Segundo Passo - A reunião
Eu estava sentado na mesa próximo à minha janela observando a folha de desenho em branco. Aquela era a minha terceira tentativa frustrada de desenhar algo, é impossível sequer pensar que eu, um ilustrador renomado, não consiga fazer um único desenho bom. E ainda assim, é o que está acontecendo!
Eu já tinha tentado desenhar a paisagem, animais, frutas e nada saía. Não que eu tivesse desistido de tentar, eu estava irritado demais para desistir, mas ao olhar para o relógio na parede, percebi que estava quase na hora da maldita reunião do grupo de apoio.
A ideia de me abrir sobre a morte de minha esposa para uma porção de desconhecidos, era um pouco desconfortável. Não, na verdade, era muito desconfortável. Eu odiava aquilo, mas tinha prometido a Alex que participaria das reuniões. Essa foi a única maneira de convencê-lo de que eu estava disposto a tentar seguir em frente, e não apenas fugindo para que ele me deixasse em paz.
Mas, apesar de todo o desconforto, eu dei minha palavra e planejava honrá-la. Depois do acidente, eu tinha dificuldade em dirigir, por conta da visão afetada e como não conhecia a cidade, preferi deixar meu carro na Pensilvânia enquanto me aventurava em minha "nova vida". Eu poderia ter chamado um Táxi, mas estava gostando do meu atual status de turista, então decidi caminhar até o hotel onde seria realizado os encontros do grupo.
De alguma forma, Alex conseguira encontrar um grupo em formação para me encaixar. Ele tinha inclusive confirmado minha presença, então eu não tinha a opção de não comparecer. Decidi deixar de pensar muito no assunto e encarar aquilo de uma vez. Sai de casa, observando o céu limpo, apertando o sobretudo quando uma fria brisa de outono me atingiu.
Comecei a caminhar, atento a todo o movimento na rua. Aquele lugar devia se tornar bem agitado durante o verão, mas na metade de outubro ficava bastante vazio. Segui pela rua, admirando mais uma vez o grande sobrado que tinha visto no dia que cheguei, mais uma vez imaginando o tipo de família que vivia ali.
Seria um velho casal que passou a vida construindo a casa dos sonhos e ficou com um lugar grande demais, quando todos os filhos foram para a faculdade? Um casal com muitas crianças que aproveitavam todo o espaço que aquela casa oferecia? Ou quem sabe, um jovem casal em busca de um lugar perfeito para iniciar uma família?
Esse seria o tipo de casa que Lizzy e eu escolheríamos.
Eu balancei a cabeça, afastando aqueles pensamentos, retomando meu caminho. Vinte minutos mais tarde, eu cheguei a um grande casarão vitoriano.
Eu franzi o cenho, observando aquele lugar pintado de rosa. Eu estou no lugar certo? Conferi novamente o endereço que me foi dado e o nome do hotel antes de subir os degraus que levavam até a porta da frente, me sentindo um pouco incerto em relação àquilo.
— Posso ajudar? — Uma jovem de cabelos ruivos e uma tatuagem de um arabesco repleto de flores que subiam pela lateral direita de seu rosto sorriu ao me ver entrar na casa.
— Desculpe, estou aqui para uma reunião, mas acho que errei o endereço — Eu olhei em volta, observando os papéis de parede floridos e os móveis antigos.
— Ahh não, você deve estar aqui para a reunião da Drª Murphy — Ela fez um sinal para que eu a seguisse — Venha comigo, eu te levo até a sala que separamos.
Enquanto a acompanhava, observei toda a exagerada decoração interior do local, aquela casa certamente tinha mais de um século de idade e não parece ter sido reformada nos últimos anos.
— É aqui — Ela indicou um par de portas abertas — Boa reunião, se precisar de mim, eu sou Emma Carter.
— Obrigado, Srtª Carter, meu nome é Oliver Scott — Eu olhei para as portas, me sentindo um pouco inseguro.
— O senhor não foi o primeiro a chegar, Sr Scott — Ela garantiu — Já estão esperando.
Eu acenei com a cabeça em entendimento, seguindo até a sala. A decoração ali, se possível, era mais exagerada que no resto da pousada, me fazendo piscar atordoado pelo excesso de informação e estampas florais espalhados por todo o cômodo.
— Sr. Scott, eu presumo? — Uma mulher veio em minha direção.
Ela era uma bela mulher, sua pele era tão escura quanto a minha, o cabelo castanho, as maçãs do rosto altas, traços delicados e um belo sorriso.
— Sim — Eu respondi um pouco sem jeito, observando as pessoas que já estavam sentadas ali.
Parece que serei o único homem presente.
— Eu sou a Drª Murphy, estávamos esperando por você — Ela apertou minha mão — Por favor, sente-se.
Assim que me acomodei, um rapaz se aproximou, vindo de um canto da sala que estava em meu ponto cego. Ele tinha os cabelos e olhos castanhos, e a pele dourada. E pelo odor que exalava, parecia ter bebido um bocado, apesar de estarmos no meio da tarde.
— Podemos começar? — A Drª sorriu, assumindo um lugar de destaque na frente da lareira — Essa é a primeira reunião de nosso grupo, e por enquanto, eu não vejo nenhum motivo para nomeá-lo.
— Então esse é apenas "o grupo"? — O rapaz debochou, fazendo aspas com os dedos e um sorriso forçado no rosto.
— É uma boa definição, Sr. Rivera — a Drª sorriu cordialmente antes de prosseguir — O objetivo desse grupo, é criar um lugar seguro e especial para que cada um de vocês possa superar as terríveis perdas que sofreram, e por fim, encontrar uma maneira de seguir em frente.
Ela deu um tempo para que todos nós absorvessemos o que havia acabado de dizer, seu olhar percorreu o rosto de todos os presentes, como se esperasse alguma manifestação. Por fim, suspirou antes de prosseguir
— Eu estou aqui para ajudá-los a encontrar alguma esperança. O sucesso desse grupo depende apenas de nós — Ela sorriu — Que tal começar nos apresentando? Eu conheço a grande maioria, mas seria bom se cada um fizesse uma pequena apresentação. Olhem para as pessoas que estão ao seu redor, prestem atenção em cada palavra. Essas pessoas se tornarão suas famílias, aqui nós expressaremos nossos sentimentos, esperanças e sonhos. As únicas regras é que não mantenham conversas paralelas, sejam sensíveis à dor de seus companheiros e mantenham as conversas do grupo apenas no grupo.
Alguém bateu na porta, interrompendo o discurso da psicóloga, um homem entrou na sala, se desculpando pelo atraso. Ele logo tomou um lugar entre as duas garotas, observando todo o grupo que parecia estar finalmente completo.
— O que eu perdi? — Ele perguntou.
— Nós estávamos apenas nos apresentando, Sr Benneth.
— Ahh sim, por favor, continuem — Ele pediu.
Eu respirei fundo querendo fugir daquela reunião, foi uma besteira ter aceitado fazer parte daquilo. Um bando de desconhecidos se apresentando sob a supervisão de uma psicóloga que parece não conseguir parar de sorrir nunca.
— Como vocês já devem imaginar, eu sou Isabel Murphy, psicóloga mestra em saúde mental — Ela sorriu — Tenho trinta e quatro anos, decidi formar esse grupo por conta da pesquisa do meu doutorado "O luto a longo prazo: Quais os meios possíveis para superá-lo?". Algo mais que queiram saber sobre mim?
— Você é solteira? — O Rivera questionou, com um sorriso pretensioso nos lábios.
As garotas bufaram, enquanto eu o encarava como se ele fosse o maior babaca do planeta. E talvez ele fosse.
— Essa informação é irrelevante para os propósitos do grupo, Sr. Rivera — Ela respondeu com o mesmo sorriso de sempre no rosto — Mas já que você é tão extrovertido, porque não começa a se apresentar?
— Ahh claro, eu posso começar — Ele se ajeitou na poltrona que ocupava — Eu sou Anthony Rivera, tenho vinte e oito anos e sou um modelo bem sucedido.
Todo aquele discurso parecia ter o intuito de impressionar as mulheres presentes, mas não surtiu o efeito desejado, já que a única reação que ele conseguiu, foi o revirar de olhos de todas as garotas.
— E o que te trouxe aqui, Sr. Rivera?
— Minha mãe insistiu. Meus pais deixariam de pagar meu aluguel caso eu não "procurasse ajuda" — Ele murmurou, fazendo aspas com os dedos.
— E você precisa de que tipo de ajuda? — Ela tentou outra abordagem.
— Acho que ele procurou o grupo anônimo errado — Uma das garotas desdenhou.
— Minha tia faleceu há alguns meses — Ele murmurou, parecendo desconfortável pela primeira vez desde que começamos — Eu era bastante próximo a ela.
— Ótimo, fico feliz que você tenha procurado ajuda, Anthony — Isabel sorriu de maneira encorajadora antes de apontar para a garota que estava sentada próximo a ele — Vamos continuar.
— Eu sou a Taylor Wheeler, estou aqui porque minha mãe morreu de câncer no começo do ano — Ela respondeu timidamente — Tem sido difícil aceitar.
Eu observei os olhares simpáticos que a garota recebia, sentindo minha respiração começar a ficar um pouco descompassada diante da ansiedade que ameaçava me dominar conforme chegava minha vez. Eu não quero contar sobre Lizzy para essas pessoas, mas que escolha eu tenho?
— Eu sinto muito por você, Srtª Breeland, o incêndio na sua casa foi uma grande fatalidade para todos — A voz da psicóloga me trouxe de volta à realidade, fazendo-me perceber que não tinha ouvido uma palavra que as outras garotas disseram ao se apresentar — Sr Scott, sua vez.
Eu pisquei atordoado, me ajeitando na cadeira. Eu não tinha para onde fugir agora, era minha vez!
— Meu nome é Oliver Scott, eu vim para a cidade faz alguns dias — Eu comecei, levando minha mão até o bolso interno do sobretudo que vestia apanhando o lenço, secando a lágrima que correu de meu olho esquerdo — Eu morava na Philadelphia antes, mas meu amigo decidiu que seria bom se eu tivesse uma mudança.
— E porque isso? — Taylor parecia particularmente interessada no assunto.
— Parece que nós não podemos nos trancar em casa por alguns meses, que as pessoas ficam preocupadas — Eu ofereci um meio sorriso como resposta — Minha esposa faleceu em um acidente de carro no ano passado e...
— Desculpe te interromper, cara da Philadelphia — Anthony Rivera ergueu a mão, fazendo com que eu parasse de falar — Mas qual é a do seu olho?
— Anthony, temos momentos apropriados para perguntas — A psicóloga ralhou — Prossiga, Oliver.
— Tudo bem, eu estava com minha esposa no carro — Eu expliquei desviando o olhar — Nós sofremos um acidente na noite de Halloween.
Eu me senti desconfortável diante do olhar de todos, percebi por fim que fui o que mais deu detalhes sobre minha situação, mesmo não querendo falar sobre o assunto.
— Não tem muito a revelar depois disso, eu sobrevivi, ela não — Dei de ombros, querendo encerrar aquilo de uma vez.
Louis Benneth foi o próximo a se apresentar. Ele conseguiu falar ainda menos que todos os outros, revelando apenas que sofrera uma grande perda, mas não entrando em detalhes. A Drª Murphy deu a reunião por encerrada e nos deu alguns minutos para comer tudo o que o hotel oferecia, mas eu preferi me retirar e não interagir com o restante do grupo.
Caminhei de volta para casa pensando naquela reunião.
Aquilo vai me fazer bem?
Eu não tinha visto nenhum progresso especial, mas parece que estar em meio a pessoas que sofriam da mesma dor que eu, de certa forma, me deixou um pouco mais leve.
Eu observei o céu claro enquanto caminhava rumo à minha casa, minha mente estava presa na reunião, me mantendo alheio ao que acontecia ao meu redor.
Estava completamente distraído quando senti algo acertar minhas pernas, fazendo com que eu me desequilibrasse, me mantendo em pé por pouco.
— Baxter, volta aqui, que coisa feia! — Uma voz feminina soou vindo do meu ponto cego.
Eu tive que me virar para ver um são bernardo correndo de volta para uma mulher, que segurava o outro com o máximo de firmeza que conseguia pela coleira.
Eu já a tinha visto com aqueles cachorros no dia em que cheguei a Cape May. Ela era tão delicada, que chegava a ser cômico ter dois animais tão grandes.
— Sinto muito, ele fugiu — Ela sorriu — Espero que você não tenha se machucado.
— Estou bem — Eu murmurei me virando.
— Hey, espera — Ela tocou meu braço — Você é o cara que mudou para a casa no fim da Rua, não é?
Eu a observei por um momento. Ela continuava sorrindo, seus olhos de um intenso azul acompanhavam cada movimento meu, se esquecendo dos cachorros que brincavam um com o outro ao seu lado. Ela levou a mão ao rosto, tirando uma mecha de seu curto cabelo acobreado da frente de seus olhos, me fazendo franzir o cenho.
— Meu nome é Brooke Davis, eu moro... — Eu tive que interrompê-la, sem saber ao certo o que significava aquilo.
Ela está flertando comigo?
— Desculpe, eu preciso ir — Eu murmurei me afastando.
— Ahh, ok, claro — Ouvi sua voz enquanto me distanciava — Kiara, para com isso, sua cachorra idiota!
Eu a ouvi ralhar com a cachorra, e me recriminei mentalmente por aquela atitude. Eu havia prometido a Alex que faria novas amizades aqui em Cape May, mas começar com uma mulher? Lizzy com certeza não aprovaria isso.
— Eu estou falando, eu não posso nem ir ao banheiro — Lizzy exclamou com um meio sorriso no rosto ao se sentar novamente em nossa mesa.
— Eu não sei do que você está falando, ela só me ofereceu um pouco de molho extra — Eu desdenhei, mergulhando a batata frita no molho picante.
— Um pouco de molho extra? Oliver, ela me ignorou o tempo todo que eu estava aqui, eu fui ao banheiro e quando voltei ela estava te passando a receita do molho secreto deles! — Ela gargalhou, se servindo de um nuggets de frango.
— Pensei que você quisesse a receita do molho — Eu contrapus — Foi o que você me disse.
— E é só por isso que eu vou deixar essa passar, mas é melhor ela tomar cuidado — Ela avisou.
Eu entrei em casa, e me joguei no sofá, observando minha aliança de casamento em minha mão esquerda. No fim nós acabamos não pagando por aquele jantar, já que Lizzy chamou o gerente do restaurante para reclamar da garçonete que havia ultrapassado os limites ao me recomendar procurá-la sempre que voltasse ao restaurante.
Não, eu devo me aproximar apenas das pessoas do grupo, nada mais do que isso.
Eu fiquei alguns minutos olhando para o teto da minha sala antes de decidir fazer mais uma tentativa de desenho. Apanhei meu bloco e os lápis, saindo pela porta da cozinha, indo em direção ao portão dos fundos que me levaria até a praia.
Caminhei até encontrar um lugar adequado e me sentei na areia, decidido a desenhar o mar ou algo do tipo. As ondas pareciam calmas, o céu estava limpo e o sol, apesar de brilhar com força, não estava quente.
Eu fiz a linha do horizonte na folha, voltando a observar o mar.
Vamos Oliver, isso é fácil... É apenas o mar!
Nada
— Vamos, seu estúpido — Eu murmurei — Você consegue fazer isso!
Foi quando ouvi risos vindo do outro lado da praia. Eu olhei naquela direção, avistando a mulher de antes, Brooke eu acho, brincando com os dois cachorros. Ela corria entre eles e gargalhava alto, tentando desviar de suas investidas. Aquela cena era hipnotizante, eles a derrubavam, ela se arrastava para longe e logo se colocava em pé novamente, fugindo dos cachorros entre risos.
Um dos São Bernardos se afastou, se jogando na areia e rolando, antes de permanecer deitado com a boca aberta e a respiração ofegante. Sem pensar muito, eu peguei meu bloco e o lápis, começando a traçar alguns contornos na folha antes em branco.
Era incrível como minha mão parecia se mover por vontade própria, eu olhava para a folha, onde o cachorro estava tomando forma e novamente ele, que permanecia parado na mesma posição, como se quisesse facilitar meu trabalho.
— Baxter, vamos, nós temos que voltar — Ele virou a cabeça na direção da voz de sua dona após alguns minutos.
Ela se aproximou dele, prendendo novamente a coleira, quando ergueu o olhar em minha direção. Brooke pareceu ficar um pouco desconcertada ao perceber que eu a observava, mas se limitou a acenar em minha direção, antes de puxar o cachorro para que se levantasse.
Ele não hesitou em obedecer seu comando, e eu vi os três se afastarem, me sentindo incapaz de tirar meus olhos daquela mulher. Seus cabelos antes tão arrumados, estavam uma completa bagunça, mas ela parecia não se importar nem um pouco com aquilo.
Brooke Davis, Brooke...
Ela era portadora de uma aura de felicidade que eu não me permitia ver há muito tempo. Claro, certamente é o tipo de pessoa que consegue tudo facilmente em sua vida, não deve ter nenhum problema ou sequer deve saber o quanto a vida pode ser cruel.
Eu me levantei, decidindo desistir daquela besteira. Fiz meu caminho de volta para casa, pensando no grande erro que cometi ao ir até aquela praia, eu ainda não estava pronto para isso. Larguei o esboço incompleto em cima da bancada da cozinha, eu não iria mais tentar. Era uma perda de tempo.
Mas, não consegui ficar longe, alguns minutos mais tarde, estava sentado ali, detalhando o que lembrava do cachorro. Quando o desenho estava enfim pronto, apontei o lápis e me preparei para começar a esfumá-lo. Trabalhei com esmero por horas, usando todas as técnicas que não utilizava há anos.
Quando por fim pude contemplar o resultado de meu trabalho, não soube como me sentir. De qualquer forma, tirei uma foto do desenho e encaminhei para Alex.
Foi quando uma sensação de orgulho começou a crescer em meu peito. Aquele era o primeiro passo, e eu tinha conseguido.
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