Um pouquinho ousado
Cheguei um pouco antes do que de costume. A luz da cozinha estava acesa. Encontrei minha mãe começando a lavar a louça.
— Cheguei. — anunciei, sentindo um nó na garganta.
— Seu jantar está no micro-ondas, filho.
Ela nem se moveu ao dizer.
É. Eu também não moveria-me. Não valho o esforço.
Comi em silêncio, observando-a trabalhar. A tensão estava me sufocando.
Não contei sobre os abusos. Ou meus medos. Ou qualquer coisa que justificasse minhas atividades delinquentes. Sou um covarde.
Mas, naquela noite, fui um covarde bastante ousado.
— Eu e meus amigos fizemos donuts na aula de culinária. — soltei num fio de voz — ... 'Cê ... quer dividir uns comigo?
Ela enfim virou. E ainda olhou em meus olhos, surpresa.
Não lembro da última vez que ela me olhou assim sem ser para dar pito.
— ... Quero, filho. — esboçou um sorriso.
O nó afrouxou.
Não encaramo-nos enquanto comíamos. Estavam perfeitamente macios e doces. Lembrava os que a mais velha fazia para mim quando eu era mais novo em todos os sentidos.
— ... Quem são esses amigos?
Rezei para todos os deuses que eu conhecia para que o Tsukasa não estivesse escutando nada.
— Um trio que me chamou p'ra almoçar com eles no dia que me trocaram de turma. Andamos juntos desde então.
— ... Como eles são?
Senti vontade de chorar.
A mamãe desistiu de tentar entender o que estava acontecendo comigo depois dos primeiros sete meses. Começou a dar-me um tratamento diferente do que o do meu irmão. Não mais sorria para mim, ou demonstrava curiosidade sobre o que eu fazia.
Até agora. Dois anos e aproximadamente cinco meses depois de desistir do desastre que sou eu.
Pisquei para não chorar, mordendo um donut enquanto formulava minha resposta.
— O Kou é um guri animado que adora se meter nos problemas dos outros e é muito bom cozinheiro. O Mitsuba é ... o melhor amigo dele. — menti, não sabendo da opinião dela sobre relacionamentos homossexuais — Ele é a definição de narcisismo e bastante escandaloso. E tem a Yashiro. Ela é gentil e bobinha e ... fofa.
"Que eu não tenha corado. Por favor, que eu não tenha corado. POR FAVOR, UNIVERSO. POR. FAVOR."
— ... Eles são o motivo de você não estar cabulando tantas aulas mais?
Se ela tivesse tacado um tijolo em minha cabeça, teria doído muito menos.
— ... Mais ou menos.
Suspirou, massageando as têmporas. Depois, inclinou-se para frente e mirou-me aos olhos com uma preocupação e determinação palpáveis de intensas.
— Amane, o que tem de errado com você!?
"Sério, mãe. Taca logo um tijolo em mim. Se eu tiver sorte, eu paro no hospital e não tenho que encarar o Tsukasa hoje."
— Nada, mãe.
Lágrimas brotaram de seus olhos, que eram âmbar como os meus. Minha vontade era de ajoelhar e implorar por aquela merda de tijolada.
Depois dos últimos três anos, aprendi a suportar várias coisas terríveis, como abusos e espancamentos e vontade de fugir e nunca mais voltar. Vê-la chorar não estava na longa lista. Nunca estaria.
— Você não é assim. Eu tentei me convencer do contrário, mas não dá! E me parte o coração ver o meu filho se enfiando num poço sem fundo e não ser capaz de fazer nada!
Meus olhos ardiam por conta das lágrimas. Segurar o choro tornou-se uma tarefa realmente difícil. Quando falei, tentei deixar minha voz o menos embargada possível:
— Tem umas coisas acontecendo, e eu queria enfrentar isso sozinho. Desculpa se eu te magoei, mas eu continuo querendo fazer isso sozinho. Quando eu conseguir ... prometo dar todos os detalhes que quiser. Mas ... me dá mais tempo. Por favor.
Silêncio. O clima estava tão tenso e palpável que parecia estilhaçar-se sozinho.
— ... Tudo bem, Amane. — soltou, sorrindo docemente — Eu vou te dar o espaço que 'cê quer. E, se mudar de ideia, eu 'tô sempre aqui p'ra você, ok?
— Ok, mamãe. — sorri de volta.
E ele era sincero. Mais sincero do que qualquer sorriso que eu tenha dado nestes últimos três anos.
Meu coração afundou quando a vi levantar e estender os braços para mim num convite mudo. Praticamente corri, afobado, para abraçá-la. Não fui forte o suficiente para segurar duas dúzias de lágrimas enquanto sentia aquele aperto tão gentil e familiar.
Quando sentia o amor e carinho que pensei terem se transformado em ódio e desprezo. Mesmo com todas as merdas que fiz e ainda faria no futuro.
Fui ousado o suficiente para ficar lá por um tempo. Abraçando-a. Chorando. Matando a saudade. Sentindo o cheiro de orquídeas que exalava de cada cantinho dela.
Lavei meu prato do jantar e ajudei a mamãe a guardar a louça.
— Mãe ... pode não contar nada sobre isso pro Tsukasa? Não quero ... preocupar ele.
Por um horripilante segundo, achei que ela não engoliu minha mentira.
— Fica tranquilo, Amane.
Lavei o rosto no banheiro e verifiquei se meus olhos continuavam vermelhos. Continuavam levemente avermelhados, mas nada comprometedor.
Respirei fundo, abrindo a porta do quarto que compartilhávamos.
Ele usava o computador e fones de ouvido, vendo um dos vídeos macabros que gostava. Percebeu minha presença, desligando o aparelho e tirando os fones. Sorriu, a malícia transbordando enquanto me analisava de cima a baixo.
— Vem cá.
Obedeci.
Tentei não vomitar quando senti suas mãos em mim, e sua boca na minha.
Pelo visto, não ouviu minha conversa com mamãe. E isso já esgotou minha cota de gentileza por um bom tempo, fora os donuts que o trio-parada-dura fez comigo. Nem queria imaginar a desgraça que me esperava como pagamento por toda essa alegria.
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