Língua de Gato
Bocejei enquanto esperava o trem na estação, fiquei uma boa parte da tarde anterior, noite e madrugada copiando as matérias que Aoi havia me emprestado. E não apenas isso, mas também traduzindo os termos mais diferentes que não entendia.
Não consegui dormir direito. Apesar de exausta quando me deitava, minha mente parecia uma avalanche de pensamentos, um atropelando o outro sem conseguir manter um sentido e por consequência não me deixando descansar.
Girei os ombros na tentativa de me despertar e alongar os músculos, pegando em seguida na bolsa uma fita branca e amarrando meu cabelo no alto num rabo de cavalo. Pelo único motivo de precisar me mexer para não dormir ali mesmo em pé.
A plataforma encheu num único segundo me deixando alerta para a falta de espaço pessoal, minha sorte era que precisava aguentar apenas por algumas estações. A escola em si não era numa região muito movimentada, mas o transporte já vinha cheio de outros pontos.
Devia ter um horário melhor, mas até que descobrisse teria que me virar com o que tinha, antes adiantada do que atrasada. Durante o caminho vi alguns outros uniformes mas nenhum deles era da Nekoma, respirei fundo contando os segundos para descer, e quase agradeci em voz alta quando isso aconteceu.
Fiz o restante do percurso a pé, mirando casualmente o céu que se erguia pelos prédios de aparência comum. O bairro ao redor do colégio parecia mais uma cidade do interior do que de parte de uma grande metrópole mundial, era um pouco mais reconfortante por isso.
Mas ainda não se comparava à beleza de Roma, seus prédios de arquitetura milenar e ruínas históricas.
Encarei meu pés enquanto andava na direção do prédio, estava na hora de parar de choramingar e encarar que a minha realidade de agora era muito diferente da de alguns meses atrás. Essa é minha vida, quer goste ou não.
Subi os degraus devagar enquanto seguia para a sala ainda vazia, pelo menos isso era uma coisa boa. Sentei no meu lugar e aguardei para que as aulas começassem, pegando meu celular vi que tinha apenas uma nova mensagem.
>> Esqueci de falar de manhã, mas me avise hora que sair. Temos horário na clínica.
Compromissos, horários e avisos não eram o forte do meu pai. Respondi com um breve "ok" e voltei a guardar o aparelho. Puxando em seguida um dos meus cadernos da bolsa e abrindo nas últimas páginas, ou primeiras depende do ponto de vista, retomando um rabisco qualquer que tinha ali.
Era um velho hábito, e particularmente achava que tinha algum talento, mas o meu lado artístico foi afugentado pelo meu amor pelo esporte e esquecido ao longo dos anos. Parecia cômico que a única coisa que acalentava meu coração era a mesma que abandonei a muito tempo, quase uma cena de peça de tragédia.
Sem ter algo definido em mente surgiu no caderno um rosto ou algo que nos princípios de um rascunho desleixado lembrava um rosto. Um homem, ou rapaz talvez...
-Bom dia [Nome]-san.
Ergui os olhos do caderno para ver Aoi quase se arrastando em direção a sua carteira, claramente ela não era uma pessoa matinal. Sorri de leve, ela me lembrava de uma boa amiga, respondi seu cumprimento e peguei seus livros a fim de devolver.
-Obrigada, foram de grande ajuda. - agradeci.
-Sempre que precisar - ela respondeu coçando um dos olhos e em seguida batendo as mãos nas laterais da bochecha. Na tentativa de acordar - Tem muita diferença?
-Algumas - comentei - Nada que algumas semanas não resolvam.
-Bom já sabe que pode me chamar - concluiu cruzando os braços sobre a carteira, ela se mantinha de frente enquanto eu estava sentada de lado. - De verdade, sempre tenho tempo.
-Me desculpe perguntar, mas suas amigas não vão reclamar de dar atenção demais para a estrangeira? - debochei do meu próprio título.
Aoi mexeu nos dedos e sorriu fraco dando de ombros - Não é como se eu tivesse muitas pessoas sinceras com quem conversar. - ela deixou o assunto no ar, provavelmente ponderando se deveria continuar ou não.
Ao contrário do que pareceu a companhia da garota era bem vinda, mas sabia pelos olhares que eu não era uma das pessoas mais queridas da escola. Não queria trazer problemas para ninguém.
Afinal já tinha meus próprios demônios para cortar a cabeça.
-Não quis te ofender - me corrigi - É bom ter alguém com quem falar, só... Não quero atrapalhar.
Ela balançou a cabeça e apoiou a bochecha na mão - Eu entendi na primeira vez, você é bem franca com suas palavras [Nome], talvez só não saiba se expressar muito bem ainda.
A morena resolveu continuar - Deve ter percebido que Kuroo e eu somos amigos, sempre estudamos juntos. Mas quando as meninas começaram a se interessar por ele me usaram como ponte, sabe o clássico, a amiga boba que não percebe até ser jogada para o lado.
-Pelo jeito ele não atrai boas pessoas.
Ela riu - A maioria não, mas pelo menos ele é decente o suficiente pra não se envolver com esse tipo. - ela se inclinou falando mais baixo - E sejamos sinceras, elas não entenderiam as piadas inteligentes e termos científicos.
-Se você está dizendo, quem sou eu para discordar. - o assunto entrou na sala rapidamente sendo seguido de perto pelo professor, Kuroo passou por nós duas dando um aceno de cabeça e sentou em seu lugar. Mais alguns segundos estaria atrasado.
-Aoi-san - chamei - Se não tiver nada a mais para fazer, pode me mostrar a escola no almoço?
Seus olhos mostraram surpresa pelo meu pedido inesperado, mas ela assentiu concordando com um sorriso largo. Ainda não consegui corresponder a sua animação, então apenas agradeci e me virei para assistir às aulas.
Por sorte não tínhamos trocas às sextas, então ficamos na sala durante todo o período. No intervalo Aoi me ajudou com as matérias então não saímos. A aula de matemática foi ótima mas as que seguiram depois dela praticamente foram tortura, literatura e biologia, juntando as duas eu deveria ter entendido cerca de 10% do conteúdo.
Estava até com dor de cabeça quando o sinal bateu.
-Vai melhorar - a castanha tentou me animar sem surtir muito efeito. Aoi arrumou a bolsa - Vejamos, podemos passar no refeitório e ver a parte de dentro onde fica a biblioteca o resto dos laboratórios e depois podemos passar nos ginásios.
-Parece bom - comentei a seguindo para fora da sala, mas assim que chegamos no segundo andar alguém pareceu a chamar.
-Aoi-senpai, o sensei pediu uma reunião do clube de última hora - um garoto de óculos e cabelos compridos se aproximou colocando as mãos no joelho e tomando fôlego - É sobre a primeira competição.
-Mas... - ela olhou pra mim e eu balancei a cabeça.
-Não se preocupe Aoi-san, vão ter outras oportunidades. - coloquei a mão em suas costas - Vai lá.
Ainda um pouco relutante ela seguiu o menino, e pelo segundo dia consecutivo me vi caminhando sozinha com olhares estranhos me seguindo para todos os lugares. Isso até eu sumir no meio dos prédios para encontrar a mesma parede de cimento do dia anterior.
Não tive vergonha em me sentar no chão, e ao contrário do dia anterior tirei de dentro da bolsa uma maçã, que seria meu alimento até a hora da saída. Estava longe de ser o ideal, mas era o que eu tinha.
-Então é aqui que você se esconde.
Olhei para cima apenas para encontrar o amigo de Aoi, Kuroo. Segundo a professora o príncipe da química.
-Não estou exatamente camuflada - rebati - Qualquer um que passar por perto consegue me ver. Se quiser é claro.
Mesmo sem permissão ele se sentou ao meu lado - Bom, as pessoas normalmente têm medo do que não conhecem. Se sentiriam mais cativadas se ouvissem seu sotaque.
Ergui uma sobrancelha - E qual a lógica por trás disso?
-É surpreendentemente fofo.
Se ele esperava que eu fosse me tornar uma bagunça por uma frase como aquela, estava bem enganado.
-Entendo - dei o meu sorriso coringa, largo e cínico - Então, acha que algo como isso vai ser o suficiente pra me fazer derreter?
-Não - Ele riu. A princípio que ele fosse recuar, mas pelo contrário sustentou sua provocação e ainda rebateu - Mas quem sabe trincar essa camada de gelo onde você está se escondendo seja um bom começo.
-E qual é a pegadinha? - questionei.
-Digamos que eu sei de alguma forma como é estar no seu lugar - murmurou como se estivesse puxando uma memória distante - Não mudar de país, mas ser a criança nova.
Não soube o que responder, houve um tom de sinceridade que me impediu de retrucar até porque não era uma mentira. Kuroo se virou então e tirou um embrulho da bolsa entregando pra mim.
-Aqui, um símbolo de paz.
Era um dos pães que ficava exposto na cafeteria, tinha visto no dia anterior quando não consegui identificar como fazia o pedido. Minha boca salivou e eu precisei engolir, vendo que eu não fiz menção de me mexer ele colocou o pacote no meu colo e puxou um segundo para si mesmo.
-Você não deveria comer esse tipo de coisa, vai desmaiar no treino. Precisa da quantidade necessária de alimento para suprir a perda de nutrientes.
Assim que terminei de falar, quis me bater. O meu antigo lado de capitã acabou aparecendo antes mesmo de conseguir reprimir.
-Como sabe que eu treino? - ele colocou a mão no rosto teatralmente - Oh, [Nome]-chan, andou me observando?
-Aoi-san falou pro seu amigo acertar um saque em você ontem - expliquei sem grande entusiasmo - Não precisa ser muito inteligente para ligar os pontos, mas não nego que eu posso ser boa observando as pessoas.
-É mesmo? - seu tom era provocador. Seus olhos cor de âmbar encararam os meus com desafio - Então o que mais pode dizer?
Nunca recusava um desafio.
-O time de vôlei teve treino de manhã, é por isso que você chegou junto com o professor hoje, sua gravata também estava torta. - e continuei - Capitão do time, cogitei ser atacante mas sua postura praticamente grita central.
- Um do tipo chato de lidar - tombei a minha cabeça para o lado - Prefere jogadas pensadas à agressivas, talvez algumas até saudosistas e consideradas antiquadas. Algo que os jogadores atuais não estejam acostumados a ver.
Sua feição era de surpresa, e ele fez menção de falar mas não vocalizou.
-O que foi? - Abri o pacote do sanduíche - Gato comeu sua língua?
Kuroo sorriu envergonhado passando a mão pela lateral da cabeça - Quase isso, você joga? Não tem como alguém saber tanto só de olhar de fora.
Aquela pergunta sempre seria amarga, não importava quanto tempo se passasse. -Não.
-Uma espectadora então? Deve gostar pelo menos um pouco para ter um chaveiro da Fipav - ele apontou o logo da Federação Italiana de Voleibol pendurado na minha bolsa - Mas mesmo assim, agora pouco você falou como uma verdadeira capitã. Quase me senti obrigado a comprar um almoço de verdade.
Ri de leve - Realmente deveria.
Não querendo continuar a conversa mordi o pão, eu não sabia o que tinha no meio mas era delicioso. Meu estômago quase se revirou de felicidade.
-E então? - Kuroo perguntou.
-É bom - respondi terminando de mastigar e colocando a mão na frente da boca - Grazie, quero dizer, obrigada.
O rapaz pareceu satisfeito com a resposta pois olhou para frente e sorriu - Bem-vinda a Nekoma.
N/A: Gosto como está caminhando. Estou animada novamente.
Até mais, Xx!
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