CAPÍTULO 1
O cantor sertanejo Cácio Torres ficou largado no sofá do luxuoso apartamento observando as pessoas a sua volta comemorarem o fechamento de uma turnê de vinte shows pelo Brasil.
Interessante todas aquelas pessoas que viviam as suas custas não se darem conta de que o próprio cantor não parecia entusiasmado com aquela conquista.
_Eu te falei, Emir, eu te falei que aquela apresentação naquele rodeio idiota cheio de gente baranga iria nos garantir uma turnê pelo Brasil!_ disse Nestor, pai de Cácio, sem se conter.
Uma das coisas que o cantor odiava no pai era ele desmerecer as pessoas que prestigiavam o filho dele!
_Admito que você estava certo, Nestor e que às vezes é preciso dar um passo atrás para depois dar dois a frente. _falou Emir, tio de Cácio.
Cácio também não gostava de ver o quanto o seu tio Emir era submisso às opiniões do irmão. Se ele pelo menos contestasse os absurdos que o irmão dizia, já aliviava a situação.
Nestor e Emir eram os empresários de Cácio, assim poderiam descrevê-los...mas era visível que o pai do cantor era o verdadeiro chefão por ali.
Os irmãos não tinham os mesmos direitos, não tinham a mesma parcela de responsabilidade, nem mesmo tinham os lucros divididos de forma igualitária. Em todas as decisões que precisavam tomar em relação a Cácio, a última palavra quem dava era sempre Nestor...essa sim se sobrepunha inclusive à opinião do próprio cantor!
_Mas também eu caprichei no figurino, tio! _ Stephane, prima de Cácio, não deixou de valorizar a sua participação. _Eu falei que o Cácio iria ficar mais lindo ainda com esta camisa xadrez vermelha, esta calça jeans surrada e bem apertada, estas botas...
Nestor nem disfarçou o desinteresse na fala da sobrinha e deu-lhe as costas enquanto conversava com um dos empregados.
Ela, acostumada com aquela postura grosseira do tio, virou-se para o primo e sussurrou:
_Você está é um tesão, primo! Deixou a mulherada louca!
Cácio tinha que admitir que a prima sabia construir um bom personagem...Ele com aquelas roupas e metido naquelas botas, realmente parecia ter nascido como um genuíno cowboy. O chapéu havia sido roubado por uma fã enlouquecida que havia furado o esquema de segurança e tinha subido no palco tentando beijá-lo.
O pai do cantor, claro, havia adorado ver a mulherada indo ao delírio percebendo a ousadia da outra.
_O povo parecia saber todas as letras das músicas! Incrível isso! Eu não dava nada por aquela gente e eles me surpreenderam nos dando aquela acolhida toda! _continuou Nestor se servindo de mais champanhe. _Também, claro, duvido que alguém do nível de um Cácio Torres já pisou naquele lugar! Uma gente sem noção...vieram oferecer camarim, acreditam? Devia ser um muquifo cheio de pulgas e ratos!
O pai de Cácio desfilou triunfante pelo apartamento, erguendo a taça de champanhe sem brindar com ninguém em particular e continuou:
_Eles sabem que se a gente ganhar o mundo, dificilmente iremos pisar novamente naquele palco improvisado para aqueles cantores de quinta! Queriam, inclusive, discutir o preço do show...Fui taxativo...nem um real de desconto! Se queriam dar bom dia, que não fosse com o meu chapéu, claro!
Emir, assim como a filha, perceberam que aquilo era mais um monólogo do que um diálogo e não disseram nada...assim como o cantor que permanecia calado.
Cácio não queria comemorar...não queria festejar nada...que o pai fizesse sozinho o seu show de empresário perfeito...que ele representasse o papel de pai que sabe cuidar do filho... Que Nestor massageasse o próprio ego gigante sozinho, sem a participação de mais ninguém!
_ Acha que eu iria deixar o meu menino se meter em furada, Emir? Claro que não! _Nestor falou cheio de si. _ Meus contatos me deram a ficha completa daquele rodeio! Acredite se quiser, ele está na décima quinta edição sempre daquele jeito que você viu ali...lotado!
_A coisa estava meio morta até o Cácio subir no palco. Valeu a pena a gente investir pesado na propaganda! Aliás, a propaganda continua sendo sim a alma do negócio!_ Emir falou sentindo a necessidade de falar alguma coisa, afinal, se julgava o braço direito do irmão.
A cabeça do cantor doía e ele estava realmente esgotado, talvez porque ainda estivesse sob o efeito da droga...talvez porque estivesse exaurido de forças devido às longas horas de trabalho...Bom não precisar dizer nada e apenas continuar invisível ali, de alguma forma se alimentando do entusiasmo dos outros, já que o dele já havia se acabado há tempos!
Às vezes Cácio chegava a pensar que estava enganando o seu público, que parecia acreditar que ele era um homem perfeito e feliz...honesto consigo mesmo e, consequentemente, honesto com quem o apoiava enchendo estádios, casas de shows, rodeios e fazendo a sua fama e fortuna crescerem cada vez mais.
_Tem gente que não se enxerga...O organizador veio me falar que agora o Cácio já é presença garantida neste rodeio todos os anos! _ Nestor falou exaltado apontando para o filho, porém sem mesmo perceber que ele parecia alheio a tudo que o rodeava. _E eu tentando ser educado disse que seria um prazer, mas isso vai depender da agenda do Cácio, claro...
_Daremos prioridade pra quem oferecer mais, óbvio! _ Emir completou, mais uma vez tentando assumir o seu posto de empresário.
Cácio olhava os dois homens a sua frente sem, porém, os ver realmente, pois continuava avaliando a si mesmo...sua maior obsessão nos últimos dias...descobrir quem era ele, afinal!
Uma farsa, era assim que o cantor sertanejo se descreveria...uma fake news ambulante que deveria desmascarar a si mesma a fim de tirar todas aquelas pessoas da ilusão de achar que ali no palco havia um ser supremo, superior a todas elas e que merecia tanta consideração, tanta adoração e tanto apoio.
_Meu filho é o maior cantor sertanejo do Brasil! _ Nestor falou para as pessoas que transitavam por ali e os bajuladores aplaudiram e concordaram com o empresário.
O filho de Nestor acreditava que não tinha talento, a verdade era aquela! Era uma super produção que se saía muito bem no palco, tanto que convencia a todos...talvez até aos parentes, de que ele era tudo o que pensavam...mas não...Cácio reconhecia que não era nada daquilo!
Era tão fácil subir no palco, colocar no piloto automático e, na maioria das vezes sob o efeito de drogas, dar tudo o que o público queria como um cão de circo muito bem adestrado...tudo o que os seus empresários esperavam dele...corresponder a todas as expectativas e fazer valer o que pagariam pelo seu show!
Assim que o efeito das drogas passava, o cantor ficava deprimido e se sentia no fundo do poço...um buraco negro se formava a sua volta e o engolia cada vez mais e ele tinha que encarar tudo aquilo sozinho, pois não podia deixar transparecer o fraco que ele era!
Sob o efeito das drogas, ele era sempre carismático, sempre cheio de energia, sempre capaz de não decepcionar as pessoas...quando o efeito passava, a imagem refletida no espelho só lhe causava desprezo por si mesmo!
Era o próprio pai quem administrava as drogas e, sabiamente, nunca deixava que elas estivessem ao alcance do filho...talvez porque Nestor também temia que Cácio fizesse alguma besteira e colocasse tudo a perder.
Não havia ninguém com quem desabafar...não havia um verdadeiro amigo com quem ele pudesse se abrir e revelar que merda de ser humano ele era...um fracassado cujo maior sonho era se tornar um desconhecido...apenas um rosto anônimo na multidão a fim de ser livre pra levar a vida que quisesse.
Se alguém perguntasse, porém, ele não saberia dizer, afinal de contas, que tipo de vida ele desejava...só sabia que não era aquela! Só sabia que estava cansado de caminhar com as pernas do pai...fazendo o que ele determinava...o que ele mandava fazer...Tudo aquilo estava se tornando extremamente sufocante e ele sabia que chegaria o momento que não daria mais pra suportar!
Felizmente, a sua função era só representar aquele papel de pop star, de celebridade que levantava as multidões, nada mais...o pai, o tio e a prima cuidavam de todo o resto.
Era bom pra sua imagem ter sempre todas aquelas mulheres a sua volta...era bom pra sua imagem, dizia o pai, sempre deixar aquela fama de garanhão, pegador, homem insaciável que poderia um dia, quem sabe, levar uma de suas fãs para a cama.
Dentre todas as garotas que haviam passado por sua vida, porém, havia Stephane, filha do seu tio Emir e a pessoa mais próxima de amiga que ele podia se lembrar.
O bom de ter Stephane sempre ao lado dele era que ela sabia se impor e, quando estava farta de todas aquelas garotas pegajosas que visivelmente sonhavam em algum dia poderem ser a senhora Cácio Torres, ela simplesmente assumia o seu posto de chefe das cadelas, como ela brincava ao descrever a si mesma. Bastava um gesto dela e todas iam embora.
_Está esgotado, pobrezinho..._disse Stephane já se sentando com os pés do primo em seu colo e lhe fazendo uma massagem, após retirar as botas e as meias do cantor.
Cácio fechou os olhos, tombou a cabeça pra trás e tentou relaxar...não deu, pois algo mais ali o incomodava...aquele papel humilhante da prima tentando agradá-lo, como sempre...Por que ela tinha que ser tão perfeita e ele tão cheio de imperfeições?
A ausência de tesão em relação às mulheres já o havia assustado um dia, agora, não mais...pois ele ia percebendo, pouco a pouco, que a ausência era de todo e qualquer sentimento...de todo e qualquer desejo de se permitir, inclusive, de se aproximar demais de alguém, pois ao mesmo tempo em que ele queria se abrir pra outra pessoa, algo o fazia retrair-se, recuar temendo o que poderia deixar escapar sem perceber. Tinha medo do que surgiria, ou mesmo restaria, quando a figura do cantor sertanejo desaparecesse diante de alguém...talvez até ele próprio não quisesse se deparar consigo mesmo!
_Chega aí, cambada, porque o trabalho só termina quando eu disser que acabou! _ berrou Nestor fazendo o filho abrir os olhos assustado.
Era insuportável a mania que o pai tinha de assim que voltavam de algum show, ele já chamava a equipe para ver o vídeo da apresentação do filho e já ia apontando os erros cometidos, as falhas, o que mudariam da próxima vez...Nestor não tinha misericórdia ao tentar sugar o resto de energia que os pobres coitados ainda tinham? Não podia deixar aquilo para o dia seguinte?
_Amanhã é outro dia...é melhor fazer a avaliação de tudo agora e já consertar as merdas que vocês fizeram, porque eu vi... _ e era hora de sair apontando o dedo para os seguranças, os músicos...o cantor...
Um carrasco, esse seria o termo correto para descrever o empresário Nestor Torres. Impressionante como ele mesmo não parecia cansado, mas cheio de energia para virarem a noite discutindo sobre aquilo.
_Vocês dois aí..._gritou o pai vendo a sobrinha massageando agora a nuca do filho dele. _Vão procurar um quarto, seus vadios!
Cácio permitiu que Stephane, fingindo vergonha, o arrastasse para a sua suíte, o despisse e o colocasse na cama, deitando-se nua ao lado dele.
Tudo entre os dois primos se tornara tão mecânico, como se fossem dois atores representando bem o papel que já haviam decorado.
_Eu vou cuidar de você, meu bem... _ ela falou com sua voz que parecia um bálsamo aos ouvidos de Cácio.
Ela era tão linda...tão sensual...por que ele não podia simplesmente se apaixonar pela prima, casar-se com ela e tentar ser feliz?
As carícias começaram logo, mas ele não conseguia reagir...não porque estava com sono...nem mesmo porque a garganta doía...mas porque não se interessava mais por aquele tipo de passatempo vazio e insosso...aliás, algum dia realmente havia sentido desejo pela prima ou por qualquer outra mulher?
Às vezes, Cácio chegava a pensar se ela algum dia também havia realmente desejado ele, ou se também cumpria o seu papel com tamanha perfeição que já não sabia mais o que era realidade ou ilusão. Ele os descreveria como dois irmãos, nunca como dois amantes.
O artista às vezes finge tão bem que às vezes finge sentir a dor que deveras sente...Onde ele havia escutado aquilo? Numa das aulas de literatura...algum trecho de uma música...ou simplesmente inventara aquilo para se descrever? Ele assumia pra si mesmo que era um bom fingidor!
A mão da garota meteu-se entre as pernas do cantor e começou a massageá-lo sem obter resultado algum.
Stephane era perfeita...ela mesma arranjava as desculpas pra tamanha falta de interesse do primo e se ficava frustrada, não demonstrava.
_Vejo que você está exausto, lindo. _a garota sussurrou com a sua voz melosa e sensual.
Ele virou-se de costas pra ela:
_Estou esgotado! Preciso dormir um pouco, se não se importa.
Ela não se importava...talvez estivesse cansada de perceber que ele não a desejava e sua autoestima exigia que fosse atrás de algum homem para preencher as lacunas que o primo havia deixado.
Stephane era a sua cúmplice, ele sabia...sairia dali e não diria nada e deixaria todos pensarem que ele havia cumprido o seu papel...que ele havia trepado com ela e feito ela gozar...Será que ela havia calculado o tempo para não levantarem suspeitas?
_Tudo bem...pode deixar...eu cuido de tudo..._ ela falou baixinho, como se lesse os pensamentos dele.
Os dois já haviam tentado ficar juntos uma única vez e tinha sido um desastre! Com qualquer outra garota teria sido um desastre, ele bem o sabia.
_Quer que eu feche as cortinas? Aumente o ar condicionado? Talvez queira um comprimido, uma água... _ela ofereceu sempre solidária.
Ele se sentia mal...ela não era a sua empregada, por que agia como uma? Ela era a sua prima querida e ele queria voltar aos tempos de criança, quando os dois ainda não sabiam de todas as maldades da vida.
Cácio acreditava que no momento ela obedecia às ordens do ditador Nestor desempenhando o papel de namorada do primo.
_Não, Stephane...obrigado...Eu só quero ficar sozinho, nada mais!
Ela saiu após ajeitar o edredom, dar um beijo de boa noite no primo e ele sabia que ninguém mais viria pra ver se ele estava bem...pra ver se ele precisava de algo...se ele queria conversar um pouco...ela daria o recado...a mina de ouro de todos eles precisava recuperar as energias, afinal, vinte shows já estavam garantidos.
Vida besta, ele pensou vendo as estrelas que pareciam tão solitárias quanto ele, apesar de haverem milhares de outras a sua volta.
Aos poucos, Cácio foi ouvindo o silêncio tomar conta do apartamento, enquanto as vozes e risadas se afastavam em direção ao elevador.
Os outros iriam comemorar, pois realmente tinham motivos para comemorar...estavam vivos, estavam cheios de dinheiro, estavam com o futuro garantido, graças a ele.
Melhor mesmo que ele ficasse em casa descansando, tinha certeza de que o pai e o tio haviam concordado. Ele era precioso demais para correr o risco de amanhecer cheio de olheiras diante de algum repórter ou fã, ou mesmo ser visto enchendo a cara...Um cantor tão famoso não podia sair para gastar toda a sua energia em coisas mundanas, enquanto ainda precisava conservar a voz perfeita e a aparência saudável.
Apesar de cansado, o cantor não conseguiu dormir e ficou rolando na cama.
A mente de Cácio não lhe deu uma trégua...não naquela noite em que ele parecia disposto a explodir e jogar tudo pro alto!
Cácio andou pelo apartamento arrastando as pernas e deu de cara com uma garrafa de champanhe largada sobre a mesa...felizmente não tão gelada que viesse a afetar a sua voz que precisava ser preservada a todo custo.
Aos poucos, o álcool foi assumindo o controle e ele pode se deliciar com aquela sensação gostosa de algo silenciando todos os seus pensamentos...anestesiando todas as suas dores... e finalmente o cantor conseguiu fechar os olhos e apagar ali mesmo no sofá da sala.
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