Capítulo 2
O dia está lindo lá fora. Quase posso ouvir os pássaros cantarem qualquer que seja a melodia que escolheram para hoje. Quase posso sentir o cheiro doce das flores. Quase posso sentir o calor suave dos raios de sol tocando meu rosto. Quase.
Mas o único som que ouço é o de uma tosse constante, o único cheiro que me invade é o odor dos lençóis que precisam ser trocados, mais uma vez. A única coisa que toca meu rosto é o sorriso que tenho que forçar para fingir que está tudo bem. Porque tem que estar bem, não tenho outra escolha. Vovó.
Tiro o olhar da janela e volto minha atenção para a mulher sentada no sofá, o olhar fixo na televisão. Não acho que ela esteja assistindo qualquer coisa, não acho que processe nada do que está passando diante dos seus olhos, mas ela senta ali e encara a tela como se fosse a coisa mais importante da sua vida.
Gostaria de ter mais lembranças boas dela. Talvez eu tenha, mas é difícil resgatá-las quando as memórias recentes são recheadas de preocupações e o medo constante de perdê-la. Não lembro a última vez que sorri nessa casa, estando perto da minha avó. Fico sempre em um estado constante de semichoro, com lágrimas que mal se formam e nunca se derramam. Um aperto no peito causada pela sensação de impotência.
— Você pode ir, Fernanda.
Viro em direção à mulher que sempre tem um sorriso fácil no rosto. A pele morena não disfarça as olheiras tão bem quanto ela acha que o faz, mas não serei eu a dizer isso.
— Vou ficar mais um pouco, Lívia — digo e a enfermeira de meia idade acena com a cabeça, entregando a mim o copo com água e os comprimidos.
Vou ficar mais um pouco, mesmo que ela sequer lembre quem eu sou.
Sento-me no sofá ao seu lado e toco o dorso enrugado de sua mão com a ponta dos dedos. Como sempre, demoram alguns muitos instantes até que ela olhe na minha direção e, quando o faz, vejo pouco reconhecimento nas íris opacas que denunciam a idade.
— Seu remédio, vó — digo e seu olhar cansado e confuso cai para a minha mão. Mostro os comprimidos e ela volta a encarar a televisão. Vejo Laís ameaçar intervir, mas balanço a cabeça de leve, negando.
Não sei por que me torturo dessa maneira, sabendo exatamente qual é o resultado todas as vezes. Insisto, sabendo que não haverá um brilho súbito de reconhecimento em seus olhos. Ela não vai olhar em minha direção, lembrar quem eu sou em um surto de lucidez, dizer que me ama e que vai ficar tudo bem. Isso só acontece em filmes. Os flashes de lucidez são reais, é verdade, mas a cada dia se tornam mais escassos. Mais raros. Mais inalcançáveis. Quase impossíveis.
Chamo Laís, por fim, que consegue, mesmo sob protestos da minha avó, dar os comprimidos que ela precisa tomar. Vou até onde deixei minha bolsa e abro-a, tirando de dentro as caixas dos remédios para as próximas semanas, que deixo em cima da mesa. Abro a carteira e reconto as notas, dobrando-as antes de colocá-las na palma dela.
— Se meus pais perguntarem...
Ela confirma com a cabeça e abre um sorriso de lado. Finjo que não vejo a pena descarada em sua expressão.
— Eu sei. Nem uma palavra.
Concordo com a cabeça e respiro fundo. Pego a minha bolsa e deixo um beijo na testa da minha avó.
— Te vejo em alguns dias — sussurro, mesmo sabendo que ela não entende o que essas palavras significam na prática. — Minha tia? — pergunto a Laís.
— Disse qualquer coisa sobre chegar mais tarde — responde.
Como sempre, a mulher é profissional o suficiente para não tecer reclamações de cunho pessoal sobre tia Cláudia e sua completa ausência e desinteresse em cuidar da mãe, mesmo que more na casa dela.
Dou uma última olhada para ela e permito que a imagem que se forma em minha mente seja o suficiente para me fazer aturar mais uma semana de trabalho, porque sei que não tenho escolha. Ela precisa de mim.
Saio pela porta e sou atingida pelos raios de sol, pelo cheiro das flores, pelo canto dos pássaros. Mas tudo parece cinza demais.
Giro a pinça em meus dedos e aproximo-me do espelho um pouco mais. Está quase bom. Arranco sistematicamente mais alguns fios da minha sobrancelha direita, tentando fazer com que ambas fiquem perfeitamente iguais. Não ficam, jamais vão ficar.
Suspiro e levanto, arrancando um fiapo solto na barra da minha saia antes de alisar o tecido. Encaro o espelho, tentando decidir se a maquiagem bem-feita e a roupa perfeitamente alinhada conseguem disfarçar a bagunça que eu estou. O reflexo impecável quase me faz rir. Parece funcionar. Sei que funciona bem o suficiente para que ninguém questione, pelo menos. É fácil demais enganar olhos alheios e quase fácil o suficiente enganar a mim mesma.
Desço as escadas e sinto o cheiro de comida vindo diretamente da cozinha. Passam das três da tarde e o almoço provavelmente já está pronto há tempos, mas estavam esperando que eu chegasse em casa. Entro no cômodo e pego o avental pendurado em um gancho na parede de azulejos antigos da casa que há muito precisa de uma reforma. Visto a peça e vou até o fogão, ver o que está acontecendo por aqui.
— Mãe? — chamo e ouço-a dizer que está no banho.
Desligo o fogo que esquentava o feijão, checo o forno, tiro o suco na geladeira. Termino de arrumar a mesa, deixando tudo pronto para ser servido. Vou até a sala e jogo-me no sofá, tentando entender o que é isso que está passando.
— Você não consegue sentir seu cérebro derreter? — pergunto, cerrando os olhos para a completa falta de lógica no que quer que seja isso que estou assistindo.
— Tenho certeza que sim, pintinha — meu pai responde e reviro os olhos para o apelido que ele sabe que odeio desde criança. — Foi visitar sua avó hoje?
Suspiro e concordo com a cabeça.
— Temos sorte de termos encontrado uma cuidadora boa e qualificada como a Laís que cobra um preço que podemos pagar — ele comenta, sem tirar os olhos da tela. Fecho os meus por um segundo, concordando em silêncio.
Sorte.
Sorte não existe.
Segunda-feira de manhã parece ser o dia mais odiado da semana por todas as pessoas que conheço. Postagens nas redes sociais, reclamações pelos corredores, semblantes cansados de quem está exausto porque não dormiu horas o suficiente. Toda semana é a mesma coisa. Não consigo entender, ou aceitar, as reclamações. O calendário não muda magicamente durante a noite sem explicação plausível para tal. O dia depois de domingo sempre é aquele em que é preciso acordar cedo, enfrentar transporte público lotado e chegar ao trabalho no horário correto. Qual o ponto das mesmas reclamações fúteis repetidamente?
Para mim, segunda-feira é, sem dúvidas, o melhor dia da semana. Ergo os olhos do computador por um segundo apenas antes de voltar a digitar rapidamente. Estalo o pescoço e passo para a próxima página, aproveitando a quietude para adiantar o trabalho.
Segunda ele não vem trabalhar.
É difícil saber quando vem, sob a desculpa eterna de que o presidente não precisa estar presente a todo momento, mas segunda ele nunca vem trabalhar.
As horas passam rápidas e tranquilas. Aproveito o surto de produtividade parar fazer tanto quanto posso e decido pular o almoço. Decido salvar a hora fora do escritório para mais tarde. Quando o relógio marca meio-dia e meia, decido levantar, pegar as pastas que preciso e atravessar o corredor. Talvez tenha algo a ver com o fato de esse ser o horário de almoço de Juliana e eu saber que não vou precisar ver aquela cara mimada na minha frente.
Sorrio internamente quando vejo a mesa dela vazia e tomo um segundo para colocar uma mecha de cabelo atrás da orelha antes de bater na porta. Ouço a voz instruir-me a entrar e giro a maçaneta, abrindo uma fresta na porta.
— Senhor Rodrigues? — chamo e vejo-o levantar a cabeça na minha cabeça.
Gostaria de poder dizer que não perco o fôlego por um segundo, mas é exatamente isso que acontece. Eduardo tira os óculos e não consigo decidir se isso é melhor ou pior. Instintivamente, arrumo a postura e vejo quando ele abre um sorriso discreto, quase invisível, perceptível apenas porque tomo meu tempo para estudar suas feições.
— Fernanda — cumprimenta e indica com a mão para que eu entre.
Fecho a porta atrás de mim e o som dos meus saltos batendo contra o chão ecoa alto demais na sala silenciosa. O olhar dele sobre mim é intimidador e envolvente; tenho certeza que sequer percebe o efeito que tem.
— Seu irmão não está no escritório, então...
Não preciso completar a frase, ele apenas suspira e acena em concordância, estendendo a mão para pegar a pasta que carrego. Toma seu tempo lendo com cuidado cada linha do que está escrito ali. Sinto-me autoconsciente demais, de pé no meio da sala, como uma criança esperando para receber uma repreensão do professor. Após longos minutos, assina no final da página e me devolve o documento.
— Obrigada — digo, virando em direção à porta. Dou todos os passos necessários até alcançar a maçaneta antes de ouvir novamente sua voz.
— Fernanda? — chama e encaro-o sobre o ombro. — Como está o trabalho?
Sei que franzo o cenho, olhando-o confusa, mas não consigo evitar.
— Sei que Vinícius pode ser difícil às vezes, então qualquer problema, não hesite em me procurar. — Concordo com a cabeça, mas ele não solta meu olhar. — Eu realmente quero dizer isso, Fernanda. Você pode não trabalhar para mim, mas é funcionária dessa empresa. Qualquer problema, sabe onde me encontrar.
Aceno novamente e deixo a sala, só então respirando. Começo a andar de volta à minha mesa, esfregando os braços para me livrar da sensação estranha que percorre minha pele. Eduardo tem um poder magnético sobre toda e qualquer mulher deste escritório, não é novidade para ninguém. Não poderia ser diferente, o homem é a personificação de tudo que é mais desejado no mundo. Pergunto-me por vezes se ele é real. Não nego, tampouco, a admiração platônica que faz com que eu me sinta uma adolescente perto dele. Não há um dia nessa empresa que eu não deseje ter sido contratada pelo outro irmão.
Mas é segunda-feira, e às segundas-feiras ele não vem trabalhar.
Então o que ele está fazendo apoiado na minha mesa?
Congelo no lugar por um segundo, hesitando em dar mais um passo. Como sempre é, permito-me tramar um plano de fuga rápido em que corro pelas escadas da saída de emergência até o térreo e encontro a rua. É exatamente o que eu gostaria de fazer, mas ao invés disso me pego dando passos na direção dele.
— Boa tarde, senhor Rodrigues — digo, referindo-me ao outro irmão que não devia ter o direito de carregar o mesmo sobrenome, e dessa vez o cumprimento queima minha garganta.
Vinicius não merece esse tratamento formal, respeitoso, mas é meu papel fazê-lo. Dou a volta na mesa e sento-me em minha cadeira; o homem não se move. Continua na mesma exata posição, recostado no tampo de madeira, um memorando na mão. Seus olhos percorrem a folha e observo-o pelo canto do olho enquanto volto a digitar rapidamente no computador.
Alguns instantes depois, o homem beirando os cinquenta anos, com a cabeça revestida de fios grisalhos e porte altivo e intimidador levanta e põe-se de pé, alisando o terno que o veste perfeitamente bem. Finjo não ver quando seus olhos caem em minha direção e permanecem sobre mim por tempo demais. Forço-me a não tirar os olhos da tela, na vã esperança de que isso faça com que ele note menos a minha presença.
Como sempre, não funciona.
Vinicius dá a volta na mesa e para atrás de mim. Apoia uma mão no encosto da cadeira em que estou sentada e inclina seu corpo para frente, esticando a mão para apoiar na mesa o memorando que estava segurando. Ele não precisa encostar em mim para que eu sinta um arrepio subir-me pelas costas e é instintivo arrumar a postura, empinar o queixo e cerrar os dentes.
— O que é isso? — pergunta, o dedo apontando para uma linha no meio da folha. Seu corpo está inclinado na minha direção, perto o suficiente para que eu sinta o cheiro do perfume que comecei a odiar desde que comecei a trabalhar aqui.
— É um aviso geral sobre mudanças no...
— Eu sei sobre o que é o memorando, Fernanda. Aprendi a ler quando você ainda não sonhava em nascer — corta, ríspido como sempre é.
Fecho os olhos e engulo em seco quando sua mão toca meu braço.
— Terceiro parágrafo, segunda linha — instrui e forço meus olhos a focarem na parte do texto que ele me indicou.
Leio a mesma frase repetidas vezes porque não consigo me concentrar no que quer que as palavras signifiquem com seus dedos despretensiosamente subindo e descendo pelo meu braço.
— A partir do mês que vem, as reuniões da diretoria executiva vão acontecer duas vezes por semana e...
Ouço sua risada perto demais do meu ouvido.
— Eduardo realmente acha que não tenho mais nada o que fazer da vida, não é? — pergunta e sei que é retórico. O ódio na sua voz ao falar no irmão não é novidade.
Ele apoia na mesa ao meu lado, ficando de frente para mim. E, subitamente, seu semblante está leve e um sorriso escancarado pinta seu rosto.
— Como está sua avó? — pergunta e fecho os olhos por apenas um segundo, amaldiçoando-me pelo que deve ser a centésima vez por ter contado a ele sobre o estado de saúde dela logo que comecei a trabalhar aqui. — Alguma melhora?
Nego com a cabeça e ele suspira, encarando-me com pesar nos olhos. Vinícius inclina na minha direção e arrasta os dedos pelo meu rosto, colocando uma mecha atrás da minha orelha.
— Ela vai ficar bem, querida. — Seus dedos descem pelo meu pescoço e fecho os meus em punho no meu colo, sentindo a ponta das unhas afundarem na minha pele. — Tendo você para cuidar dela, não tem como não ficar.
Movo o corpo para trás, para longe de seu toque, o que faz com que a cadeira seja arrastada com o movimento. O sorriso satisfeito em seu rosto me enjoa quase tanto quanto os toques fugazes.
— Obrigada. — Forço-me a responder e minha voz mal sai em um sussurro engasgado. Sequer sei pelo que estou agradecendo, não há nada para agradecer.
Não consigo prender meu olhar ao seu, não consigo evitar de encolher o copo para o mais longe possível dele. Não consigo gritar. A súplica morre em minha garganta e arranha minhas cordas vocais, mas não sai. Não consigo bradar que deixe de ser um velho asqueroso, que saia de perto de mim, que nunca mais me toque.
O brilho perverso em seus olhos e o sorriso presunçoso em seu rosto dizem que ele sabe o suficiente sobre o desconforto que inflige, e que gosta.
— Tenha um bom dia de trabalho, querida — diz, levantando-se da mesa. — Não sobrecarregue essa sua cabecinha, não quero ver nenhuma ruga nesse seu rosto lindo.
Com um último afago em meu ombro, ele se afasta.
Não vejo que caminha em direção à sua sala ou na direção oposta a ela. Apenas presto atenção no som de seus sapatos batendo contra o chão, cada vez mais distantes. Quando me vejo sozinha no completo silêncio novamente, consigo respirar.
Fecho os olhos por um segundo e respiro fundo.
Pego a nécessaire dentro da minha bolsa e vou até o banheiro, trancando a porta quando entro. Encaro meu reflexo no espelho por um segundo longo demais antes de abrir a bolsinha em minhas mãos e pegar o pó compacto. Passo para o batom, rímel, lápis de olho.
Por último, pego a pinça e giro-a nos dedos. Arranco um fio solto da minha sobrancelha, perguntando-me se agora estão finalmente simétricas e se a minha bagunça, enfim, está escondida.
Impecável o suficiente para enganar os olhos de qualquer um.
Inclusive os meus.
***
OI MENINESSSS, TUTUPOM?
FERNANDA CHEGOU, BRASIL!
Contem-me tudo, não me escondam nada!
Amo vocês <3
Até breve!
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