Capítulo 07 - Como visualizar um futuro quando você está presa ao passado?
(Repostagem desse capítulo por motivos de... Surpresa! Lê tudo que lá embaixo eu te conto!)
Sei que a minha temporada nessa cidade vai acabar, mas evito pensar nisso, porque ainda não tenho ideia de como agir com o Miguel. O que farei? Sairei da nossa casa? O lugar onde planejamos todos os detalhes e construímos juntos? Pedirei para ele sair? Me tornarei uma mulher divorciada? Ficarei sozinha para sempre?
Como seguir em frente quando o amor da sua vida acaba com tudo? Sua realidade, seus sonhos, suas expectativas. Tudo virou fumaça. Como visualizar um futuro quando você está presa ao passado?
Não consigo me mover, me sinto paralisada. Tenho um passado e um presente, mas não consigo ver o futuro. Só consigo sentir raiva e mágoa. Sinto-me usada, traída. Sinto-me um objeto. Um nada.
Mas não pode ser assim. Tenho uma filha, e por ela preciso seguir em frente. Preciso querer viver, não me entregar à dor e a revolta. Preciso de um futuro. Um futuro feliz.
Tenho o hábito de falar com o Rogério pelo telefone, e, certo dia, meu amigo deve ter notado que eu estava preparada para escutar outras coisas, pois me falou sobre algo que nunca havia pensado: minha própria responsabilidade no que aconteceu. No que havia contribuído para a situação chegar a tal ponto.
– Um casamento é uma relação entre duas pessoas. – Disse. – Duas pessoas que contribuem de todas as formas, nos acontecimentos bons e ruins.
Inicialmente me incomodei em ouvir aquilo:
– Como assim? – Indaguei – Fui traída e ainda tenho culpa?
– Responsabilidade. É completamente diferente de culpa. – Tentou explicar, mas fiquei ainda mais revoltada.
– Meu marido estava indo para cama de outra mulher! – Praticamente gritei – E não eu. Ele está errado! Ele é o culpado! O Miguel fez tudo isso e não eu!
– E o que você fez, Helô? – Ele praticamente me prensou contra a parede. Eu estava sentindo como se estivesse fazendo psicoterapia.
– O que poderia fazer? – Minha voz diminuiu o tom. O Rogério chegou exatamente onde queria. A conversa acabou e agora me pergunto isso o tempo todo. Passo o dia me perguntando. O que eu poderia fazer? O que deveria ter feito? Qual era a minha responsabilidade no meu casamento?
Então finalmente percebo. O Miguel foi errado em me trair, mas foi a forma que ele encontrou para me mostrar que algo estava quebrado. Uma forma disfuncional, que me machucou muito mais do que ele pode imaginar, mas foi o que ele fez e não posso mudar isso.
E quanto a mim? O que fiz quando percebi que meu casamento não ia bem?
Também errei. Não consegui conversar. Não tentei descobrir os motivos. Afundei no trabalho. Não cuidei do meu marido, do meu casamento, da minha família. Esperei uma solução milagrosa cair do céu. Não dei o devido valor às pistas que iam surgindo. Fechei os olhos. Fiz–me de cega, surda e burra. E agora não posso me colocar num lugar de vítima e coitadinha.
Não permito que a culpa tome o lugar da mágoa, apesar de ter percebido que o Miguel não é o vilão que eu passei esse tempo todo pintando. Ele errou, eu também. Ter consciência disso é como tirar um peso das costas, porque os dias vão ficando mais fáceis.
~
O dia amanhece chuvoso nessa quarta-feira, é meu segundo plantão da semana, e estou estranhamente mais leve. Sabe aqueles dias em que você se sente como um personagem de filme europeu? Me sinto assim. Quero calçar a minha galocha e dançar na chuva, mas não posso, tenho de trabalhar, e, além disso, não sou nenhuma adolescente para dançar no meio da rua. Calço a galocha, seguro a vontade de correr na chuva, entro no meu carro e vou para o hospital, sabendo que só voltarei para casa amanhã, já que vou emendar o plantão diurno com o noturno.
Tenho muito pouco a fazer, acompanho os pacientes internados, dou algumas altas e encaminhamentos, e atendo casos simples na urgência. Tudo indicando que as coisas vão continuar tranquilas, mas não ficam. No meio do dia recebemos um telefonema: uma mulher em trabalho de parto num povoado de Novo Horizonte, mas houve um deslizamento de terra e não há como trazê-la para o hospital. O obstetra plantonista está realizando uma cesárea e já tem outra paciente em trabalho de parto aguardando.
Tento manter o estado de ânimo de personagem de filme, mas não dá. Tenho acompanhado um ou dois partos por semana, alguns naturais, outros por meio de cesárea, mas sempre no hospital, com todo aparato profissional e material necessário, incluindo assepsia. Como vou fazer isso fora do hospital nessas condições? Respiro fundo, me perguntando o motivo pelo qual não trouxeram a mulher assim que a primeira contração surgiu. Com o telefone ainda na mão a Clarice me explica tudo. Uma equipe precisa ir até lá.
– Como? Se a estrada está bloqueada? – Indago.
– De lancha. – É resposta.
– Muito bem. – Seja o que Deus quiser. – Providencia isso para mim. Vou mandar preparar o material e a equipe. – Dou as costas e então lembro. – E avisa o outro plantonista que ele vai ficar aqui sozinho.
Ainda bem que a Marília estava lá, não sei como faria isso sem sua presença. É ela quem escolhe os profissionais de plantão que tem mais experiência em obstetrícia, pediatria neonatal e situações de emergência e lidera a equipe que vai fazer esse atendimento.
Nosso objetivo é tentar conduzir o parto lá mesmo no povoado, mas se não houver condições teremos que trazer a parturiente na lancha. Em poucos minutos, estamos na ambulância que nos levará até o cais. A chuva está forte e o mar revolto. Rezo para chegar ao tal povoado viva.
Apesar das ondas fortes, alcançamos o lugar indicado. A mulher está em casa, mas o povoado é pequeno e rapidamente chegamos até ela. A situação é crítica, a bolsa já rompeu, ela está com dilatação, mas pelo exame clínico concluo que a criança não está na posição. Apesar de conduzir partos, não sou especialista, e não sei fazer a manobra para virar o bebê. Por que ninguém tinha visto isso na ultrassonografia e agendado uma cesárea ou encaminhado a mãe para um obstetra?
– Onde a senhora fez o pré-natal? – Indago.
– Não fiz, não, doutora.
– Como assim?
– Aqui a gente só vai para cidade na hora de parir. É muito longe, sai caro, tenho outra criança para cuidar.
Eu me sinto no interior do Nordeste, novamente. Eita, Brasil sem rumo. Olho para Marília, que entende minha decisão só com o olhar.
– Nós vamos ter que levá-la para o hospital conosco. Preciso fazer uma cesárea. – A mulher fica bastante nervosa. Peço para Marília acalmá-la e vou atrás de um telefone para contatar o hospital porque o meu celular está sem sinal.
Sou levada até a casa do vizinho, enquanto Marília mede a pressão arterial e os sinais vitais da parturiente. Apesar de tudo ela é nova, 27 anos, e aparentemente não tem nenhum problema de saúde. Ligo para o hospital e peço o centro cirúrgico, uma equipe e o anestesista preparados a nossa espera. A mulher é colocada na lancha e eu troco algumas palavras com o marido antes de entrar.
– Quantos filhos vocês já têm?
– Só um.
Mordi os lábios. A situação era pior do que eu pensava.
– É o seguinte, não vou mentir para o senhor, talvez o bebê não sobreviva à viagem, e a vida da sua esposa está em risco. – Ele faz uma cara de dor. – O senhor acredita em Deus?
Ele balança a cabeça, os olhos cheios de água.
– Pois pode começar a rezar.
– Doutora? – Ele me segura pela capa de chuva. Viro-me. – Salva a minha mulher.
Aceno com a cabeça e entro na lancha, sendo seguida por ele. Já passei por diversas situações na minha vida, mas nunca me senti tão inútil. Realmente não posso fazer nada, a não ser ouvir os gritos de dor daquela mulher e tentar tranquilizá-la. Quando chegamos, ela é colocada na maca e nós corremos até o centro cirúrgico enquanto eu tento prender os meus cabelos grudados no rosto por causa da chuva.
Faço a cirurgia o mais rápido que eu consigo, a criança não parece nada bem. Entrego-a para o pediatra e a mãe ouve seu choro.
– Nasceu doutora? – Ela pergunta chorando.
– Nasceu. É um rapazinho...
– Ele tá bem?
– Tem um pediatra o examinando, já, já ele fala com você.
– Doutora. – Me chama mais uma vez. Aproximo-me. – A senhora pode me ligar?
Não sei o que responder. E se aquela criança não sobreviver? Ou se vier a ter sequelas devido à demora do atendimento?
– Por quê? – Indago.
– Não posso bancar mais de dois filhos. Só meu marido trabalha, e nós passamos muita necessidade. Eu nem queria engravidar de novo, era minha sogra que levava remédio para mim, mas aí ela morreu e eu não tive como comprar mais.
– E o preservativo?
– Meu marido não gosta. Diz que quem usa aquilo é quem se deita com puta. Por favor, doutora, eu não vou aguentar passar por isso de novo.
Olho para o pediatra, ele faz sinal e peço que a paciente espere um pouco. Preciso decidir logo, para fechá-la.
– Heloísa, ele precisou de oxigênio, e não garanto nada. Precisa ficar em observação, as próximas horas serão cruciais.
– A mãe quer laqueadura. – Afirmo.
– Eu ouvi. Fala a verdade. Existem riscos de morte e déficit neurológico.
– Ok. – Me aproximo da paciente novamente. – Suzana, vou ser sincera com você. Como te disse no caminho, seu filho estava em sofrimento fetal. Essa demora toda pode ter feito com que faltasse oxigênio no cérebro dele, e nós não temos como identificar o tempo exato. Ele vai ficar em observação, e só aí vamos descobrir se essa demora provocou alguma consequência ruim. Pode ser que ele não sobreviva. Pode ser que ele venha a ter problemas de desenvolvimento. Mas também pode ser que ele seja uma criança completamente sadia.
Ela parece bastante lúcida e resolvida.
– Você tem certeza que quer fazer a laqueadura? Nem sempre é possível reverter.
– Pode ligar, doutora. Eu sei o que tô pedindo.
– Você pode fazer isso depois, não precisa ser agora.
– Mas eu quero. Preciso que seja agora.
– Tudo bem. Então fica tranquila.
Dou continuidade à cirurgia. Faço a minha primeira laqueadura depois de anos. A paciente é levada para enfermaria e eu saio para falar com o marido. Alguém da enfermagem me entrega um formulário que o marido precisa assinar e, depois de atualizar sobre o estado dela, peço que ele assine.
Ele, ao contrário da esposa, não concorda com o procedimento e afirma que não vai assinar. Diz que não quer um filho doido e quase parte para cima da mulher. Tenho que pedir ao vigia para ficar de segurança na porta da enfermaria até ele ficar mais calmo. E não autorizo a entrada dele sozinho para visitá-la. Acredito que ele vai mudar de ideia e não bato cabeça com isso.
Vou ao vestiário, preciso de um banho para aguentar o resto do plantão. Deixo a água quente cair nas minhas costas, no meu rosto. O barulho se confundindo com a chuva, que ainda cai forte. Meus ombros doem. Eu estou exausta, mas aliviada. Ainda não sei como ficará aquela criança, se ela sequer amanhecerá o dia. Mas a mãe estava viva, e sem riscos de uma nova gravidez, como ela desejava. Fiz o meu trabalho, e estou bem com isso.
Saio do box com novo ânimo para me vestir, sem imaginar que o vestiário seria invadido. A porta bate com força na parede, e o Fabrício marcha até mim, sem ao menos pedir licença. Cubro meu corpo com a toalha, tentando obter o mínimo de privacidade possível.
Mas ele permanece ali, impassível, os olhos faiscando, prestes a apertar o meu pescoço até me matar.
– O que diabos você pensa que fez? – O Dr. Fabrício praticamente cospe as palavras na minha cara.
Respiro fundo. Eu não mereço esse homem logo após a tarde complicada que tive, mereço?
– Dá para ser mais específico? Ou pelo menos esperar me vestir?
– Quem te deu ordens para fazer esse escarcéu todo no meu hospital? – O sangue me sobe a cabeça com o narcisismo desse sujeito.
– Escarcéu? Seu hospital? – Prendo a toalha no busto, me vestir agora é o de menos. Só quero brigar – Até onde sei, salvei duas vidas! Fiz o que ninguém estava disposto a fazer. Arrisquei minha própria pele numa lancha no meio do mar nessa tempestade idiota que não para de cair! E você vem dizer que eu fiz um escarcéu? Me poupe! E esse hospital não é um anexo do seu ego, portanto não é seu! Estou no meu plantão e faço o que acho que é certo!
Só reparo que estou gritando quando cabeças começam a surgir na porta.
– Saiam já daqui! – Ele grita também quando vê os curiosos. – Vão procurar o que fazer! – Depois se aproxima de mim e me segura com força pelo braço. Surpreendo-me com a ousadia e afasto-me de uma vez. Ele continua a berrar:
– Não pense que pode ir chegando aqui e fazendo as coisas de acordo com a sua vontade, ouviu, paraíba? Eu sou o diretor dessa birosca, você deve respeito a mim.
– Eu respeito quem me respeita! E o meu nome é Heloísa. Até agora eu não faço ideia do motivo do seu piti!
Ele parece me odiar mais ainda.
– O marido da mulher que você fez o favor de ligar as trompas, está dando escândalo lá fora. Foi preciso contê-lo quase à força, o que eu consegui a muito custo, enquanto a "doutora" – Fala irônico – tomava banho como se nada tivesse acontecido.
– A minha paciente é a esposa dele. Ela não quer mais engravidar, mesmo sabendo que o bebê podia não sobreviver. Fiz o que a paciente, em uso pleno de suas faculdades mentais, me pediu. – Explico mais calma, me controlando para não matá-lo.
– Por que você não pediu permissão para ele?
– Eu jamais pediria permissão! Eu o informaria da decisão dela, se tivesse tempo, coisa que eu não tinha. Ela já estava aberta há bastante tempo, depois de muito sofrimento uterino, não ia me arriscar a perdê-la por causa da opinião do marido!
– Planejamento familiar é uma decisão do casal! – Ele rosnou.
– Não de acordo com você, que queria que o marido autorizasse. O corpo é dela!
– Não vou entrar numa discussão bioética com você. Existem regras, doutora. – Ele fala com ironia. – O SUS exige a assinatura do companheiro ou responsável, nesses casos, para que a cirurgia seja faturada. Sem a assinatura dele, o hospital, além de não receber um centavo pelo procedimento, pode ser processado! Você pode ser processada! Assuma seu erro e vá convencer o homem a não fazer nada contra o hospital.
Merda! Não sabia disso. Fico puta das calças por ele estar certo, mesmo sabendo que não tenho a obrigação de conhecer essas regras na minha especialidade. Mas como negar o pedido da paciente naquelas condições? Tenho certeza que faria tudo de novo, mesmo estando ciente dessa regra. Vi o desespero nos olhos daquela mulher, não conseguiria ignorar.
– Posso até falar com ele de novo, mas jamais vou assumir que errei, quando acredito firmemente que fiz a coisa certa.
– Judicialmente não foi a coisa certa. – Ele conclui num tom mais moderado, me envergonhando.
– Isso é injusto! Em pleno século XXI uma mulher não ter direito a decidir sobre o seu próprio corpo! – Reclamo.
– A recíproca é verdadeira. A companheira também precisa autorizar a vasectomia, no caso da esterilização masculina, isso parece injusto para você? – Ele cospe mais uma regra desconhecida.
Não me dou ao trabalho de responder.
– O mundo é injusto, acostume–se com isso. Conserte a merda que você fez, e não ouse repeti–la, senão eu te coloco para fora daqui pessoalmente.
– Olha...
Ele não me deixa terminar. Dá as costas e sai feito um raio, pisando duro.
– Homem odiável! – Rosno. – Babaca! Idiota! Imbecil! Estúpido! – Desabafo para tentar me acalmar. – Como alguém consegue ser tão, tão... Argh!
– Brilhante definição do Doutor Espinho. – Uma voz me tira do ataque histérico. É o anestesista que me acompanhou – Não te preocupa, Helô, logo o marido se acalma e assina os papéis. O Fabrício poderia ter resolvido isso sem escândalo, mas ele parece gostar de demonstrações públicas de poder.
– Obrigada. – Digo suspirando. – Eu definitivamente odeio esse homem.
– Não apenas você.
Depois de vestida me muno de coragem para conversar com o marido da Suzana novamente. Ele só se controla mais quando eu o levo para conversar com ela, que expôs detalhadamente os motivos para não querer mais filhos. Ele ainda não concorda com o que foi feito, mas entende que não pode mais alterar e assina a porcaria do papel.
Quando finalmente o aguaceiro cessa é madrugada. Aproveito a tranquilidade para dormir um pouco. Estou mais do que exausta.
Consigo dormir sem ser acordada para nenhuma intercorrência. Quando acordo, verifico que o recém-nascido está melhor e vou para casa com um peso a menos nas costas.
Encontro a Flávia já acordada, e faço o possível para acompanhar o seu pique, mas ela tem energia demais para quem dormiu poucas horas, e acabo apagando no chão perto da hora do almoço, enquanto brincamos. Sou acordada pela Rita e vou me arrumar para atender os pacientes ortopédicos, torcendo para estar melhor à noite, e assim poder dar a atenção que a minha filha precisa.
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Queria agradecer os comentários cheios de amor! =) Vocês são umas fofas!
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E, se der tempo, deixa uma avaliação pra mim lá, quem sabe não rola uns marcadores, hum?? O que acham??
Pra quem não viu, postei um conto chamado Teresin@/PortoAlegre, para um concurso de contos. O conto, em forma de e-mails e mensagens, mostra um pouco da minha relação de amizade com a TaniaPicon, com uma dose de loucura, envolvendo nossos livros e personagens! É bem engraçado, e seria ótimo saber a opinião de vocês sobre ele, já que não costumo escrever humor.
Quem estiver a fim de curtir um romance fofo e intenso, indico também Ruanda da CarolMoura! Li numa tarde só!
E quem quiser indicação de um livro super diferente, eu amei Lena 1 e 2, da clarataveira! =D Mil referências e garantia de reflexões e risadas!
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