Capítulo 5
Houve uma movimentação estranha naquele Natal.
Nós deveríamos celebrar o feriado em nosso apartamento, como foi desde o primeiro ano, desde que havíamos nos casado, seis anos antes. Não sei bem o que levou Alexandre a decidir aceitar o convite que Carlos fazia todo anos, convidando-nos para nos juntarmos a ele na celebração organizada por sua família. Tudo que sei é que, naquela noite de 24 de dezembro, estávamos na casa modesta e aconchegante dos pais dele.
Vinicius, com seus quase sete anos, logo tomou interesse pelas decorações coloridas e luminosas que jamais tivemos em casa — fosse por falta de dinheiro ou pela recusa de Alex em gastar com frivolidades como aquelas. Ao longe, observava meu menino com um sorriso no rosto, orgulhosa de mim mesma por ele estar vestindo um par novo de roupas compradas com meu salário, carregando feliz um carrinho de plástico nos dedos pequenos.
Meus olhos, contudo, logo pousaram nos dois homens no outro extremo do cômodo, em uma conversa um tanto abrupta. Curiosa, aproximei-me, sem ser capaz de evitar que meu olhar rapidamente voasse de um para o outro em comparações descaradas. Estavam vestidos da mesma forma, dentro de trajes formais, e possuíam aproximadamente a mesma estatura corporal, uma tonalidade semelhante de castanho nos fios, idades próximas. As semelhanças, contudo, acabavam aí. A postura de Carlos era descontraída, altiva e sorridente, sempre acolhedora, sempre magnética. Alexandre, por outro lado, sempre apresentou uma áurea quase intimidadora, maliciosa, um tanto perigosa.
Não gostava de admitir aquilo para mim mesma, mas não me sentia segura nos braços do meu marido; nunca me senti. Sentia-me amedrontada, coagida na maior parte do tempo. Eu tinha certeza, também, que Alexandre me traía. O que confundia meu coração, contudo, era que não me importava. Na verdade, quase agradecia por esse ser o caso, porque, assim, ele não me procurava à noite para satisfazer seus desejos egoístas. Àquela altura, fazia alguns meses que ele não me tocava, e eu estava feliz com isso.
Aproximei-me dos dois o suficiente para ouvir partes picotadas da conversa agitada; por parte do meu marido somente, notei quando estava perto o suficiente. Carlos permanecia com seu costumeiro tom pacífico ao respondê-lo.
— Não, Alex. — Ouvi de Carlos. — Você é meu melhor amigo desde que éramos garotos, mas não significa que eu concorde com tudo o que faz. Com isso, não concordo.
Pude ver os olhos recheados de raiva do meu marido, direcionados ao amigo. Alexandre estava pronto para rebater, mas, então, me viu. Ele não suavizou a expressão, contudo. A raiva apenas foi direcionada a mim, por alguns segundos a mais, antes de mudar para o que parecia ser desprezo. Não entendi o motivo, não entendi o que tinha feito para que me olhasse daquela forma. Ainda hoje não sei o que aconteceu naquela noite.
— Te procurei por toda parte — eu disse, por fim, quando ele apenas continuou a me encarar em silêncio. — Está tarde, Vinicius está cansado — continuei, embora não fosse verdade. Estava tarde, sim, mas nosso filho estava repleto de energia.
Mas eu queria ir embora. Eu queria ir embora porque não estava gostando das coisas que estava sentindo, da forma como meu corpo e coração descompassado estavam reagindo. Por muitas vezes durante a noite, Carlos se aproximou. Em momentos em que meu marido estava ocupado demais flertando descaradamente com alguma outra convidada ou tentando alavancar seu próprio negócio em conversar interesseiras com outros homens de terno, Carlos se aproximou. Com um sorriso, uma piada, uma conversa breve, um toque perigosamente confortável, inocente e discreto no meu antebraço.
Eu deveria tê-lo afastado, da mesma forma como deveria tê-lo afastado todos os dias das últimas semanas em que estávamos trabalhando juntos, mas não o fiz. Não posso sequer dizer que não consegui; sequer tentei.
— Vamos para casa — Alexandre determinou por fim, com um rosnado insatisfeito e um olhar julgador para o amigo, que sequer piscou. Tomou-me pelo braço com brusquidão e nos levou embora. Foi com a mesma brusquidão que me exigiu na cama naquela noite, pela primeira vez em meses. Não reclamei; era meu marido, afinal. Mas, quando o dia raiou, também não reclamei por me ver sozinha em casa com Vinicius, sem qualquer explicação, bilhete ou justificativa de onde Alex teria ido.
Para a minha surpresa, quando a tarde chegou, o horário do almoço passou e a campainha tocou, não era Alex voltando para casa. Estranhei quando vi Carlos parado na soleira da porta, os olhos calorosos por trás das lentes dos óculos, um sorriso contido nos lábios.
— O que acha de tomarmos um sorvete? — ele perguntou, antes mesmo que pudesse cumprimentá-lo. Olhei por sobre o ombro para Vinicius sentado no chão, brincando com seu carrinho. — Nós três — completou.
Deveria ter dito não, mas não disse. Não sei por que não disse. Talvez estivesse sentindo-me sozinha demais. Talvez tivesse alguma coisa a ver com a forma como meu coração teimava em saltar no peito toda vez o que via nas últimas semanas. Talvez eu realmente quisesse sorvete naquela tarde quente de dezembro. Talvez.
Não perguntei o que ele estava fazendo ali. Não perguntei como sabia que Alex não estava em casa. Não perguntei por que queria passar tempo comigo, não perguntei por que tratava meu filho com tanto carinho; com mais carinho do que o próprio pai fazia. Quando nos sentamos no banco daquela praça, vigiando ao longe Vinicius brincar no balanço, não perguntei o que estava fazendo quando seus dedos alcançaram os meus, quando subiram por meu antebraço, quando alcançaram meu pescoço, quando tocaram minha bochecha.
Deveria ter perguntado, mas não o fiz.
— Não consegui esperar até voltarmos ao trabalho para te ver — ele disse, respondendo à todas as perguntas não feitas. — Não quero esperar até voltarmos ao trabalho para te ver de novo.
Ameacei desviar o olhar, mas ele não permitiu. Com um toque delicado como minha pele nunca havia conhecido, ergueu meu queixo para si, prendendo-me a ele.
— Você entende o que está acontecendo aqui, não entende? — ele perguntou com suavidade, o polegar acariciando minha bochecha. — Entende que não tem nada de fraternal no meu cuidado, no meu carinho.
Relutantemente, concordei com a cabeça, meu olhar brevemente pousando no meu filho, alheio a nós dois, naquele momento já entretido com outras crianças que haviam chegado há pouco. Deus, o que eu estava fazendo? Um olhar de Vinicius na nossa direção e eu estaria perdida. Ainda assim, não afastei o toque de Carlos. Fazia semanas que não afastava.
Era a primeira vez que ele era direto dessa forma, mas não era a primeira vez que se aproximava muito mais do que o apropriado. E eu deixava. Sabia que era errado, mas eu deixava.
— Vocês são amigos — eu disse, baixo, a voz um tanto trêmula.
— Somos. E talvez eu seja a pior pessoa do mundo por não honrar minha amizade com Alexandre, mas... Luíza, eu te amei desde a primeira vez que te vi. Os anos não mudaram isso.
— Você não pode me dizer essas coisas — protestei, sentindo a boca seca, finalmente tirando seu toque de cima de mim; arrependi-me no instante seguinte, sentindo falta do calor da ponta dos seus dedos na minha pele.
— Posso — ele protestou. Não tentou me tocar de novo. — Posso, porque é verdade. Mas você era uma menina quando engravidou de Alexandre e eu jamais olharia para você com qualquer malícia naquela época. Depois disso, com o passar dos anos, tentei me convencer que era apenas fraterno o amor que sentia por você, mas não consegui.
Ali, debaixo do céu azulado, do burburinho animado de crianças ao redor, prendi a respiração, com medo de que o mais sutil dos movimentos fizesse aquele momento se desfazer no ar. Carlos, contudo, não se sentia da mesma forma, porque continuou falando e virando meu mundo do avesso a cada palavra.
— Eu te amo, Luíza — disse, os olhos presos nos meus com a intensidade de mil mundos em colisão. — Eu te amo como um homem ama uma mulher.
Em um átimo, levantei-me do banco e afastei-me alguns passos, circundando meu próprio corpo com os braços, apertando-me como único recurso para não partir em pedaços pequenos demais. Meu corpo tremia de leve, instável. Não conseguia compreender o desejo que sentia de me enroscar nos braços de Carlos, a vontade que tinha de descobrir o sabor da sua boca, o formigamento que sentia na pele apenas de imaginá-lo tocando-me.
Era amor, não era? Ali, não soube reconhecer. Alexandre era o único homem que jamais tinha se aproximado de mim. Eu tinha quinze anos quando engravidei dele, um homem de vinte e dois. Nunca tive a chance de decidir se o amava ou não; estar casada com ele era minha realidade, e isso era o bastante. Mas Carlos sempre despertara algo diferente em mim. Amigos de longa data, ele sempre esteve presente em minha vida por causa de Alex. Fora nosso padrinho de casamento, presença certeira em datas comemorativas, e sempre me peguei olhando-o por mais tempo do que o apropriado, sem deixar que meus pensamentos se estendessem por mais do que alguns segundos.
Naquele vinte e cinco de dezembro, contudo, quando ele se aproximou por trás, tocando meus braços com brandura, a boca pousada em meu ouvido sussurrando juras de amor que jamais havia ouvido, fui irremediavelmente seduzida. Da minha boca, entretanto, o que saiu foi:
— Não posso deixar meu marido, Carlos.
***
A casa está cheia de crianças.
Eu, sentada em um banquinho almofadado no quintal dos fundos da minha casa, assisto-as correndo pela grama, rindo e brincando. Eduardo, sentado no chão com Felipe, que já começa a querer se arrastar, ameaçando engatinhar, com seus sete meses, olha ao redor, aqui e ali conferindo se estão todos inteiros.
É aniversário de Juliana. Por isso, os dois decidiram usar do meu jardim para uma festa. Sinto-me bem com a casa cheia, embora alguns dos rostos aqui presentes me tragam um gosto amargo à garganta.
Meus pensamentos são desviados, contudo, quando vejo uma tacinha de vidro com uma bola de sorvete ser colocada no meu campo de visão. Ergo os olhos para encontrar Carlos parado à minha frente, um sorriso sereno nos lábios que acentua as rugas ao redor dos seus olhos.
— Flocos ainda é seu preferido? — pergunta. É inevitável sorrir de volta, segurando a taça, encarando-o.
— Ainda é — respondo.
Após aquele almoço, Carlos Barbosa encontrou seu caminho de volta à minha vida. Passaram-se outros dois meses antes que Eduardo e Juliana voltassem à São Paulo, e foram dois meses de almoços dominicais em uma relação que, semana a semana, deixou de ser o contato desconfortável entre dois estranhos e começou a se transformar em uma amizade recente.
Depois os dois retomarem suas vidas e rotinas em outro estado, contudo, não voltou tudo a ser como antes. Carlos não desapareceu. Ligações despretensiosas para perguntar algo sobre Eduardo tornaram-se um café no meio da semana com o pretexto de discutirmos algo sobre nossos netos, e logo se transformaram em passeios no parque em um fim de tarde por motivo algum.
Ele é uma companhia agradável, sempre foi.
Uma companhia agradável capaz de lembrar meu sabor preferido de sorvete.
— Tem algo que quero te perguntar há algum tempo agora — Carlos diz, acomodando-se ao meu lado no banco.
Não está perto o suficiente para que me toque, mas próximo o bastante para que o calor do seu corpo seja reconhecido pelo meu em uma sensação que parece errada. Tenho sessenta e cinco anos, não vinte e cinco. Não posso me comportar feito uma garotinha dessa forma.
— Você não fala de Vinicius — ele aponta, fazendo-me olhar na sua direção e encontrar olhos cautelosos. — Não falou uma única vez nos últimos meses. Eduardo e Juliana jamais tocaram no nome dele também.
Engulo em seco, sentindo o peito apertar como é sempre que penso no meu filho mais velho. Não há um dia em que não me culpe pelo rumo que sua vida tomou. Carlos tem razão em dizer que seu nome jamais foi mencionado, mas isso não significa que ele não esteja em minha mente a cada instante.
— Vinicius... — Suspiro, desviando o olhar. Uma mão acolhedora alcança a minha, dedos enrugados envolvendo os meus. — Vinícius não seguiu um bom caminho na vida.
Não me atrevo a dizer em voz alta, a listar todas as escolhas ruins que ele fez. Que eu permiti que ele fizesse.
— Gostaria de conversar sobre isso? — ele pergunta, a voz baixa como se compartilhássemos um segredo, como se todos os adultos presentes nessa casa não soubessem exatamente todos os erros que meu filho cometeu, todas as pessoas que machucou. Nego com a cabeça, e Carlos aperta meus dedos um pouco mais. — Caso mude de ideia...
A proposta fica no ar e pego-me sorrindo pequenino.
— Um dia — concordo. — Quero apenas aproveitar o aniversário da minha nora agora.
Ele concorda com a cabeça e me encara por um segundo a mais. Estou prestes a perguntar o que há quando estende a mão e alcança a colher afundada da bola de sorvete parcialmente derretida. Separo os lábios quando ele a leva à minha boca, e pego-me deliciada pela risada genuína que escapa da sua boca quando um filete grudento do doce suja meu queixo.
— Você não mudou nada. — A frase me escapa da boca antes que eu possa controlá-la. Sob seu olhar atento, vejo-me impelida a continuar. — Eu me lembro bem do seu riso fácil, das suas gentilezas — ergo a taça de sorvete como se para exibir provas —, do seu carinho. Não mudou nada.
Carlos nega com a cabeça, desviando o olhar.
— Mudei bastante, Luíza. Nós dois mudamos. Faz quarenta anos, nada continua igual. — Ergue o rosto na minha direção e se corrige: — Quase nada.
Balanço a cabeça em negativa, sentindo-me presa a um déjà vu traiçoeiro.
— Não pode insinuar essas coisas. — Pego-me dizendo, e ele sorri, certamente reconhecendo o padrão da nossa interação.
— Posso. Posso, porque é verdade — diz, repete. — E me pergunto se a recíproca continua sendo verdadeira também.
Há uma nota de expectativa desmedida em sua voz que me assusta. Não porque não sei a resposta; eu sei, soube cada dia das últimas décadas a quem meu coração verdadeiramente pertencia. Assusta-me porque a expectativa vem revestida de promessas de um passado saudoso, um presente inexistente e um futuro inalcançável.
É tarde demais agora. A vida se encarregou de nos afastar, eu me encarreguei de nos afastar.
Levanto-me, balançando a cabeça em negativa; não em resposta à sua pergunta, mas na tentativa de espantar pensamentos complicados. Ameaço me afastar, mas, antes que eu tenha a chance de sair completamente do seu alcance, seus dedos alcançam os meus. Olho-o por sobre o ombro, e Carlos leva aos lábios o dorso dos meus dedos.
— Você sempre foi a mulher da minha vida, Luíza. A mãe do meu filho. Uma vida inteira não foi capaz de apagar isso.
Quando não me afasto, ele se levanta.
— Uma vida inteira não foi capaz de nos fazer perder essa conexão, você sabe disso.
Nego com a cabeça, assustada, amedrontada com o ritmo descompassado do meu coração.
— Estou velha demais para essa conversa, Carlos. — Tento me desvencilhar e ele, delicadamente, envolve meu braço; a outra mão ergue meu rosto na sua direção.
Seu dedo sobe pelo meu rosto, e fecho os olhos quando alcança a ponta do meu nariz.
— Não sou mais uma garotinha, por favor — insisto.
— O que você chama de velhice, eu chamo de história.
Solto uma risada dolorida, sentindo meus olhos marejarem.
— Oh, por favor, olhe para mim — protesto, movendo minha mão livre, apontando para mim mesma, e ergo o olhar para ele novamente. — Não seja tolo.
Carlos sorri.
— Estou olhando. E estou vendo uma mulher linda.
Estou pronta para protestar novamente quando seus dedos percorrem as linhas da minha testa.
— Estou vendo uma mulher que carrega no rosto os anos de preocupação com seus filhos. — Seus dedos descem para as rugas no canto do meu olho. — Noites mal dormidas enquanto eles cresciam. — Em toques delicados, descem pela minha bochecha, alcançando eu queixo. — Linda.
— Carlos...
Não sei o que estou prestar a dizer — se para que pare de tolices, se para que me prenda em seu abraço —, mas não tenho a chance, porque uma garotinha espoleta me alcança, agarrando minhas pernas, arrancando-me da áurea emotiva demais que se formou.
— Vó Luíza, a senhora prometeu que ia ler pra mim.
Baixo meus olhos para Alessandra, carregando um par de marias-chiquinhas, e sorrio.
— Claro, querida — concordo, acariciando seus cachinhos. — Me espere na sala que vou em um minuto, tudo bem?
Ela concorda com a cabeça e dispara em direção à parte de dentro da casa. Ainda sinto Carlos perto, perto demais, mas ele não tenta dizer mais nada, não insiste. Ao invés disso, pergunta:
— De quem ela é filha?
Respiro fundo, apertando os lábios.
— Essa é uma ótima pergunta — murmuro para mim mesma. Quando noto seu olhar curioso e confuso sobre mim, suspiro. — Essa é uma história realmente longa.
Ele inclina a cabeça sutilmente para o lado e abre um sorriso discreto.
— Tenho tempo. Não estou indo a lugar nenhum, Luíza.
Sorrio de volta porque, por mais que isso me apavore, também me traz uma paz que há muito não sentia.
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