Rei da Provocação
-Nico não te acordou hoje, então porque de pé tão cedo?
Foi a primeira coisa que minha mãe me perguntou assim que me viu descendo as escadas preguiçosamente naquela manhã de domingo. Me apoiei no balcão antes de dar um bocejo arrastado.
-Vou caminhar um pouco pelo bairro - respondi - Não vi muito ainda, não vou demorar.
-Tudo bem, tome cuidado.
Acenei com a cabeça e me sentei nos degraus em frente da casa para colocar os tênis de corrida, embora não fosse de fato correr, ainda levaria alguns meses para eu conseguir fazer isso sem correr o risco de piorar a minha lesão.
Estava bem cedo, o sol ainda estava se levantando no horizonte uma brisa gelada ainda trazendo vestígios da madrugada, fechei o casaco esportivo e coloquei as mãos nos bolsos. Normalmente ouvia música enquanto caminhava, mas sem conhecer o bairro direito a probabilidade de me perder era bem grande.
Fiz o mesmo caminho até a praça e segui para além dela procurando me manter em linhas retas e procurando marcar mentalmente alguns pontos de referência. Me perguntava onde seria a casa de Kuroo e Kenma, deveria estar por perto pelo que me disseram ontem.
O que levava a pensar em outra questão, se ele seguiu o que disse provavelmente já tinha descoberto algumas questões sobre o meu passado não tão distante. Me pergunto qual será sua reação.
Algo brilhou no canto do meu olho e eu vi o reflexo de um rio que passava por ali, andei até a beirada para ver que tinha uma escadaria que levava para a margem de terra batida. Andei e me sentei ali mesmo, não era uma visão bonita e nem tinha nada de especial, mas de alguma forma me acalmou.
Não tinha ninguém por perto e demorou até eu ver as primeiras pessoas. Dois garotos estavam andando de bicicleta na faixa de terra na beirada do córrego, vi eles surgindo na distância e acompanhei até que passassem por mim e desaparecessem.
O sol começou a ficar mais forte, tanto que me vi na obrigação de tirar a jaqueta esportiva. Disse para minha mãe que não iria demorar, mas mesmo assim acabei me prendendo a uma paisagem comum.
-Ficar sentada olhando para o nada é um hábito?
Ergui os olhos fazendo sombra com a mão, Kuroo estava do meu lado e dessa vez sozinho, tinha as mãos na cintura e vestes esportivas. Imaginei que ele teve a mesma ideia que eu e resolveu se exercitar durante a manhã, já que provavelmente o time não tinha treino.
-Talvez seja - respondi - Se sentar ao meu lado mesmo sem receber um convite também é?
-Talvez seja - ele riu e devolveu a mesma resposta que eu dei a ele. O moreno olhou em volta e cruzou os braços sobre os joelhos - Vir aqui me trás lembranças, costumava arrastar Kenma para treinar quando éramos crianças.
-Sem ofensa mas olhando ontem, parece que você ainda arrasta ele para treinar. Não diria que Kenma-kun parece particularmente animado com vôlei.
Kuroo abaixou a cabeça e suspirou alto antes de apoiar o rosto na mão e se virar para mim, os raios de sol refletiram nos seus olhos cor de âmbar e os deixaram com um aspecto rico, como se fossem joias de ouro derretido.
-Kenma não é do tipo de pessoa que faz as coisas sem querer, então pelo menos alguma motivação ele tem. - e continuou - Mas entendo o porquê pensa isso, geralmente só o vejo realmente animado quando compra um jogo novo.
-Ele é levantador, não é? - perguntei dobrando o casaco no meu colo e cruzando os braços em cima dele.
-Sim, como você sabe?
-Quieto, centrado e observador. Posições de destaque geralmente tem jogadores que gritam suas funções, mas alguém como ele parece ser mais o cérebro que comanda tudo. - olhei para o rio desviando do olhar dele - Cabe a um levantador reconhecer outro.
O moreno pareceu surpreso pelas minhas palavras, mas sorriu em seguida - Está certa quando diz que ele é o cérebro da Nekoma. Suas habilidades de observação não falham em me impressionar [Nome]-chan.
Sua voz morreu no ar por um instante, antes da conversa ser retomada com foco na minha última frase - Então, levantadora da Seleção Sub-18 italiana, não sabia que estava ao lado de uma celebridade.
-Ex-levantadora - corrigi - Disse que já não jogo mais. E meus parabéns pela descoberta, ganhou 'xp' e subiu de nível príncipe da química.
-Você falou exatamente como Kenma agora.
Silêncio se instalou entre nós e vi que ele pareceu estar receoso sobre dar continuidade no assunto.
-Para alguém que tem a língua bem afiada e uma resposta sempre pronta, está surpreendentemente quieto Kuroo-kun.
-Pergunte o que quer, eu decido se respondo ou não. - disse mantendo os olhos no outro lado da margem.
Nesse momento a feição dele deixou de ficar duvidosa para assumir a característica face da provocação que já era mais conhecida.
-Porque o Japão?
-De tudo que podia me perguntar, vai começar pelo motivo de eu ter me mudado pra cá?
Kuroo balançou a mão desfazendo do meu comentário - Curiosidade pessoal, você tinha um mundo inteiro de opções.
-Que seja, minha mãe é japonesa. Meu pai já tinha planos para mudar pra cá e abrir uma clínica junto de um amigo em Sendai. - respondi - Não tem um motivo muito grandioso por trás, satisfeito?
-O suficiente.
-Então rumo a próxima pergunta, vossa majestade.
Ele esticou as pernas e olhou pro céu - Vejamos... No chaveiro da sua bolsa tem um segundo símbolo. O que é?
Encarei o rapaz confusa, aquelas perguntas realmente não eram as que eu estava esperando. Não falou sobre a cicatriz, minha aposentadoria precoce ou qualquer outra matéria com manchete sensacionalista que saiu sobre o meu afastamento.
-Por quê não está me questionando sobre ter abandonado o vôlei, ou sobre desistir da carreira?
-Porque dá pra ver que é algo que te causa dor. - a resposta foi curta e sincera, dita com tanta confiança que me vi desarmada de qualquer resposta.
-Você tem medo de falar de vôlei, pelo menos do que era. Depois de descobrir ficou mais fácil entender porque foi tão evasiva quando questionei. - explicou - Claro que gostaria de perguntar porquê, mas não estou nessa posição.
Fiquei em silêncio ponderando seu comentário, foi uma atitude surpreendentemente respeitosa para alguém que gostava de puxar os botões das outras pessoas até o limite. Agradeci mentalmente por isso e num ato de confiança resolvi soltar alguns dos meus demônios para que ele conhecesse.
-Foi uma fratura no platô tibial - comecei a narrar minha história - Junto com uma ruptura muscular, ainda estou no processo de recuperação pós-cirurgia.
-Não precisa falar se não quiser.
-Eu sei o tipo de coisa que as notícias falam, Kuroo. - interrompi - Duvido que as traduções sejam precisas, então que escute da minha boca antes de tirar suas conclusões.
-Me lesionei num jogo e apesar de ser uma fratura não precisei de cirurgia imediatamente, de acordo com exames preliminares só a fisioterapia seria o suficiente. Mas não foi bem isso que aconteceu.
As lembranças transbordavam na minha mente, meus gritos de dor ofuscados pelos de comemoração até que perceberam que não conseguia levantar. Engoli seco, limpei a garganta e continuei - Precisei deixar a quadra carregada pela segunda vez seguida, só que dessa vez direto pra sala de cirurgia.
-Soube naquela época que a recuperação seria longa e me tiraria da quadra por muito mais tempo, então precisei escolher entre abandonar de vez ou continuar já correndo o risco de ter sempre uma contusão mais grave.
Girei a cabeça - Se estou aqui deve imaginar qual foi minha escolha.
Kuroo ficou em silêncio por alguns instantes até que resolveu vocalizar seus pensamentos.
-Posso estar passando da linha [Nome], mas existe uma diferença entre se afastar e desistir. Está mesmo bem com a ideia de ignorar algo que foi fundamental na sua vida até agora como se nunca tivesse existido?
-Você não entende a dor física e mental que vem em uma situação como essa.
-Tem razão, eu não faço ideia de como é ter que abrir mão de uma carreira, ou do vôlei. - concordou. Sua voz estava séria mas tinha um fundo de indignação - Mas sei que fugir não vai diminuir sua dor, e acredito que deve saber disso melhor do que ninguém.
Senti meus músculos contraírem, ele era corajoso por falar esse tipo de coisa para alguém que acabou de conhecer, lhe daria esse mérito.
-Não sei se sua mente brilhante entendeu, mas eu não posso mais jogar. - rebati - Não tenho mais motivos para chegar perto de uma quadra.
-Porque está evitando como se fosse uma praga - maldita resposta sempre na ponta da língua - Vôlei não acontece apenas dentro da quadra, só que não vai conseguir enxergar se continuar fechando os olhos.
O nó na minha garganta voltou, e me lembrei da cultura que o país tinha de gerentes. Ri com sarcasmo enquanto lágrimas se acumulavam no canto dos meus olhos - Espera que eu saia do patamar de atleta de performance para entregar toalhas e bebida esportiva?
-Se acha que o trabalho de uma gerente é só isso, é uma pena. - Kuroo se levantou e bateu as mãos nas vestes - Talvez precise aprender um pouco mais sobre nós.
Sem uma segunda palavra ele começou a se afastar, me deixando para trás envolta a lembranças turvas e sombrias. Embora odiasse admitir, ele tinha razão, quanto mais fechasse os olhos mais medo teria de encarar meus problemas de frente.
Eu amava vôlei, ou melhor, eu amo vôlei.
O que eu fui, o orgulho que tenho não me permite pensar em pisar numa quadra sem ser para jogar. Mas assassinar algo que foi meu companheiro por muito tempo era a melhor saída? Não, é claro que não. Só deixava mais evidente o quão patética e medrosas estavam sendo as minhas escolhas, está mais do que na hora de parar de correr dos meus problemas e os encarar de frente, mesmo que doa.
-Lupo di Roma - disse alto o suficiente para fazer Kuroo parar e olhar pra trás com um pouco de confusão - O chaveiro que você perguntou, é do meu antigo time. Foi uma homenagem ao mito de Rômulo e Remo e a loba que os salvou quando foram abandonados às margens do rio Tibre.
-É um bom nome - disse sorrindo fraco e voltando a andar para longe - A propósito, temos treino matinal amanhã.
Grunhi me levantando e batendo as mãos na roupa - Você não devia me fazer um convite ao invés de supor que eu magicamente vá aparecer?
O garoto riu alto e ergueu a mão no ar dando um aceno - Não, sei que não precisa.
Coloquei a mão na cintura enquanto observava suas costas se afastarem, ele claramente estava jogando com a minha honra. Puxei os cabelos de leve tomando o caminho de volta para a minha casa sem conseguir impedir um riso de escapar dos meus lábios.
De príncipe da química a rei da provocação, o que mais você tem para me mostrar Kuroo-kun?
N/A: Mais um!
Obrigada por ler até aqui, as atualizações são esporádicas embora eu esteja colocando com uma certa frequência. Mas é uma fic relativamente fácil de escrever.
Enfim, adicione as listas de leitura para acompanhar!
Até mais, Xx!
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