Primeiro Passo - A Intervenção
Uma fresta aberta da cortina permitia que a luz entrasse em minha sala, iluminando o suficiente para que eu conseguisse caminhar até a porta, onde a campainha soava sem parar. Senti uma lágrima escorrer de meu olho esquerdo, passei a mão de qualquer jeito para limpá-la, já que estava sem o lenço que usava para essa situação.
Eu tentei ver através do olho mágico, praguejando em seguida por ter usado o olho esquerdo. Já fazia quase um ano desde que perdi a visão desse olho naquele maldito acidente, e ainda não tinha me acostumado. Eu decidi abrir a porta de uma vez, torcendo para não ser algum vendedor irritante.
— Alex... Eu não te esperava — Eu franzi o cenho ao encontrar meu amigo do lado de fora, com uma expressão impaciente.
— Você me esperaria se não tivesse desligado seu celular — Ele respirou fundo, entrando em minha sala antes de ser convidado — Porque essa escuridão? Já passa do meio dia.
— Eu estava dormindo — Eu murmurei — Os Spencer não paravam de me ligar, por isso desliguei o celular.
— Eles estão preocupados! Pensaram que você tinha morrido — Ele murmurou, abrindo as cortinas, deixando a luz entrar.
— Infelizmente ainda não — Voltei a me jogar no sofá, estreitando os olhos por conta da claridade inesperada — Eu terminei os desenhos, você pode levar.
— Oliver, eu acho que essa história de você passar a trabalhar de casa não foi uma boa ideia — Ele suspirou, se sentando ao meu lado.
Mais uma vez aquela conversa… Desde a morte de Lizzy, todos decidiram que sabiam o que era melhor para mim.
Quando resolvi trabalhar em casa, tentaram me convencer de que seria melhor permanecer no estúdio. Mas eu não suportava o olhar de curiosidade e pena de todos ali.
— Eu tenho feito meu trabalho, Alex — Eu murmurei — Sempre entrego meus desenhos no prazo e...
— Sim, entrega no prazo e não sai mais desse apartamento! Oliver, eu andei falando com a mãe da Lizzy. Ela contou que você tem feito até as compras do mês pela internet!
Ele não pode apenas pegar os malditos desenhos e me deixar dormir!?
— Onde você quer chegar, Alex?
— Você acha que essa era a vida que Lizzy queria para você? Oliver, olhe pra mim!
Eu o encarei com raiva, porque ele precisava envolver minha esposa nisso?
— Lizzy está morta, Alex. Deixe-a fora disso — Eu rosnei.
— Ela está morta, mas enquanto estava viva, te amava mais do que tudo — Seu tom adquiriu um aspecto duro — Se ela pudesse te ver hoje, o que pensaria? Como se sentiria?
Eu voltei a desviar o olhar, sendo pego em cheio por suas palavras. A tristeza que ameaçou me abater foi substituída por raiva, como ele ousa agir como se soubesse o que minha esposa sentiria ou não!?
— É melhor você ir embora, Alex. Os desenhos estão em cima da mesa — Eu me levantei, decidido a encerrar de vez aquela conversa.
— Eu também amava Lizzy. Oliver, ela era como uma irmã para mim e eu fiquei arrasado com o que aconteceu — Ele permaneceu imóvel — Mas eu não posso te perder também!
Eu caminhei até a janela, evitando seu olhar. Ele não compreendia o que eu sentia, perder minha esposa acabou comigo. Não sobrou nada. Não posso me recuperar de algo assim.
— Eu sei que você está sofrendo, Oliver, mas...
— Mas o que, Alex? Você tem alguma fórmula mágica para acabar com minha dor? — Eu virei para ele, sentindo outra lágrima escorrer de meu olho esquerdo — O que você pode saber sobre isso? Você e a Camille estão bem.
— Eu não entendo, Oliver. Mas sei que você precisa de ajuda. Você consegue negar isso? — Ele se aproximou de mim.
Não, eu não podia negar.
Sei que quando Lizzy morreu, eu parei de viver. Mas como continuar, quando a mulher que eu prometi amar eternamente se foi?
— Você precisa recomeçar, Oliver — Ele insistiu — Lizzy gostaria disso, e eu posso te ajudar. Mas você precisa querer.
Alex caminhou até a mesa, apanhando o envelope com os desenhos para levar ao estúdio. Eu fiquei parado ali, observando-o partir.
Ele tem razão?
Eu tomei um banho, decidido a esquecer aquilo, mas as palavras de Alex recusaram-se a deixar minha mente. Quando dei por mim, estava parado na frente da porta do armário de nosso quarto. Eu o abri, observando todas as roupas e pertences de Lizzy ainda organizados, como ela os deixou. Eu passei a ponta dos dedos em um tecido vermelho, fixando meu olhar ali.
— Eu estou bonita com esse vestido? — Lizzy sorriu, indo até o sofá onde eu estava sentado a aguardando.
Era nosso aniversário de casamento. Exatamente há um ano eu havia dito "sim" diante de todos aqueles que eram importantes para nós. Ela estava deslumbrante em um vestido vermelho, tinha cortado o cabelo e feito uma maquiagem especial para nosso jantar.
— Valeu a pena cada segundo que eu esperei — Eu sorri ao me levantar — Vamos, eu tenho algumas surpresas planejadas.
Eu pisquei, desviando o olhar depressa, me sentindo atordoado por aquela memória. Se eu soubesse que toda aquela felicidade terminaria de maneira tão trágica…
Eu bati a porta do armário, tentando me afastar das lembranças. Caminhei até a janela, observando o movimento do mundo do lado de fora. Faz quanto tempo que eu não saio desse apartamento? Algumas semanas, talvez?
Eu virei o rosto, observando o porta retrato que ficava ao lado da minha cama. A foto havia sido tirada no dia de nosso casamento. Lizzy e eu estávamos sentados juntos, com uma roseira branca ao fundo. Lizzy estava exuberante vestida de noiva, mas ao invés de me concentrar naquela imagem, foi outra memória que tomou conta de minha mente.
— Vamos querido, eu sei que você pode prestar atenção em mim por um segundo — A voz de Lizzy chamou minha atenção, eu ainda olhava para Alex após seu discurso de padrinho.
Eu não esperava que ela decidisse fazer um discurso em nosso casamento, isso geralmente era reservado para o padrinho e madrinha. Quem sabe o pai dela. Mas vê-la em pé junto ao vocalista da banda, segurando a taça de champanhe com um sorriso no rosto, tirou completamente meu fôlego.
— O que é isso, Lizzy? — Eu sorri me aproximando.
— Como o padre insistiu nos votos tradicionais, eu decidi ler aqui o que preparei para você — Ela piscou segurando um pedaço de papel.
— Lizzy... — Eu tentei impedí-la, percebendo que não tinha preparado nada para ela.
— Silêncio, meu bem — Ela sorriu, se preparando para ler — Oliver, eu não posso acreditar que depois de toda a nossa história, nós finalmente chegamos aqui. Há dois anos, quando você me encontrou chorando naquela festa, você me confortou. Naquele momento eu pensei ter encontrado um amigo, mas encontrei muito mais do que isso, eu encontrei tudo o que busquei a vida inteira. E aqui, nesse momento eu quero prometer a você, que passarei cada segundo da minha vida, me dedicando à sua felicidade. Porque eu sei que enquanto você estiver feliz, eu também estarei, não importa o que aconteça.
Ela ergueu seus olhos do papel, se focando em meu olhar. E eu estava ali, parado no meio do salão sem reação alguma, eu não sabia o que fazer para expressar o que sentia.
— Oliver, faz alguma coisa! — Minha irmã Marissa gritou ao fundo.
Eu segui até onde Lizzy estava aguardando alguma resposta, envolvi sua cintura com meus braços, e a ergui até que seus pés estivessem completamente fora do chão.
— Se a sua felicidade depende da minha, então você deve estar muito feliz — Eu declarei em alto e bom som — Porque eu tenho absoluta certeza, de que não existe ninguém mais feliz do que eu nesse momento.
Eu peguei a fotografia em minhas mãos, com as lágrimas correndo livremente pelo meu rosto, dessa vez de ambos os olhos.
Alex tem razão? Eu deveria seguir em frente com minha vida? Lizzy gostaria disso?
A grande questão, é que eu não faço a menor ideia de como fazer isso. Ela era a minha vida e se foi, como posso seguir em frente?
Os dias seguintes foram uma tortura, eu tentei de todas as formas esquecer o que Alex dissera, mas parecia impossível.
Por fim, me peguei parado no meio da sala com meu celular em mãos.
— Não pensei que teria notícias suas — Alex atendeu depressa.
— Como você pode me ajudar? — Eu murmurei, um pouco desconcertado.
— Então você mudou de ideia.
— Alex, você disse que pode me ajudar, mas eu não sei como — Eu respirei fundo, resistindo ao desejo de desligar o telefone.
— Eu pesquisei sobre grupos de apoio para pessoas em luto — Ele explicou — Acho que poderia te ajudar.
— Um grupo de apoio? Essa é a sua ideia mirabolante? — eu revirei os olhos.
Por um momento, eu cheguei a pensar que ele tivesse como me ajudar a seguir minha vida, mas tudo o que ele tem é um grupo idiota.
— Oliver, eu não tenho nenhuma pretensão de dizer que sei como você se sente, mas essas pessoas sabem — Ele insistiu — Existe um desses grupos perto do estúdio, e eu pensei.
— Você enlouqueceu? Eu não vou a nenhum lugar que eu possa ser reconhecido — Eu o cortei — Eu... eu vou desligar, Alex.
Aquilo foi uma grande perda de tempo!
— Tudo bem, Oliver. Eu tenho outra proposta — Ele me interrompeu.
— Qual?
— Você pode continuar a trabalhar em casa — Ele começou — Mas não nesse apartamento.
Ele enlouqueceu se pensa que vou comprar uma casa em qualquer outro lugar da Philadelphia.
— Eu não...
— Me deixe terminar — Ele murmurou — Oliver, você precisa de um tempo. Eu estive pensando... Você pode alugar uma casa em outra cidade, conhecer pessoas novas. Você ainda desenha por prazer?
Eu fiquei sem palavras, pensando no que ele estava sugerindo. Eu nunca consegui seguir em frente, principalmente porque todos os lugares desse apartamento e dessa cidade me lembravam Eliza, mas também nunca pensei em sair daqui.
— Nós podemos lhe dar alguns dias de folga para se ajustar. Talvez você possa ir para algum lugar que tenha belas paisagens, você gostava de desenhar essas coisas na faculdade — Ele lembrou — E eu pesquisei e descobri que esses grupos de apoio existem em vários lugares e..
— Pare de falar — Eu pedi, fechando os olhos.
Eram muitas informações de uma vez, eu me sentia tonto com tantas possibilidades. Um lugar novo? Deixar toda a minha vida para trás? Sem olhares de pena daqueles que sabem sobre o acidente?
— Foi apenas uma sugestão, Oliver. Você...
— Eu te ligo mais tarde — Tomei minha decisão.
— Então esse foi o local que você escolheu? — Alex perguntou enquanto dirigia pelas ruas de Cape May.
— Me pareceu um lugar adequado — Eu dei de ombros, observando os grandes sobrados vitorianos que enchiam a rua.
Não sei exatamente o que me atraiu para essa pequena cidade no litoral de New Jersey. Mas ao ver as fotos do lugar, o ar que exalava tranquilidade, de alguma maneira a cidade me atraiu. Eu soube que se houvesse algum recomeço para mim, seria ali.
— Apenas imaginei que você escolheria uma cidade mais parecida com a Philadelphia — Ele comentou.
Eu não pude ver seu rosto, pois estava do meu lado esquerdo, mas soube que ele estava sorrindo.
— Você disse que eu precisava de uma mudança, eu concordo com você — Eu murmurei em resposta.
— Não se esqueça do que você me prometeu — Ele me advertiu.
— Eu não esqueci. Já falei que vou cumprir minha promessa — Meu olhar foi atraído por uma grande casa no início da rua em que eu moraria.
Era um grande sobrado branco com detalhes em azul escuro, aquela casa se destacava bastante das outras da rua. Certamente uma grande família vivia ali. Alex estacionou o carro em frente a uma casa relativamente menor, ela era marrom e ficava no fim da rua, bem perto da praia.
Não, eu não estava sendo justo. A praia era praticamente o meu quintal.
— Você soube escolher — Ele comentou saindo do carro — Vou te ajudar a levar as malas pra dentro, você está com a chave?
— Estão aqui — Eu garanti, as tirando do bolso — Eu vou ficar bem sozinho, Alex.
— Você já sabe quando será a próxima reunião? — Ele se encostou no carro, cruzando os braços enquanto eu apanhava as malas no porta carro.
— Eu estarei lá, Alex. Não se preocupe — Eu respirei fundo.
— Estou apenas confirmando — Ele deu de ombros — Eu te ligo na sexta à noite, para saber se você realmente compareceu.
Antes que eu pudesse responder, Alex entrou no carro e partiu, me deixando ali com as malas na calçada de minha nova casa. Eu respirei fundo, olhando em volta. Estava prestes a anoitecer, e algumas pessoas que caminhavam pela rua me lançavam olhares curiosos, em especial uma jovem mulher, que estava sendo arrastada por dois São Bernardos presos a uma coleira que ela em vão tentava controlar.
Eu me senti deslocado, não queria ser o centro das atenções, então decidi entrar na casa de uma vez. O imóvel estava totalmente mobiliado, de forma que levei apenas minhas roupas. Eu deixei as malas na entrada e caminhei pelo andar inferior da casa, observando cada cômodo com atenção. Era um belo lugar, Lizzy teria gostado.
Segui até um dos quartos, decidindo em qual eu me instalaria. Já no fim da tarde, eu guardei alguns mantimentos que comprara no caminho, ocupando o fim da minha terça feira. Eu planejava sair no dia seguinte pela manhã para conhecer a cidade, mas naquele momento pensei no que Alex tinha me sugerido. Fazia muito tempo que eu não desenhava por prazer, desde antes do acidente que tirou minha esposa de mim.
Quando eu estava na faculdade de artes, eu adorava desenhar. Desenhava paisagens, pessoas, lugares. Mas com as obrigações da vida de recém formado, eu acabei deixando de lado esse Hobby e desenhando apenas o que o estúdio encomendava.
Mas, se eu estava tentando recomeçar, talvez devesse começar por isso.
No início não foi nada demais, eu apontei um lápis com esmero e separei uma folha de papel para desenho. Mas ao contrário do que pensei, aquilo não foi fácil, eu passei vários minutos encarando a folha sem saber o que fazer a seguir. Acabei desistindo, e abandonando a folha em cima da bancada da cozinha.
Eu estou quebrado.
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