Capítulo 4


São seis horas em ponto quando chego de novo ao estúdio e entro no segundo exato em que o último funcionário está saindo. Com um aceno de cabeça, digo que vou fechar o lugar. Vou até onde deixo minhas coisas e coloco o equipamento que levei comigo para a empresa da Ju e não quero levar para casa e, em cinco minutos, está tudo em ordem e eu estou pronto para ir embora. Mas, antes de sair, sento em uma cadeira no canto da sala e ligo a câmera mais uma vez.

Começo a passar as fotos do cartão de memória para o computador, dizendo a mim mesmo que é porque é sempre mais seguro fazer uma cópia de tudo imediatamente. Não quero perder todo o ensaio que fiz essa tarde para aquele homem irritante como o inferno. Mas no fundo sei que só quero um minuto de paz e silêncio para olhar para a última foto que tirei. Abro o arquivo no computador e encaro a imagem à minha frente.

A parede de cor morta decorada por um quadro gigante e colorido demais compõe o fundo onde se destaca a silhueta da mulher confusa e irritada, recostada na cadeira, os braços cruzados fazendo seus seios saltarem um pouco. Mesmo em uma foto tirada sem muita preparação, é possível ver o brilho ferino nos seus olhos perfeitamente contornados pela maquiagem impecável. O cabelo em ondas caindo por sobre os ombros, atraindo o olhar para o último botão fechado da sua blusa que deixa muito à imaginação, e o problema é que a minha é muito fértil. A única coisa em que consigo pensar é em como seria vê-la com o rosto limpo e cabelo desgrenhado.

Sou culpado de me encantar com muita facilidade e de gastar um tempo imensurável com minúcias que passariam despercebidos por muitos. Nunca esqueço um rosto, nunca deixo passar um detalhe. Meu olhar é sempre atraído e instigado por aquilo que parece uma obra de arte pronta apenas esperando para ser descoberta.

Passo a língua no lábio inferior e franzo a testa, em um ato estúpido de tentar me concentrar no que vejo como se aquela foto diante de mim fosse me revelar os segredos da mulher de língua afiada. Ouço os sinos da porta da frente tilintarem quando alguém a abre, mas não viro para ver quem é. De costas para porta estou, de costas para a porta continuo.

— Desculpe, a gente já fechou por hoje. O estúdio abre amanhã de novo às oito — digo.

— Sou eu, Guigo.

Sinto as mãos pequenas de tocarem meus ombros e seu cheiro doce de lavanda invadir meus sentidos, mas, ainda assim, meu olhar se prende à pintinha na bochecha direita da mulher na tela por um segundo a mais antes que eu vire na direção de Hanna.

— Desculpa a demora, não consegui vir hoje de manhã. O Nick ia me trazer, mas a gente acabou tendo um contratempo.

Vejo o exato instante em que um rubor atinge seu rosto. As bochechas assumem uma coloração rosada e ela morde o lábio, tenho certeza que sem nem perceber. Não preciso perguntar qual contratempo foi esse. Sinto o gosto amargo na garganta, mas a verdade é que não é tão ruim quanto achei que fosse. É verdade que sempre soube. Desde que coloquei meus olhos nela, soube que jamais seria minha. O destino de Hanna e do meu amigo estava decidido, era só questão de tempo até se acertarem. Neste momento, contudo, mesmo que eu tenha passado os últimos meses sonhando acordado com ela, quase não me importo.

— Sem problemas — respondo com um sorriso genuíno no rosto. Ainda que uma parte pequena de mim esteja verdadeiramente incomodada, uma parte maior está genuinamente feliz por eles. — Trouxe o portfólio?

Hanna solta uma risadinha e concorda com a cabeça, entregando-me a grossa pasta preta.

— Preciso da sua opinião sincera, Guigo.

Começo a folhear as fotografias e sorrio com o que vejo diante de mim. São boas, muito boas. A técnica é impecável, ela claramente sabe o que fazer com a luz. Grande parte do material são ensaios de casamento e casais grávidos, o que é exatamente o carro chefe do estúdio onde trabalho. É perfeito para o cargo. Provavelmente Hanna vai se sair melhor nesse trabalho do que eu, porque claramente é o que ela gosta de fotografar. Tão longe do que me fascina de verdade, mas não deixa de ser um trabalho maravilhoso.

— São incríveis, ruiva — digo e ela abre um sorriso tão grande que é capaz de iluminar qualquer um. Guardo a pasta na primeira gaveta da minha mesa e levanto. — Amanhã de manhã eu mostro pro gerente, mas tenho certeza que ele vai amar.

Hanna solta um gritinho e pula no meu pescoço, praticamente saindo do chão para conseguir me alcançar e enlaçar os braços ao meu redor.

— Muito, muito obrigada. De verdade. Mesmo que não dê em nada, a sua opinião é muito importante para mim. — Ela me solta e apoia as duas mãos nos meus ombros, o corpo ainda grudado no meu. — O Nick sempre fala tão bem do seu trabalho. Os meninos todos falam. Significa muito pra mim que goste do que eu faço.

— Você é muito boa, Hanna. Pode se orgulhar.

Seu sorriso se amplia e me vejo forçado a acompanhar. É inevitável. Ela é contagiante. Demoro a processar a proximidade do seu corpo no meu e, quando o faço, dou um passo para trás.

— E quem é essa? Modelo nova? — pergunta, o olhar atento agora na tela do computador.

— Uma amiga — respondo, olhando por sobre o ombro para encarar a imagem de Fernanda na tela.

O rosto inocente de Hanna se converte em uma feição inquisidora com um sorriso sapeca e olhos curiosos.

— Amiga ou amiga amiga? — questiona. — Sabe, o Nick diz que você tem a atenção de uma criança de três anos. Perde o interesse em alguém com a mesma facilidade com que começa a ter interesse em outra pessoa.

Ela fala a última parte com uma risada, como se contasse uma piada muito boa. Queria dizer que fiquei ofendido, mas é verdade. Meu foco muda de pessoa com uma velocidade que até me assusta. E Fernanda definitivamente conseguiu atrair minha atenção toda para ela de tal maneira que, ainda que não consiga ignorar a presença do rosto salpicado de sardas à minha frente, a voz no fundo da minha mente está planejando onde levá-la para almoçar amanhã.

Sinto meu celular vibrar no bolso da calça e puxo o aparelho, encontrando uma mensagem de Juliana pedindo uma carona. Deu sorte, vim trabalhar de carro hoje. Respondo que chego em cinco minutos e enfio o celular no bolso de novo.

— Preciso ir — digo e pego minha câmera em cima da mesa, fechando o laptop sem desligar mesmo. — Quer carona para algum lugar?

Ofereço já andando em direção à saída e a mulher me acompanha, praticamente saltitando atrás de mim até sairmos da sala.

— Não, vou encontrar com algumas amigas aqui por perto — diz.

Ela engancha o braço no meu enquanto andamos até o elevador e permanecemos assim até chegarmos ao térreo, sem que Hanna pare de falar por um minuto que seja, empolgada contando alguma história do seu tempo em Londres.

Quando chegamos a onde meu carro está estacionado, ela fica na ponta dos pés e deixa um beijo na minha bochecha.

— Fico esperando você me dar um retorno do trabalho — ela diz. — Espero muito que a gente possa trabalhar junto, vai ser incrível!

Sorrio e deixo um beijo na testa dela antes de ver a ruiva caminhar pela rua, leve como um anjo, até entrar em um barzinho próximo. E é engraçado que já não acho mais que vá ser um problema se a gente, de fato, começar a trabalhar junto. Provavelmente saber que ela e o Nick finalmente se renderam um ao outro fez com que imediatamente se tornasse expressamente proibida. Ou isso, ou eu estou ficando louco de estar tão subitamente envolvido por uma mulher com quem troquei duas palavras e três patadas.

Estaciono o carro em frente ao prédio do trabalho da Ju já pronto para mandar uma mensagem mandando-a descer rápido, mas não preciso porque vejo que ela já está saindo do prédio, acompanhada a passos curtos pelo chefe que foi buscá-la na casa dos nossos pais no sábado e sobre quem ela passou o dia falando no ouvido ontem. Claramente algum grande drama está acontecendo ali, porque a tensão entre os dois é visível e palpável. Vejo quando Eduardo segura o braço dela e eles trocam meia dúzia de palavras antes de Juliana se soltar.

O que minha irmã não vê, já que está de costas para ele, vindo em direção ao carro, é que o homem parece simplesmente desesperado. Eduardo esfrega o rosto e passa a mão no cabelo. Não posso ouvir o que ele diz daqui, mas pela expressão frustrada claramente soltou um palavrão. Ele dá um soco de leve na porta e vira as costas, voltando par dentro do prédio.

— Dirija — Juliana diz assim que entra no carro, sem olhar para mim. —Nenhuma palavra sobre isso.

Obedeço. Conheço bem a peça para saber que não quero comprar essa briga não. Dirijo em silêncio por alguns minutos, parando aqui e ali por causa do trânsito que faz o trajeto ser infinito, até que ouço-a bufando qualquer coisa que não consigo entender.

— Conversei com sua amiga hoje. A gente vai almoçar amanhã — digo e ela olha para mim, o cenho franzido. Paro em um sinal e olho na direção dela. — A Fernanda.

Juliana me encara boquiaberta e quase quero rir.

— Ela definitivamente não é minha amiga — diz.

Penso em perguntar o motivo da birra que tem com a outra, mas Juliana me conta tudo. Absolutamente tudo. Ela é pouco menos de dois anos mais velha que eu, então crescemos grudados, acostumados a dividir cada detalhe da nossa existência um com o outro. Se ela não me contou, não quer que eu saiba e respeito isso. Conto por alto sobre a nossa conversa e sobre o pseudocombinado para amanhã e, mais rápido do que imaginei, estaciono em frente ao apartamento da minha irmã. Que continua com uma tromba do tamanho do universo.

Dessa vez insisto, e ela me conta da confusão toda que foi seu dia. Pelo visto Eduardo a beijou e voltou atrás e ela combinou de encontrar com o tal Rafael que a Priscila quer pegar. Não disse? Drama. Drama purinho. Quero nem ver a confusão.

Dou um beijo na testa da minha irmã e começo a dirigir para casa, tentado a tomar um banho e cair na cama o mais rápido possível, mesmo sabendo que não posso. Provavelmente vou virar a noite editando as fotos para Renato e dormir é a última coisa que vou fazer hoje. O que tenho certeza é que um par de olhos castanhos e uma pintinha na bochecha vão estar presentes na minha mente a noite inteira.

São sete e meia da manhã quando entro no prédio em que Juliana trabalha pela segunda vez na semana. E ainda é terça-feira. Não é para trazer minha irmã, dessa vez, já que ela dispensou minha companhia dizendo ter que ir para algum lugar na Tijuca. Entro no elevador e subo os andares e, assim que as portas se abrem, quase sou atropelado por Priscila.

— Gui? — A loira me olha com o cenho franzido e olha por sobre o ombro como se para confirmar alguma coisa. — Sua irmã não vem pra cá hoje.

— Eu sei — digo.

Ela inclina a cabeça e olha para o copo na minha mão, arqueando a sobrancelha no instante seguinte. Priscila sabe que não é para ela. Lá vamos nós.

— Fernanda — digo e vejo os lindos olhos verdes arregalarem.

— Fernanda? — pergunta, apontando com o dedo na direção onde fica o corredor que dá acesso a onde ela trabalha. — Aquela Fernanda?

Limito-me a balançar a cabeça positivamente.

— Juliana sabe disso? — questiona e confirmo de novo. Não quer dizer que ela goste, mas saber ela sabe. Priscila solta uma risadinha e entra no elevador, apertando o botão do sexto andar. — Boa sorte, vou vai precisar.

A porta se fecha e fico mais um segundo encarando o metal. Cada vez mais curioso para saber por que todo mundo parece pintar a mulher como o diabo na Terra. Pri não falou muito, mas deu a entender o suficiente. Juliana não quis me dizer qual o problema com ela, mas não a suporta. Enquanto ando até onde a encontrei ontem, meu interesse só parece aumentar.

Nicolas tem mesmo razão, meu foco muda tão rápido que até eu me perco. Mas tem alguma coisa me dizendo que Fernanda furtou minha atenção inteira para ela sem que tivesse qualquer intenção de fazer isso.

Alcanço-a com a olhar antes que ela note minha presença. Está concentrada com os olhos no computador, alheia ao mundo ao seu redor de tal forma que dá um pulinho na cadeira quando a alcanço e coloco o copo em cima da sua mesa.

— Leite de soja e açúcar — digo quando ela ergue o olhar para mim. — Dois. — Faço com o dedo.

Fernanda olha para o copo na minha mão e estica a sua para pegá-lo. Seus dedos finos com unhas cobertas por um esmalte rosa são quentes quando tocam os meus e me atrevo a estender a mão e percorrer a palma por sua pele. Ela congela no lugar, os olhos atentos no que estou fazendo quando tomo seus dedos e levo-os até os lábios.

— O que você está fazendo aqui, Guilherme?

Não consigo evitar a risada, porque a resposta pode até ter sido ríspida, mas seu semblante confuso me diz que não parece ter sido sua intenção.

— Não é assim que se agradece alguém que te traz café. Vamos lá, tenta de novo — implico, abrindo o sorriso que mostra covinhas, ainda segurando seus dedos nos meus.

Espero uma resposta malcriada, mas Fernanda sorri docemente e não faz qualquer menção a puxar os dedos dos meus. Com a outra mão, pega o café e leva-o à boca. Não devia ter absolutamente nada de sensual em seus lábios perfeitamente cobertos por batom fechando ao redor do plástico, mas me pego hipnotizado.

— Perfeito. Obrigada pelo café, Guilherme — diz após tomar um gole. Aceno com a cabeça, dando-me um tapinha no ombro por ter acertado. — Agora, o que você está fazendo aqui?

Solto uma risada alta, não consigo evitar. Meu Deus, que delícia de mulher.

— Vim confirmar nosso almoço para mais tarde — esclareço e ela recosta na cadeira, finalmente soltando a mão da minha.

Fernanda me encara com olhos atentos.

— Você sabe que não vou terminar o dia na sua cama, certo? — ela pergunta, tomando outro gole do café.

Levo a mão à boca e mordo o dedo, tomando um segundo para pensar antes de falar. Talvez para esconder o sorriso enorme que está no meu rosto nem sei por que.

— Deixa eu adivinhar. Você é dessas que só transa no quinto encontro.

Fernanda meneia a cabeça como se considerasse e acompanho o movimento das ondas negras que caem em seu colo. A blusa de hoje é branca e provavelmente não tem nada mais instigante do que o contraste da cor com a sua pele. Não queria, mas não consigo evitar imaginar uma lingerie exatamente dessa cor no corpo dela. Os cabelos presos em um coque alto, alguns fios rebeldes caindo por seus ombros a maquiagem bem delineada que ela parece adotar, recostada em uma grande janela de vidro, como a que imagino existir em qualquer um desses escritórios, e o panorama da cidade ao fundo. A fotografia perfeita.

— Três — responde. — Mas não sou contrária a fazer exceções. O problema, Guilherme, é que você não tem muita coisa a seu favor.

É provavelmente a primeira vez na vida que ouço isso. Espero pela explicação, mas não vem. Ela vai me fazer perguntar.

— E o que exatamente em mim não te agrada, minha bela dama?

Fernanda faz uma careta, tão espontaneamente que não tem como ser fingida.

— Isso. Isso bem aí. Essa voz manhosa e elogios sem sentido. Você já se olhou no espelho? — pergunta.

Não é uma pergunta retórica. A mulher não volta a falar enquanto eu não confirmo com a cabeça.

— Então tenho certeza que você já viu que tem cara de safado. Bigodinho e cavanhaque? Quer dizer, combina com você, mas por favor, nós dois sabemos que é um clássico que caras que não valem o chão que pisam. Esses olhinhos de cachorrinho pidão... Não. Eu realmente não tenho vocação para caras que não prestam.

O que me surpreende nesse discurso todo é que ela não está tentando me provocar. Sua voz é clara e sem um pingo de segundas intenções. Ela não gosta de cafajeste e isso não posso negar que sou. O último dos cafajestes românticos, mas cafajeste ainda assim.

— Então você está dizendo que se eu provar que não sou tão ruim assim, em três encontros vou poder te mostrar que sou muito melhor do que imagina?

Fernanda solta uma risada baixa, como se simplesmente não acreditasse em mim. Nem eu acredito. O que estou fazendo, nem sei. Tem alguma coisa nessa mulher...

— Se você conseguir me convencer que tem um pingo de autenticidade no seu corpo além de cantadas baratas e um sorrisinho de canto, você pode me mostrar tudo que tem hoje ainda.

Ah, Fernanda...

Eu adoro um desafio.


***

CAPÍTULO POR MOTIVOS DE TÁ CALOR E EU PRECISO DE UM MOTIVO PRA SER FELIZ.

Ah, vocês conhecem meu calendário a essa altura, não vou nem me defender.

Até breve!

Amo vocês!

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top