Os fios do destino

Os barulhos da cidade grande rugiam quando, às 23h55, Aurora nascia. Vinda de uma família boa, com pais com um relacionamento estável — almas gêmeas unidas pelos fios do destino — e uma boa condição financeira. Tudo parecia bom, tudo deveria parecer bom e certo. Mas Aurora tinha algo diferente de todos os outros.

Cada pessoa que nascia tinha os fios do destino visíveis, fios que os guiavam para a direção certa — o cônjuge certo, o trabalho certo, a decisão certa de qual carreira seguir, cada um a sua própria cor, vermelho para o amor, amarelo para o trabalho, e assim por diante — como se o destino, olhasse individualmente para cada um, auxiliando a tomar toda e qualquer decisão importante em sua vida.

Aurora, no entanto, nasceu sem nenhum fio do destino ligado a ela.

Num primeiro momento os médicos acharam que a bebê havia nascido morta, mas seu choro estrondoso exatamente às 23h55 mostrou a todos que estava viva.

A bebê foi então encaminhada aos mais diversos tipos de exames, mas não só Aurora estava viva como completamente saudável, era o que dizia cada exame. 

Os médicos não se deram por satisfeitos, no entanto, e durante anos Aurora foi submetida aos mais diversos tipos de testes e exames. Tudo mostrava que a única coisa de diferente em Aurora eram os fios do destino, ausentes.

Ao decorrer da vida, ela não deixou que aquilo a abalasse. Claro, sua vida era mais difícil que a da maioria, ela não sabia sempre a decisão certa a tomar, isso a fazia tropeçar — literal e metaforicamente — em algumas decisões. Coisas que nunca aconteciam com seus colegas, aconteciam com Aurora, uma vez que ela não tinha a resposta para todas as perguntas.

Aurora, aprendeu a ver certa diversão naquilo. Sim, ela podia quebrar o queixo ao descer com sua bicicleta pela rua errada. Mas que graça havia em sempre saber o caminho certo? 

Na escola, ela sempre tinha as histórias mais curiosas e divertidas para contar. Ninguém sabia o que esperar da destemida Aurora, que aos 15 anos já havia quebrado partes do corpo mais do que os números que compunham seu tempo de vida.

Suas amigas praticamente a idolatravam, ansiando todos os dias por ouvir qualquer peripécia que poderia ter acontecido e como Aurora conseguiu sair de tal enrascada.

— Aurora, o que é essa marca roxa no seu braço?

— Eu caí. Subi em cima de uma árvore para colher algumas goiabas e acabei me pendurando no galho errado e ele quebrou… achei que dessa vez eu quebraria a bacia, mas dei sorte e caí em cima de um travesseiro que tinha jogado no chão, acabei só machucando o braço.

— Nossa Aurora, você é tão corajosa.

Aurora olhou em direção à voz e seu coração errou uma batida conforme ela encarava aqueles doces olhos azuis. Ela sorriu e sentiu seu rosto corar, sem saber o que fazer. Aurora, que nunca antes havia se apaixonado, sentiu o doce sabor da paixão pela primeira vez.

Alguns dias depois ela descobriu, seu nome era Ricardo, mas todos o chamavam de Rick, menos ela que gostava de se sentir diferente e especial o chamando pelo nome inteiro. Aurora e Ricardo logo estabeleceram uma amizade, o garoto, um ano mais velho, reclama constantemente da pressão que sentia pelos fios do destino.

— É como se eu não pudesse decidir nada, cada pequena coisa na minha vida, tudo já foi escolhido para mim. Obrigado a sempre tomar o que o destino acha que são as melhores decisões — ele diz e balança os fios na cara de Aurora — eu já tentei cortá-los algumas vezes, mas nada adianta… eles sempre voltam como uma sombria maldição.

— Já tentou alguma vez desobedecer ao que o destino indica? Tipo, fazer algo completamente diferente… ir por um caminho diferente, comer a coisa errada na merenda ou… beijar alguém que não seja a que está ligada a você?

— Sempre que tento, algo ruim parece acontecer… é como eu disse uma…

De repente, os olhos de Ricardo estavam no rosto dela e ele havia parado de falar. Aurora sentia o coração batendo como um tambor, martelando dentro do peito. Ela morde delicadamente o lábio inferior e olha para o lado, ela tentou dar uma indireta, mas não sabia se havia dado certo, não até sentir os lábios de Ricardo junto dos dela, a sensação era doce e ligeiramente molhada, nenhum dos dois haviam beijado antes então foi confuso, mas pareceu se encaixar. Uma doce melodia soava ao fundo e nada deu errado e Aurora sorriu, feliz, enquanto o beijava.

Ricardo e Aurora passaram a ser vistos constantemente juntos ou de mãos dadas. Ele a chamava de “minha namorada” enquanto ela não sabia direito o que dizer. A cada dia, a cada beijo, eles pareciam ter uma conexão que era especial — o próprio Ricardo dizia isso. Eles eram felizes e se completavam.

E por um ano foi assim. Era quase seu aniversário de 17 anos quando uma aluna nova chegou ao colégio. Ela era meiga e tinha um sorriso bonito, mas, além disso, ela tinha um fio vermelho que seguia direto até a mão de Ricardo.

Ainda que Ricardo jurasse que ele não deixaria Aurora, era como se tudo parecesse juntar os dois. Ele ainda dizia que a amava, mas o coração de Aurora parecia pesar toda vez que ouvia isso. 

Um mês se passou, e ainda que eles estivessem juntos, era como se uma energia pesada pairasse sobre o seu relacionamento. 

— Ricardo, precisamos conversar… — ela iniciou um dia — vou me mudar para outro estado, acho que é a hora de colocar um fim nisso tudo. 

Ricardo argumentou e tentou protestar, mas Aurora estava irredutível. Ela não tiraria dele a chance de ser realmente feliz. Em dois meses, Aurora já estava em outro lugar. Em um ano, ela recebia o convite para o casamento do seu primeiro amor.

Naquele dia, Aurora chorou, culpando o destino e seus fios estúpidos. Amaldiçoando a si mesma por ter escolhido partir. Durante um dia e uma noite inteira, Aurora chorou e, quando não tinha mais lágrimas para chorar, Aurora fechou os olhos e dormiu numa noite sem sonhos.

Os anos se passaram, anos em que Aurora tentava reviver as fases boas em não se ter os fios do destino ligados a ela, mas não era assim que funcionava. Cada dia mais tudo parecia pior e mais difícil. Era como se a vida de todos fosse abençoada enquanto só a dela fosse apenas… quebrada. Aurora caminhava nos lugares errados, escolhia a comida errada no cardápio e fazia amizade com as pessoas erradas. Viver para ela era como jogar um jogo no modo “ultra hard” enquanto todos estavam seguros jogando no modo “easy.”

Na vida adulta, problemas como tropeçar em um buraco já não eram uma atração — na faculdade ela era considerada tonta e ingênua. Aurora não conseguia fazer amigos reais e chorava a maior parte do tempo.

Romance era quase uma palavra proibida. Que graça teria se envolver com alguém apenas para perder tudo no final? Porque correr certos riscos se poderia apenas ficar o mais segura possível — o que já não era muito se tratando de Aurora.

Anos se passam, e Aurora focou na carreira, e mesmo com as dificuldades, se formou e conseguiu um bom emprego, num lugar legal. Seus colegas eram simpáticos e ela conseguiu fazer alguns bons amigos. Ainda que, no fundo do coração, um buraco ainda existisse.

Amor ainda era um tabu, mas ela deu chances para coisas mais casuais. No auge dos seus 25 anos, Aurora já tinha até namorado outra pessoa — mesmo que por poucos meses. 

Até que, num dia de chuva, Aurora conheceu César — do jeito mais clichê possível. Se esbarrando um no outro após o trabalho, voando café para todos os lados. César se desculpou e pediu para pagar um novo café para a moça. Mesmo desconfiada, Aurora aceitou.

Aurora e César conversaram durante horas — mal viram o tempo passar. Ele era um homem divertido, animado e antes que pudesse se conter, o coração de Aurora errava uma batida. Esse, claro, era o momento de recuar. Aurora não podia — e não queria — passar por tudo mais uma vez. Não queria se apegar e se apaixonar apenas para ter seu coração mais uma vez destruído. Era para isso que o amor servia, afinal, ao menos para pessoas como ela. Mas tudo ainda podia mudar, principalmente quando Aurora notou… algo diferente em César.

— Seu fio do amor… o que aconteceu com ele?

César encarou o fio, como se há tempos não fizesse isso, e deu um sorriso torto que não significava exatamente coisa alguma. Aurora esperou, encarando seus olhos, enquanto ele parecia decidir se falava ou não a verdade.

— Ela morreu. Câncer. Tentamos de tudo, mas a hora dela já havia chegado e não havia nada que pudéssemos fazer. Infelizmente, o destino não pode dar conta de tudo…

Pela primeira vez, Aurora sentiu que alguém a entendia. Como se a sua vida inteira, ela tivesse esperado por isso, aos prantos, então contou sua história para César, que a confortou e acolheu, dizendo palavras que soaram bonitas em seus ouvidos.

Quando Aurora foi para casa naquela noite, convidou César para entrar — na sua casa, nela, em sua vida. Onde quer que ele quisesse — e ele aceitou prontamente o convite. A noite se estendeu até madrugada adentro, quando satisfeitos dormiram abraçados um ao outro.

Quando Aurora acordou, percebeu que, como uma nuvem de fumaça, César havia desaparecido. Ela se encolheu, sentindo-se culpada — por o convidar, por deixá-lo entrar, por se entregar no primeiro encontro — ela não entendia como alguém que a entendia tão bem podia ter fugido assim. Eles haviam se completado durante toda a noite e pela manhã era como se tudo não tivesse passado de um sonho. 

Aurora fez então o que podia fazer, se afundou em trabalho. Ocupou seus dias o máximo possível, até ouvir alguém comentando um caso do jornal — o homem havia se suicidado após se apaixonar por alguém no aniversário de morte do seu grande amor — não tinha nenhuma comprovação que se tratava de César é claro, o jornal sequer falava o nome do homem, mas em seu coração Aurora sentiu que aquela era a resposta que precisava.

Apesar do alívio em seu peito, Aurora tomou uma decisão nesse dia. Nunca em hipótese alguma ela entregaria seu coração de novo.

Mas é claro que as coisas não foram simples assim, não quando, anos depois, Aurora vê ela entrar pela porta. Seu corpo cheio de curvas e seu cabelo encaracolado que parecia brilhar. Seus olhos que a lembravam de Machado de Assis — olhos de cigana oblíqua e dissimulada — Aurora esperava, no entanto, que não fosse oblíqua e muito menos dissimulada. Se fosse o caso, Aurora queria desvendar cada um dos seus segredos, pois tinha algo diferente nessa mulher. Algo que Aurora nunca havia visto…

Assim como ela, a mulher também não possuía nenhum fio do destino ligado a ela. Seria esse, então, o destino?

*ESSE CONTO EM BREVE SE TRANSFORMARÁ EM LIVRO! DIGAM O QUE QUEREM VER NELE

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