorée pela primeira vez. Teria aulas particulares com a madamme duas vezes por semana, sendo as primeiras em caráter experimental. A primeira foi para acertar detalhes, datas, valores; a segunda foi a aula inaugural propriamente dita. E dela Patrícia saiu encantada. Quando Ernesto voltou para casa do trabalho, à noite, recebeu com expressão séria a chuva de elogios que a esposa fez ao professeur. Tão novinho, mas tão inteligente, ela dizia; tão educado, tão elegante, um rapaz chique, fala português muito bem... O marido tentou montar uma pintura mental da criatura em questão, mas a imagem a que chegou era completamente diferente da realidade. Viu-o pela primeira vez quando decidiu almoçar em casa numa quinta-feira e chegou bem na hora da lição.
"Ok, alors écoutez la conversation et essayez de comprendre où est la femme — tenta só entender onde a mulher está."
"Oi, amor!..." Patrícia se virou para trás para receber o marido, que não era esperado àquela hora. "Esse aqui é o François, que eu falo tanto!"
Deram um aperto de mão, e, quando o viu em carne e osso, uma nuvem de antipatia se instalou na alma de Ernesto imediatamente. Não precisaram trocar duas palavras. Algo naquele Frranswá o tirou do sério da maneira mais infundada que se possa tirar. Talvez a forma de olhar, de sorrir, a intimidade com a esposa—afinal estavam os dois sozinhos no apartamento, a um metro de distância estudando sobre a mesa de jantar com vista para a cidade, tendo apenas um laptop entre eles; talvez a própria cor da pele, ou o sorriso perfeito demais, a postura elegante demais, o corpo esguio demais... Tudo era um estorvo, um desagrado sem medida.
De que maneira o rapazola e a esposa se tornaram tão amigos em tão pouco tempo, Ernesto nunca entendeu. À hora de deitar para dormir, não era raro que Patrícia estivesse com seu cahier d'exercices e lápis na mão apoiados sobre as coxas das pernas dobradas em vez de lendo os livros de psicologia e espiritualidade de que gostava. Vez ou outra o marido a flagrava falando sozinha pelos cômodos. Je m'appelle Patrícia; j'ai trente-trois ans; je suis un architecte d'intérieur. Je suis, tu es, il est, nous sommes, vous êtes, ils sont. Criara o hábito de chamar o marido de mon amour, o que também não era do gosto dele. O que Ernesto sentia era que, depois de François, a esposa se tornara exponencialmente menos interessante, mais boba, mais chata.
Poucas eram as vezes em que ficavam os três a sós. De quando em quando Patrícia convidava o amigo para jantar em casa ou para fazerem algum passeio de amigos, mas Ernesto não participava de nada além dos jantares, e não por falta de convite. Primeiro porque não era de muitos passeios e segundo porque a presença de François o perturbava assaz. Perturbava tanto que Patrícia mesma percebia o incômodo do marido quando o amigo estava por perto.
"Por que você não gosta do François, amor?", ela perguntou em algum momento.
"Nunca falei isso."
"Não precisa nem falar: seu jeito de agir quando a gente tá junto fala por você. Isso é muito chato, sabia? Até o François já tá ficando sem graça de vir aqui em casa."
Essa fala gerou um levantar de sobrancelhas. Patrícia continuou: "É! O jeito que você olha, a secura com que você cumprimenta; a gente fica horas conversando durante o jantar e você não dirige a palavra a ele uma vez..."
Ernesto estava alheio à própria indelicadeza. E, sinceramente, não estava assim tão preocupado com o que o rapazola fosse ou não pensar sobre ele ou sobre os sentimentos que eles não sentiam um pelo outro.
"Podem parar com essa frescura, vocês dois. Eu sou desse jeito e você sabe, já me conheceu assim. Eu não sou de ficar fazendo graça nem puxando conversa com ninguém. Isso não quer dizer nada."
Queria dizer exatamente o que Patrícia estava dizendo: que a antipatia do marido era suficientemente expressiva a ponto de François notá-la. E era uma antipatia cem por centro gratuita: não havia em François um defeito que a justificasse, e Ernesto sabia disso. Durante todo o tempo que durou a amizade com a esposa, conversaram um com o outro duas ou três vezes, e era sempre um constrangimento, tanto para um quanto para o outro.
O que os afastou em definitivo foi repentino como o anoitecer. A notícia rompeu a tarde e tomou todos de assalto. A encarregada de avisar foi a secretária, mas ela estava agitada demais; não conseguiu se expressar de forma coesa. Logo uma voz masculina menos afoita assumiu o controle do telefonema e conseguiu, escolhendo muito mal as palavras e a ordem dos sintagmas, entregar a mensagem, que resultava da soma de "Dona Patrícia enfartou" e "Ela não resistiu, senhor".
O sangue congelou nas veias de Ernesto, que teve de ser dirigido por um táxi até o hospital de onde ligaram os funcionários da esposa. Estavam desesperados, aflitos, acompanhados de um médico plantonista, que explicou em poucos minutos o que acontecera com a mulher e os socorros que tiveram tempo de prestar, em vão.
Patrícia era morta.
Foi tudo tão rápido que as emoções pareceram ficar fora de sincronia com o tempo cronológico aquela tarde. Enquanto os conhecidos choravam de agonia e outros sentimentos, Ernesto permanecia em inércia. Não chorou nem se desesperou. Dentro de mais alguns minutos, foram chegando pessoas de toda parte: do escritório, da família, do yoga, gente que o viúvo não conhecia e a quem, com frieza involuntária, conseguiu explicar o que acontecera dentro das limitações do que sabia. Também foi ele quem lidou com a funerária, com a documentação do hospital, com o lavramento da certidão de óbito, com as idas ao cartório, com os sogros, cunhados, amigos.
O funeral durou a madrugada toda, mas ele não foi o primeiro a chegar. Precisava passar em casa antes, tomar um banho, comer alguma coisa, respirar. Só debaixo do chuveiro chorou as primeiras lágrimas, quando a de todos os outros já se haviam secado. Mas não havia tempo para gastar mergulhando em sentimentos e pensamentos àquela hora; a família o esperava.
Recebeu inúmeros abraços antes mesmo de entrar na pequena capela onde Patrícia era velada. Os sogros e cunhados ladeavam os caixões. Ver o corpo da esposa deitado, sereno, sem vida foi o segundo choque. Coberta por flores, Patrícia parecia dormir, inconsciente da própria morte.
Aos poucos, os choros foram se calando, à exceção de um, o único que atingiu o coração de Ernesto pela terceira vez. Com uma humildade que o viúvo jamais percebera, François se aproximava dele a passos miúdos. Não disse uma palavra: deu a Ernesto o abraço que ele próprio precisava receber, e abraçados permaneceram por pelo menos meio minuto. Nem quando se afastaram disseram qualquer coisa. François limpou os olhos e recuou, sentando-se no último banco da fileira da direita da capela.
Lá permaneceu a madrugada inteira. Os que vieram prestar sua última homenagem à falecida foram indo embora com o caminhar das horas. Ao amanhecer, restaram os pais, uma irmã, duas amigas, Ernesto e François, que passou a maior parte do tempo sozinho.
Às oito da manhã, o corpo foi sepultado. Outro punhado de gente apareceu no cemitério. Mais comoção, mais lágrimas e o último açoite: a descida do féretro e o fechamento da lápide. O decreto irrevogável do fim da existência de Patrícia Moura. Dos entes da finada vieram outros tantos abraços, mas, naquele instante, Ernesto precisava do único que não recebeu: o de François, que não estava em lugar algum para se encontrar. Fora embora cedo, antes do enterro, sem acompanhar o cortejo.
O tempo se encarregou de abaixar a poeira. A burocracia do morrer, da qual Ernesto se encarregou em grande parte, facilitou o processo de manter a cabeça ocupada e minimizar a dor do luto, que se instalou de imediato, mas se manifestou em doses intervaladas. O trabalho, os poucos amigos, o contato da família sempre amável da mulher, tudo contribuía dentro de suas possibilidades. Os momentos mais difíceis vinham quando a viuvez era jogada contra as faces de forma impiedosa. O lado direito da cama vazio, as contas a vencer, as fotografias, a decoração do apartamento, o guarda-roupas abarrotado, os sapatos, os perfumes, as bolsas, as antigas cartinhas de amor... os livros de francês.
Ernesto não sabia ao certo o que fazer com todas aquelas coisas. Permitiu-se dar a si mesmo tempo para decantar e decidir o que fazer com cada pedaço de Patrícia que restara naquele apartamento tão grande e, agora, tão vazio. As roupas e os bens materiais sem proveito doou; as contas encerrou; de alguns móveis e outras miudezas que traziam lembranças doridas se desfez; mas com os malditos livros de francês... não soube o que fazer.
Folheou-os, alguns. O cahier d'exercices, Tout Va Bien! 1 – Élève, Le Petit Nicolas, Paroles, Grammaire Progressive du Français, Grammaire en Dialogues, Petit Prince, Les Fleurs du Mal, Antigone, L'Étranger... Alguns didáticos, outros em prosa, outros em versos... Muitos em visível estado de deterioração, certamente coisa que Patrícia ela mesma não comprara; só podia ser coisa do professeur.
Foi só então, passados dois meses da morte da esposa, quando foi dar cabo de todo aquele material, que Ernesto dedicou algum tempo a pensar em François. Havia algo de diferente em sua consideração, porém. Quando se lembrava da existência dele, era tomado por um torpor de repulsa, um embrulho no estômago. Aquele sorriso que não saía do rosto, aquele gesticular delicado, aquele sotaque europeu... Desta vez, no entanto, a única imagem que se projetou foi a do rapaz na noite do velório. Os olhos fundos, inchados e vermelhos, aquele abraço longo e sincero, a respiração pesada... E, junto disso, um sentimento diferente; uma espécie de remorso por detestar sem razão alguém que Patrícia amava tanto; por parecer amá-la menos depois dessa amizade; uma angústia súbita, um anseio de se redimir.
Faltou coragem.
Os livros foram guardados na última gaveta de uma cômoda e lá permaneceriam por tempo indefinido. Não era como se Ernesto não tivesse meios para contatar François e perguntar se o que estava em sua casa eram pertences dele, mas era que isso seria como enfrentar um demônio medonho demais... e ele ainda não estava pronto.
A ocasião se fez por coincidência, providência divina ou algo que o valha. Num sábado à noitinha, Ernesto e três amigos se encontraram para tomar um chope e comer uns petiscos no Divina Brasa. Em meio ao falatório e à movimentação, foi Ernesto quem se surpreendeu ao ouvir seu nome ser chamado. Ao virar o rosto em direção a quem o enunciava, encontrou o mesmo François de suas lembranças mais recentes — por algum motivo, o professeur dos tempos de Patrícia parecia, agora, fazer parte de uma mitologia pessoal já ultrapassada, irrelevante.
Respondeu um "Oi!" a princípio animado; levantou-se, afastou-se um passo de onde estava, apertou a mão do moço com certa satisfação. François parecia bem; estava acompanhado de um casal, decerto amigos seus.
"Desculpa interromper", disse, "eu te reconheci a hora que eu passei e quis vir cumprimentar."
O que Ernesto sentiu primeiro foi uma alegria intrometida, que surgiu sem ter sido convidada e sem explicação. Exclamou aquele "Oi!" alongado com tão boa vontade que mal parecia estar se dirigindo ao mesmo François que desprezara por nada há tão pouco tempo. Depois, ao se dar conta disso, veio uma espécie de vergonha camuflada, que não se manifestou na fronte, mas foi sentida com decoro. Quando o assunto da conversa formalmente rasa foi se extinguindo, o ensejo surgiu:
"Esses dias eu estava arrumando umas coisas lá em casa e... tem um monte de livro... de francês, lá nas coisas da Patrícia... Eu fiquei sem saber o que fazer e guardei; deve ter coisa sua no meio deles. Posso colocar numa caixa e te enviar."
"Oh... Hum..." François se pôs pensativo por alguns segundos. "Será que eu poderia ver pessoalmente?, se não for incômodo?"
"Imagina, incômodo nenhum; pode ir quando você quiser."
"Você vai estar em casa amanhã pela tarde? ou noite?"
"À tarde, à noite, sim."
"Ah... Certo. Vou mais ou menos este horário de agora, então, pode ser?"
"Combinado."
Trocaram outro aperto de mão e, depois da despedida, a noite de Ernesto ficou um tanto mais leve. Quando chegou em casa, percebeu a própria leveza e atribuiu a ela o sinônimo alegria. Estava alegre, mas não pelo álcool, ou não só pelo álcool. Estava alegre porque viu François, porque conversou com ele, e, principalmente, porque sabia que amanhã estaria com ele por alguns instantes. Justo ele... Não era como saber que estaria na presença de um amigo de longa data que se reencontra anos depois de uma separação definitiva. Era quase como hospedar um estrangeiro (literalmente), um viajante de passagem; e isso fazia o viúvo querer ser uma série de coisas que ele não sabia ser: agradável, cortês, receptivo, bom de conversa...
Esperou o dia inteiro o interfone tocar. Tomou banho, arrumou as almofadas no sofá, separou bebida, algo para comer, preparou tudo. Às sete e dois, o interfone tocou. Ele autorizou a subida do visitante e, sem sequer imaginar o motivo, seu coração começou a bater forte à expectativa da chegada do professeur; e esse mesmo coração foi golpeado pela última vez quando a porta se abriu. "Bonsoir!", François disse numa tentativa de bom humor. Com as mãos no bolso, entrou quando Ernesto deu passagem.
Não tinham muito que conversar, embora existisse no ar uma espécie de necessidade urgente mútua entre ambos. Ernesto fez bem seu papel de anfitrião, mas o convidado só aceitou o copo d'água. A caixa de papelão com os livros já estava organizada e devidamente posta no chão da sala, onde François poderia examiná-la sentado, sem pressa. Assim ele o fez, acompanhado do viúvo, que alternava o olhar da caixa para o rapaz e vice-versa.
No silêncio de François Ernesto o entendeu. Entendeu-o tanto que começou a entender-se a si mesmo, e até o que era aquilo que sentia naquela quase noite de domingo: era amor. Não amor pelo rapaz, mas pelo que ele representava: a última coisa que Patrícia amou de verdade. François era o elo mais recente, mais puro e mais complexo: era vivo, era a encarnação do que Ernesto jamais fora; era sabido, era elegante, era inconvenientemente impecável; e era homem, e era gay. Mas, naquele domingo, era apenas e tão somente François, a última flor da primavera de Patrícia.
Sentado no sofá, o rapaz pareceu entrar em um universo particular de memórias e algo mais ao manusear as folhas de papel. Em seu rosto se via um misto de alegria e luto, um meio sorriso agridoce ao ler as anotações da amiga no caderno de atividades. Os olhos marejaram em questão de minutos e algum esforço foi feito para evitar o choro emotivo. No sofá ao lado, Ernesto entrava na mesma sintonia. Embarcava de carona na viagem pelo mundo das lembranças que François conduzia e se sentia à deriva. Quando os dois olhares se encontraram, completaram-se em compaixão.
Partiu de François a iniciativa do consolo. Deixou o que estava fazendo e se pôs ao lado de Ernesto. Abraçaram-se, afagaram-se, dividiram lágrimas, suspiros, dor e saudades. Mas também algo bom, que Ernesto sentia pela primeira vez e queria apreciar, aprender melhor; algo como uma cor nova num espectro de cinzas e beges.
"Obrigado pela consideração", François disse de posse da caixa com livros, pronto para voltar para casa.
"Sem problema."
"Olha... Eu sei que a gente nunca foi amigo—eu acho que você nem gosta muito de mim, mas...", François tirou algo de dentro do bolso; "se você precisar conversar ou qualquer coisa..."
Entregou um cartão de visita ao viúvo, que passou os olhos pelo papel, assentiu com a cabeça e o guardou no bolso. Aproveitou o gesto e verificou se ele próprio tinha algo semelhante dentro da carteira para deixar com o francesinho. Tinha. Colocou por cima dos livros na caixa, que François segurava com as duas mãos, e então se despediram.
Ernesto esperou que ele entrasse no elevador para fechar a porta, e, pela primeira vez em muito tempo, sorriu com todo o coração.
(Janeiro de 2018)
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