Eu não sei nadar
Certa vez eu li que o nosso cérebro apaga memórias muito traumáticas para nos proteger de viver o trauma toda vez que lembrarmos. Mas a nossa mente é traiçoeira e de repente, 20 anos depois, essas memórias retornam.
Ter sido uma criança tão negligenciada, tão abandonada, tão desprezada, me tornou a pessoa vazia e sem vida que eu sou hoje.
Certa vez eu estava na praia com meus pais e meu irmão. Eu devia ter por volta de 5 anos e meu irmão tinha mais ou menos 2 anos.
Estávamos na ansiedade de curtir a água, fazer castelinho de areia, nos divertir. A minha mãe não ia para a água, ela passava bronzeador e ficava na areia tentando pegar uma cor. Já o meu pai ia para a água às vezes. Ele ia um pouco sozinho e depois ia um pouco com o meu irmão. Eu pedia para ir também, mas ele não me levava dizendo que não tinha como levar duas crianças sozinho para a água. Então eu ficava sentada na areia e passava protetor solar de hora em hora conforme a minha mãe me instruía.
Eu pedia para a minha mãe me levar na água, mas ela negava porque estava tentando se bronzear. Nesse dia, depois de ver meu pai ir e voltar da água, ora sozinho, ora com o meu irmão, eu comecei a chorar. A praia estava tão perto, mas eu não podia. Ele não quis me levar para a água.
Incomodada com o meu choro, e sem paciência para as minhas demandas, a minha mãe mudou de rosto. Rapidamente fechou a cara e quando meu pai voltou com o meu irmão da água ela disse que da próxima vez que fosse ele teria que me levar.
Indignado com tal ultimato e sem querer ceder ele disse que me levaria para a água, mas levaria o meu irmão também para que ele não ficasse sozinho na areia.
Assim seguimos, meu pai com o meu irmão no colo e eu andando ao seu lado. Ele me disse para seguir seus passos e pisar por onde ele estava pisando. Nós passamos daquela primeira quebra de onda que fica sobre a areia e não fomos muito longe. Eu não sabia nadar, entrou tanta água nos meus ouvidos e olhos que eu quase não via nem escutava nada.
Quando conseguia subir para fora da água eu ouvia meu pai caçoando de mim e incentivando meu irmão a rir de mim também. Ele debochava de mim dizendo coisas como: "Eu não queria te trazer. Está gostando da água? Encheu a calcinha de areia tomando esses caixotes."
Até que por fim ele disse que era melhor a gente sair da água. Eu já tinha engolido bastante água, meus olhos ardiam, eu estava com a calcinha cheia de areia, meus ouvidos estavam tapados. Quando chegamos onde as ondas quebram elas começaram a quebrar contra as minhas costas e me fazer cair para frente. Eu tentava levantar, mas vinha outra e me derrubava. A essa altura eu já tinha engolido muita água e até areia. Eu tinha apenas 5 anos. A água estava pouco acima do joelho dele, mas isso era na altura do meu peito, quando as ondas vinham facilmente me derrubavam. Eu tentava pedir socorro, mas toda vez que eu abria a boca eu engolia muita água e areia. Eu tentei segurar o pé dele para fazer ele perceber que eu precisava de ajuda, mas não adiantou. Eu desisti.
Eu parei de me debater, não tinha mais como continuar tentando. As ondas eram implacáveis e meu pai estava decidido a me deixar afogar.
Eu fui puxada pelos cabelos para fora da água. Meus ouvidos estavam zumbindo. Eu tentava me segurar em alguma coisa ou em alguém talvez em quem deveria ser o meu pai, mas minhas mãos desorientadas não encontraram nada. Ele me arrastou para fora da água e eu consegui tossir colocando muita água para fora. Quando eu finalmente consegui falar eu me virei para ele e disse obrigada. Eu senti que devia agradecer ao meu pai por não me deixar morrer afogada bem debaixo do nariz dele. Eu não o abracei, não busquei conforto.
Uma mulher, que na época eu achei que era uma senhora, mas lembrando hoje eu sei que devia ter mais ou menos uns 40 anos, se aproximou de nós com o rosto transtornado e disse: "Ela ia morrer, eu corri para a água para salvar a vida dela, você ia deixar ela morrer. Ela é sua irmã?" Meu pai disse que sim, mas eu desmenti na hora: "Ele é o meu pai." Eu fiz isso porque frequentávamos uma religião bastante rígida e abominávamos a mentira por entender que o pai da mentira é o Diabo. Eu ainda abomino, embora às vezes eu minta hoje eu dia.
Essa mulher me disse: "Ele não te ama, se ele é o seu pai, ele não te ama. Fique perto da sua mãe."
Meu pai saiu me mandando andar junto com ele. Ele esbravejou por eu tê-lo desmentido na frente da mulher. Eu não consegui chorar. De alguma forma eu esqueci disso até bem pouco tempo atrás quando me perguntaram: "Por que você não aprendeu a nadar? Por que você sente medo?"
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