Capítulo 02 - Porque eu sou dessas


Tá, aí agora você me diz: deixa de ser louca, mulher! Tu tá largando tua casa e teu marido e se mandando para o outro lado do país?

Sim, sou dessas. Estou de saco cheio do Miguel e dos nossos problemas. Abusada das minhas desconfianças. Da distância que existe entre nós. E se, mesmo dormindo na mesma cama, já estamos distante, separar mais um pouco não vai fazer muita diferença.

Preciso pensar. Necessito de espaço, novos ares. E quero ver como o Miguel vai reagir. Eu só espero que ele não ouse colocar nenhuma vagabunda na minha casa. Mas de resto, aguardo tudo. E nada ao mesmo tempo.

O Miguel de antes pegaria o primeiro voo e iria me buscar de volta. Mas o Miguel de hoje, eu não sei.

Eu e a Flávia viajamos por todo o dia. Uma escala em Brasília, outra em São Paulo, e só chegamos à Joinville tarde da noite. Durante os cochilos da minha filha eu tive tempo de sobra para pensar.

Eu não esperava que a minha vida com o Miguel fosse ser para sempre um mar de rosas, mas também nunca imaginei que chegaria a esse ponto. A gente se amou de forma tão intensa e por tanto tempo, que parecia que seria assim para sempre. E não era apenas eu que pensava assim, nossa família, que apesar de ter sido contra no começo, se rendeu a nossa teimosia e acabou aceitando o casamento. Éramos considerados o casal perfeito, pela maioria dos nossos amigos. Talvez tenha sido exatamente aí que nos perdemos.

Em Joinville, não vejo sinal da Tânia. Quem nos aborda é a cunhada dela, a Lua, que conheço por foto e de ouvir falar, que explica que a minha amiga está de plantão. Ela é bem simpática, e me deixa à vontade. Vamos conversando durante todo o caminho. Ela me esclarece várias coisas, inclusive que a Tânia não tinha reservado hotel para mim, como havia prometido, e que eu ficaria numa casa de veraneio da família da Lua, que estava desocupada.

Fico meio constrangida de me hospedar numa casa de pessoas que sequer me viram, mas decido relaxar e esperar conversar com a Tânia, para ver o que fazer.

Chegamos a um sobrado simples e encantador. Segundo a Lua, fica perto da praia e não muito distante do centro da cidade. Parece uma casa de contos de fada, embora por dentro os móveis sejam modernos. A geladeira e a despensa estão abastecidas com o básico, e eu me sinto muito querida. E como se não bastasse toda a hospitalidade, a minha anfitriã me estende o cartão, de um supermercado:

– O supermercado é do meu marido, irmão da Tânia. Então, se precisar de qualquer coisa, não hesite. A gente mandou trazer o básico, porque não conhecemos o seu gosto, mas faça sua listinha, e amanhã é só ligar que alguém trás o que você quiser.

Ela ainda me faz salvar seus números do celular e de casa, e me disse para ligar ou mandar mensagem sempre que eu precisar.

A casa é bem fofa, e está impecavelmente limpa e arrumada. E, apesar de inicialmente ter ficado constrangida, gosto da ideia de ter um cantinho assim, só para a Flávia e eu.

Depois de dar banho e alimentar minha filhota, coloco-a para dormir comigo na enorme cama de casal. Uma boa noite de sono é tudo que preciso.

Pela manhã, uma Flávia animada e faminta me acorda. Descemos para cozinha e tomamos um café da manhã bem saudável, já que a geladeira está cheia de frutas maduras e deliciosas. Coloco os brinquedos da minha filha dispostos na sala, e ligo o meu celular pela primeira vez desde que chegamos. Assim que ele inicia, dezenas de mensagens pipocam no visor, a maioria do Miguel, querendo saber se já chegamos e se está tudo bem.

Minha vontade é de responder dizendo que a hora dele se preocupar com a família já passou, mas prefiro não provocar. Estou aqui para esfriar a cabeça, e não começar a terceira guerra mundial. Digito um simples: sim, chegamos. Está tudo bem. E nada mais.

Também havia mensagem da Tânia, e eu aviso que já estou acordada. Sabendo que isso a faria vir imediatamente.

A cidade é pequena mesmo, porque em questão de dez minutos ela aparece na porta. A barriga enorme de sua segunda gravidez apontando embaixo do vestido. Ao vê-la, toda a minha fragilidade vem à tona. Ela me acolhe nos braços, levando-me até o sofá.

E eu, pela primeira vez, choro. Choro muito, tentando não assustar a minha filha, mas deixando as lágrimas caírem como numa cascata. A Tânia me deixa chorar até o fim. Sem tentar entender e sem intervir, apenas estando ao meu lado, sendo a amiga que eu preciso.

Depois que as lágrimas lavaram o meu peito, eu consigo desabafar. Conto tudo que está preso na minha garganta. Falo que meu marido está se tornando um estranho para mim, que nós quase nunca nos vemos, que ele sempre está no hospital, que eu tenho quase certeza de que ele tem uma amante. E que, para fugir disso, eu também me joguei no trabalho, e agora minha filha mal me reconhece. E claro, falo do aborto.

– Pronto, agora para e respira! – Ela ordena depois do que parece uma eternidade. – Senta aqui e me escuta.

Ajeito-me no sofá, enxugando o rosto e prendendo meus cabelos longos.

– Vamos começar do princípio. Você conhece tanto quanto eu os motivos pelos quais ocorrem os abortos naturais. – Ela inicia.

– Mas eu estava trabalhando tanto! Nem percebi que estava grávida. Pensei que fosse uma menstruação normal, apesar da cólica estar muito mais forte. Quando dei por mim, estava caindo no chão de dor, em plena emergência. Que tipo de pessoa eu fui? Que tipo de mãe eu sou? – Revido.

– Não foi o seu trabalho que provocou esse aborto, Helô, tu sabe bem disso! Você e o Miguel são primos legítimos. Lógico que não é pecado nenhum um casamento entre vocês, mas a chance de filhos com algum problema são um pouco maiores! Esse aborto é a prova concreta disso! No mínimo, era um feto com má formação. Você é uma mulher nova, saudável, pode ter outros filhos depois! Eu sei que passar por algo assim não é fácil, mas não se acabe por conta disso.

– Outros filhos? Como? Sozinha? – Indago sem esperança. Minha vida sem o Miguel não faz o menor sentido. Embora, nesse momento, minha vida com ele também não faça.

– Com o Miguel ou com qualquer outro homem. A sua vida não acabou. Vocês por acaso vão se separar?

– Eu não sei. Agora, não consigo nem olhar para ele... Mas também não sei se consigo ficar longe. E se ele tiver mesmo outra? Eu não conseguiria perdoar uma traição, amiga. Isso, para mim, é inaceitável.

– O que te faz desconfiar que ele tem outra pessoa? – Ela tenta me entender.

– O tempo enorme que a gente fica sem transar... E mesmo quando a gente faz alguma coisa, não tem sido bom, parece que o Miguel está sempre no automático, sempre cansado... E isso é só o começo do tédio que virou a nossa vida.

– Você o procura? Tenta reverter isso?

– Não.

– Por quê?

– Porque nas vezes que tentei falar, ele desconversou. Disse que nada havia mudado, e que simplesmente o tempo fazia isso mesmo com os casais. Chegou a dizer que não éramos mais tão jovens para ficarmos que nem dois coelhos! Você consegue acreditar nisso? Só tenho trinta e dois anos! Não sou velha coisa nenhuma, e quero sim, transar muito, muito mesmo! Nada mudou para mim. Pelo contrário, depois dos trinta fiquei muito mais disposta para o sexo. E olhe que sempre me achei disposta.

– Amiga, li em algum lugar que a partir dos trinta, as mulheres estão na sua melhor fase, enquanto os homens passam por isso na faixa dos vinte e poucos.

– E isso quer dizer que tenho que procurar um garotão para transar? Fala sério!

– Não! – Ela ri da minha dedução. – Só estou te dizendo que talvez essa indisposição do Miguel não seja por causa de amante, e sim uma questão biológica mesmo.

– Bobagem. – Bufei irritada. – Quer ver? Teu marido tem mais de trinta, não tem?

– Tem.

– Eu não vou nem te perguntar quantas vezes por semana vocês fazem sexo, porque não quero sentir inveja, mas me diz, por acaso, vocês passam uma semana sem transar?

Ela cora, mas me responde.

– Não.

– Então! Se o Miguel me desejasse, me procurava! A última vez em que nós dormimos juntos foi porque eu estava altinha, já que havia bebido em um aniversário, e o ataquei ao chegar em casa. E depois disso, mais nada. E foi nessa noite que engravidei, porque estava tão louca de tesão que não quis saber de camisinha. E a gente sempre usou camisinha, porque eu não consigo tomar pílula. Me arrependo até hoje desse dia.

– Se arrepende por quê? Não foi bom? O Miguel não pareceu gostar?

– Foi bom. Mas não espetacular como costumava ser. Ele estava até animado, Não sei se por conta de também ter bebido um pouco a mais... Mas não foi como antigamente... Quando a gente fazia residência e precisava fugir no meio de um plantão para dar uma rapidinha porque não se aguentava mais de vontade. Foi só... Normal. E no dia seguinte, ele continuou frio e estranho. Deu uma desculpa de que estava com dor na coluna e não quis repetir o que a gente fez a noite. E me deixou com raiva. Muita raiva. E, depois disso, não movi uma palha para ficarmos juntos. Pelo contrário, desde esse dia coloquei um muro entre a gente.

– Ele pode estar satisfeito com menos sexo. Pode ser que não precise mais da frequência de antes, como disse. Ou pode ter algum problema no trabalho, ou financeiro. Os homens são muito sensíveis com essas coisas. Os problemas afetam demais a vontade de transar.

– Mas é o Miguel! O meu Miguel. Nós nunca ficávamos mais de dois dias sem ir para cama. Às vezes, íamos ao motel mais perto nos intervalos do meu plantão! Ou íamos ao quarto do repouso! Até deixávamos de comer para transar! Não nadamos em dinheiro, mas vivemos com conforto. Na época de estudantes era bem pior, e isso nunca virou um problema na cama.

– Pode ser só uma fase ruim. Isso não é prova que ele tem outra.

– Para mim é. – Sou firme. Eu não tenho provas, mas o meu sexto sentido me diz isso. – E traição eu não perdoo. Antes de casar com o Miguel disse isso a ele. Que só casaria se ele fosse realmente meu, não ia dividi-lo com mais ninguém.

– Não vou insistir nesse assunto. Aproveita esses dias longe, descansa, curte a sua filha, a praia, passeia bastante, areja a cabeça. E, quando estiver realmente bem, você decide como quer fazer.

Aceno com a cabeça e a abraço mais uma vez. É disso que preciso: distância dos problemas e alguém para me ajudar a vislumbrar um futuro.

Depois da sessão de descarrego, conversamos amenidades. Minha amiga fica de olho na Flávia enquanto eu tomo banho e me arrumo, para almoçar com ela e sua família.

Como a Tânia trabalha quatro dias por semana, e não tem como me encontrar todo dia, acabo passando bastante tempo com a Lua, que tem filhos de idade próxima a da Flavinha e estava sem trabalhar desde o nascimento dos seus gêmeos.

Fazemos longos passeios com as crianças, sem hora para voltar para casa, sem pressa nem preocupação, o que é muito bom. Os três têm quase a mesma idade, então a interação é bem tranquila. E nós duas também conversamos muito, é tranquilizante saber que, apesar das aparências, todo mundo têm problemas e dificuldades.

Falo isso porque conheci o esposo dela, o Eduardo, e o filho mais velho, Theodoro. Quem olha o jeito do casal, pensa que eles vivem as mil maravilhas, mas não é assim. A Lua anda irritada com o esposo, segundo ela, porque ele trabalha demais.

– Eu entendo. – Ela diz. – Entendo mesmo que ele goste de trabalhar, também gosto. Sinto muita falta da sala de aula. E não me arrependo de ter dado esse tempo para cuidar dos meus filhos, não me arrependo mesmo. Mas quando o Edu chega em casa, não tenho assunto, a não ser os meninos. Ele vê gente, ganha dinheiro, vive coisas... Tem várias notícias para contar, e eu falando as palavras novas que as crianças aprenderam, ou suas descobertas, e até mesmo quem está com prisão de ventre e quem está com diarreia. Sinto como se ele tivesse vivendo, e eu não. E tenho medo que ele comece a achar a vida fora de casa mais interessante do que a gente, do que a família dele. Não quero contar das descobertas dos nossos filhos! Quero que ele veja! Que participe mais, como era quando os gêmeos nasceram.

– Você tem medo que ele te deixe? Ou que arrume outra? – Indago, se ela está se abrindo tanto comigo, eu acho que temos intimidade para isso.

– Não. – Ela responde. – Quer dizer, um pouco. Assim, nossa vida a dois não mudou, para ser sincera. Quando os meninos dormem, e isso ele nunca deixa de fazer, colocar os três na cama, a gente sempre fica junto. Não tem sexo todo dia, mas sempre temos esse momento nosso. Embora eu não me sinta tão interessante, entende?

– Acho que sim. É como sentir falta da conquista, da sedução... – Opino.

– Isso! – Ela concorda. – A rotina tira um pouco desse clima, e eu sinto falta desse jogo de sedução. Da minha parte e da dele.

Entendo isso demais. E acabo refletindo sobre o assunto muito tempo depois que ela me deixa em casa. Será que esse é o problema? Miguel e eu sempre enfrentamos barreiras para estarmos juntos: família, distância, tempo... E, agora, pela primeira vez, vivíamos uma calmaria. O tempo ainda era pequeno, mas estava sob o nosso controle. É nossa escolha trabalhar muito e não uma obrigação, como na residência. Será se nos acostumamos com aquele amor cheio de dificuldades? Será se não funcionávamos bem quando não havia questões externas tentando nos atrapalhar?

Sinceramente, não faço ideia. Mas acho que terei tempo suficiente para descobrir.

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