Capítulo 18 _ Allysson


Eu sou um idiota.

E um lesado.

E realmente, realmente, não presto atenção no que faço.

Como por exemplo, aqui e agora.

Agorinha mesmo.

Em um momento eu, Renan e os outros estávamos conversando sobre como a professora de matemática avançada foi sacana com Lucas.

Ele respondeu uma questão, e ela disse estar errado. Ele pediu a ela que explicasse a forma correta e ela foi até o quadro demonstrar, chegou uma parte na resolução dela em que ela errou e isso iria dar o resultado todo errado. E ele apontou isso explicando que com esse erro a conta dela estaria toda errada e o resultado que ele chegou foi o correto.

A professora corrigiu esse erro, e terminou de resolver a conta percebendo que sim, o resultado de Lucas estava correto.

E por isso, e só por isso, ela o deixou como castigo resolver uma lista extensa com mais de 35 exercícios. Todos com um texto enorme e que precisam ser milimetricamente — palavras do Lucas — pensados. Tudo para resolver no outro dia. Valendo a nota da prova que ela daria. 

E essa prova vale cinquenta por cento da nota final.

E graças a isso Lucas teve que perder o treino de futebol. E é claro que o treinador não levou isso numa boa, e ele foi rebaixado a reserva até segunda ordem. Bom, o treinador logo, logo vai mudar de ideia, porque o Caleb está longe de ser tão bom volante quanto o Lucas, mas ainda é injusto.

O tempo curto para fazer, a quantidade de questões e a dificuldade delas.

Tudo injusto.

E Lucas foi falar disso, e ela disse que se ele gostava de bancar o fodão era melhor começar a ser um.

Tudo isso porque ele disse que ela estava errada.

Ok, que foi na frente da classe.

Ok, que alguns alunos riram e outros desdenharam e zombaram dela.

Mas que culpa o Lucas tinha?

Ela apontou um "erro" dele e ele não estava errado e não podia corrigir?

Marcus acha que Lucas deveria ter falado com ela depois da classe, para ninguém ficar zoando ela. Renan acha que foi mais do que justo, já que ela chamou a atenção de Lucas na frente de todo mundo.

Eu nem sei o que dizer porque eu nem sei o que eu faria no lugar.

Primeiro que nem responder você ia conseguir.

Falo a mim mesmo, e é verdade, eu não ia conseguir responder.

Na verdade nem nessa aula tu se inscreveria.

Bom, esse é outro ponto. E é um fato. Que nem eu ter alergia a matemática, mais até do que a amendoim.

Bom, ok, eu não tenho alergia a matemática.

Mas queria ter.

Porque é muito injusto cara.

Tipo, eu sempre quis provar amendoim e tooodooo mundo diz que é gostoso, mas eu não posso, e eu quero. Mas eu não quero ver matemática, não quero pensar ou fazer matemática, e todo mundo me obriga a engolir.

Ninguém me obriga a engolir amendoim. Porque eu morreria. Menos daquela vez que eu fui para casa do meu pai e ele achou que eu estava sendo fresco e me fez comer.

Dessa vez eu quase morri.

Cara dá para pensar nisso? Eu quase morri! É tipo muito legal!!! Eu sou tipo um sobrevivente... hei! Eu já comi amendoim! E quase morri fazendo isso, mas já comi. Então não posso dizer que nunca provei e isso é tudo que importa... ou seria, se eu conseguisse ao menos recordar o gosto.

Tudo o que eu lembro daquele dia só remete ao sabor de dor, inchaço, sufocar sentindo o gosto do meu próprio sangue. Ah! E dor.

Muita, muita, muita dor.

O que é uma completa droga por que assim eu teoricamente não provei. O que, de novo, é uma droga, principalmente quando se trata de cozinhar e as pessoas usam esse ingrediente.

Além disso, pelo visto terei vontades eternas de comer uma paçoquinha.

Enfim, onde eu estava?

Ah sim, o que me trouxe até aqui.

No fim, Marcus e Renan concordaram que aquilo foi uma puta sacanagem com Lucas, independentemente do que o Lucas deveria ou não fazer.

E eles decidiram se vingar.

E a empolgação deles me contagiou. Muito, muito, muito.

E agora estou aqui.

Frente ao prédio onde fica o dormitório da senhorita Linda. E prestes a colocar uma bomba caseira de brilho e som na cama dela.

Que merda, né?

— Cara, vamos mesmo fazer isso?

O que eu quis dizer foi: Temos mesmo que fazer isso?

— Que foi baixinho? Cê não é de arregar. — Marcus pergunta sem nem mesmo levantar o rosto, muito concentrado em dar "os últimos toques" na sua granada.

— É? O que foi que aconteceu? — Renan engrossa a voz e me encara desconfiado.

De uns dias para cá ele tá daquele jeito.

— Eu só não quero que a gente se meta em problemas.

— Três dias atrás você e eu pulamos o muro para buscar cachaça. — Renan fala, revirando os olhos para mim.

— Mas e se a professora se machucar?

— Não foi você quem fez a pegadinha do afogamento com os calouros? — Lucas questiona pelo celular.

Contenho a vontade de apertar o botão de desligar. Pra ele aprender a deixar de ser intrometido.

Mas a questão é que precisamos do Lucas aqui, não exatamente aqui, porque seria dar carta branca para qualquer acusação. Mas ele precisa acompanhar tudo, então ele ficou no dormitório e eu responsável por mantê-lo conectado pela ligação de vídeo.

— Bom, sim, mas já mudei.

— Ninguém muda tanto assim Allysson.

Renan e Lucas falam ao mesmo tempo em que Marcus solta:

— É o amooorrr, que mexe com a minha cabeça e me deixa assim...

— O quê? — Eu e os outros falamos todos juntos.

— Vocês são idiotas ou o quê? Desde que Allyzito ficou junto do Petrov, ele começou a parar de se arriscar.

Nem ao menos tive tempo de me responder a acusação à altura, quando Renan agarrou meu ombro e me empurrou contra a parede. Me forçando a encarar seus olhos que estavam no puro ódio.

— É por causa daquela merdinha, Ally, sério?

Renan sabe muito bem da minha, humm... quedinha por Maksin. E ele nunca gostou disso, mesmo concordando que Petrov é um fodido pedaço de mal caminho. E, ultimamente, ele faz questão de reforçar cada dia mais seu desgosto por meu colega de quarto.

E eu entendo completamente ele não simpatizar com Maksin. Mas ele sabe o quanto eu odeio ser tratado do jeito que ele está fazendo agora mesmo.

E sem mais, agarro a mão de Renan e a jogo para o lado, respondendo seu olhar na mesma altura e intensidade. Mesmo que minhas entranhas estejam num nozinho de, de, de... daquele sentimento de quando a gente sente algo ruim, não é medo, mas também não é legal é tipo, tipo sei lá...

— Allysson! — Renan me encara de braços cruzados esperando uma resposta.

— Angústia!

— O quê? — Ele e Marcus falam juntos, os dois me encarando com aquele outro sentimento lá...

— Deixa queto, o que eu ia dizer é que o Maksin não tem nada a ver com isso.

— Não? — Renan ergue as sobrancelhas com dúvida e sarcasmo. —Porque aquele dia que ele foi nos "socorrer", vocês pareciam muito próximos.

— Ele só estava fazendo o que ele tinha para fazer como presidente do grêmio, Renan. — Falo irritado com toda essa pegação no pé. — E quando a professora teve que pedir desculpas na frente de toda a turma bem que gostou, né?

— Não é disso que a gente está falando.

— Mas é disso que eu estou falando.

Peito a peito, parecíamos dois pombos naquelas brigas erradas que o povo gosta de ver.

— Ô, vocês dois parem com o flerte porque a gente tem coisa para fazer. — Marcus ordena, aos sussurros, separando nós dois.

— Não sabemos se o Allysson quer fazer. — Renan responde, ríspido, me encarando magoado.

— Eu estou aqui não estou?

— Está mesmo? — Ele questiona, e sei que vai além do que estamos prestes a fazer. Ele questiona minha amizade, minha lealdade, e dessa vez quem se chateia sou eu.

— Ei, Renan! — Marcus repreende com dureza, o empurrando para leva-lo para longe de mim.

Por sobre o ombro me lança um olhar preocupado, mas logo se volta para Renan e sei bem que ele está dando uma "bronca" nele, o que me irrita. Meus amigos me tratam como se eu fosse mais frágil que uma boneca de porcelana.

— Não faz essa cara Ally. — Lucas fala através do celular. — Renan só está com ciúmes.

— Ciúmes?

— Claro, todos estamos. — Ele fala e seu tom de voz muda para um irritado. — A princesinha do grupo está sendo corrompida.

— Corrompida como? E princesinha do grupo é minha bunda.

— E que bunda meu amigo, e que bunda.

— Vai se foder, Lucas!!!

— Se for com a sua bunda eu...

— Para de falar sobre a bunda do Ally. — Marcus já chega pegando o telefone da minha mão. — Mesmo que esse seja um assunto agradável, ela é só minha.

— Quem disse que é sua? — Renan ri entrando na brincadeira. — Mas, realmente, é um assunto agradável.

— Muito, muito, muito agradável.

— Como eu odeio vocês. — Solto com falsa irritação. — Mas não posso culpa-los, minha bunda é realmente agradável.

Isso arranca risadas de todos, até mesmo de Renan que parece não estar tão chateado como antes.

O que já é um alívio, não quero ficar brigando com meu melhor amigo, só porque ele odeia o cara que eu gosto.

Que eu gosto.

Que eu gosto.

Maksin nunca, jamais, poderá saber disso. Ele arrancaria minha cabeça, e chutaria para longe como se fosse uma bola. E assim não poderíamos ser amigos.

Quer dizer, apesar de ele ter aceitado meu pedido de amizade, sei que não somos amigos. Ninguém se torna amigo de outra pessoa assim do nada. Principalmente se você odiou aquela outra pessoa durante muito, muito, muito, muito, muito, muito... muito, muito tempo.

Estamos começando a amizade e, qualquer coisa, absolutamente qualquer coisa, poderia estragar isso. E é claro que eu vou justamente tacar um granada numa professora.

Nem sei quantas regras vou quebrar fazendo isso, porra, é capaz de eu estar cometendo a merda de um crime.

Um crime!!!

Um pigarro, acompanhado de um soco, me faz voltar a realidade.

Uma péssima realidade.

No que eu fui me meter?

— Ok, vamos relembrar tudo. Sem falhas. — Renan inicia, me encarando pelo canto do olho. ­— O Marcus e eu vamos subir, Allysson vigia. Lucas, imagino que já terminou de hackear a câmera principal?

— Só me dar um sinal e ela será automaticamente desligada.

— Ótimo, quando a bomba explodir um rebuliço será causado, não podemos ser pegos. Marcus e eu vamos para o porão e sairemos por lá, Allysson fique em cima da árvore e tente ir o mais despercebido possível, precisa abrir o alçapão.

— A chave? — Peço já estendendo a mão.

— Essa é uma cópia, não perca. Entendeu? — ele mostra a pequena coisa de metal, antes de apertá-la contra minha palma e segurar por mais tempo que o devido.

Sei que o que ele quer dizer com esse gesto é: Conversaremos mais tarde?

E como resposta, para ambas perguntas, aceno positivamente.

— Ótimo! Todos os dias no mesmo horário a professora volta ao dormitório, faltam exatos cinco minutos para isso, Marcus e eu subiremos. Allysson, para a árvore, Lucas as câmeras.

E assim que o pontinho vermelho da câmera para de piscar, Renan e Marcus escalam a lateral do prédio, subindo ao terceiro andar em um pulo.

Eu não entendi a princípio o porquê de eles escalarem para subir e não fazer o mesmo para descer, mas Renan me explicou tudo. Nesse horário a maioria dos professores estão jantando, porém há algumas exceções.

A professora de matemática é um exemplo, pois ela está terminando o jantar e voltando ao dormitório. E outro exemplo, são os professores do segundo andar que, nesse momento, estão saindo da partida de carteado e indo ao refeitório. Seria arriscado se encontrar com eles na porta principal, portanto não é um caminho viável.

Na volta, além de ser mais perigoso descer do que subir o parapeito de um prédio. Também é nesse momento que a professora estaria vindo e ela poderia vê-los descendo, logo os acusaria. Assim que eles seguirão por dentro, num caminho rápido que decoraram a partir das plantas do local, sem que passem por ninguém no processo.

A minha curiosidade é: Como??

Se Lucas é a porra de um hacker, Marcus consegue construir granadas, e Renan calcular a altura do prédio com base na sombra, além de montar trezes novos planos para cada variável que possa fazer algo dar errado. Então como, como eles conseguem a proeza de serem apenas medianos com as notas?

Quando eu falo que meus amigos são inteligentes, ninguém acredita. E ainda assim, a maioria das pessoas não consegue fazer metade do que eles fazem.

Porra? Como calcula a altura de um prédio com base na sombra dele? E porque ninguém se deu o trabalho de colocar a porcaria da altura do maldito prédio na maldita planta?

Meu celular brilha nesse momento, com uma mensagem curta de Renan: A bomba já está no quarto.

O que queria dizer, de acordo com o que ele tinha me dito, que em exatos dois minutos eles estariam no porão. Minha função agora é esperar a professora entrar para só então descer.

Usando o binóculo que me foi dado e me sentindo o Super Bond por isso. Aquele dos filmes de ação antigos.  Vejo, ao longe, a professora caminhando pela trilha.

Impossível não reconhecê-la naquele casaquinho ridículo, as calças formais e os cabelos castanhos presos num coquinho sem graça. Ainda assim, ajusto a visão dos binóculos que me foram dados, para poder ter certeza.

É ela.

A bomba explodirá em cinco minutos.

Mas aí.

Aí.

Surge uma dessas variáveis que o Renan falou. Só que para essa ele não estava preparado. Imagino que sequer tenha suposto que poderia acontecer.

Em todo seu esplendor, surge Maksin Petrov. E para a professora no meio do caminho. E ao mesmo tempo, meu coração.

Que congelou no fodido tempo. Assim como meu corpo.

E na minha mente só passava uma clara imagem, nos estilos de desenhos animados antigos:

R.I.P Allysson Gonzales.

Aqui jaz um idiota que foi seguir os amigos e tomou no cu legal.

Com as mãos tremendo pelo medo, observo através das lentes do binoculo Maksin e a professora conversando amigavelmente. Sinto meus joelho fraquejarem, imploro aos céus que seja uma conversa breve e que ele esteja o mais longe possível daqui quando a granada cumprir a que veio.

Quero evitar qualquer confusão com ele.

E isso vai além da amizade que acabamos de ter. É uma questão de saúde física mesmo.

Mas também é claro que só de imaginar perder a amizade dele me traz, me traz... aquele sentimento lá.

Eu sabia que Maksin era inteligente, que era forte, formal, bonito pra cacete, um ótimo ator, que joga futebol pra caralho, que é bom em tudo que se dedica.

Disso eu já sabia, o que eu não sabia é o quão bom é não ser "inimigo" dele. O quão legal ele é, e preocupado, e bom ouvinte. E ele é tão... demais.

Se ele descobrir que estive envolvido nisso. Não seremos mais amigos. E se a professora for alguma coisa para ele, então... bem R.I.P Allysson.

A vibração do meu celular me devolve o foco. É o Lucas. Com o corpo ainda gelado, atendo no automático.

— Allysson, a professora já entrou? Você não avisou.

— A professora não entrou... Maksin está conversando com ela.

— Maksin? — Ele quase solta um grito.

Um segundo depois Renan se une a ligação.

— Maksin está com a professora?

— Sim.

— Merda!

— E agora?

Ele fica alguns instantes em silêncio, ponderando consigo mesmo.

— Se dermos sorte ele vai enrolá-la o bastante para que ela fique ali até a bomba estourar.

— E se não?

— Com a síndrome de super-herói que ele tem, no momento em que ouvir o barulho ele vai voltar correndo pra ajudar. Nessa hora você corre e vem até nós.

— E a câmera?

— Ainda está desligada. Boa sorte, Ally.

E dito isso, encerra a ligação. Já Lucas, permanece na linha sem falar nada. E eu tento usar toda e qualquer energia para me manter na árvore, o que não é fácil já que meu corpo fica cada vez mais mole a cada segundo.

A lembrança vem como se fosse aqui e agora o momento.

Impulsionado por meus "superiores", esfrego a cara daquele menino irritante na merda, ele vomita, mas novamente o forço de novo. Eu o odiava, ele foi um dos que tinha tornado minha vida um inferno em outra época. Podia me sentir cada vez mais satisfeito o fazendo engolir aquilo da mesma forma que ele me maltratava anos atrás.

Eu vi como ele começou a se urinar de medo, mas estava mais do que vingado com isso. Eu também havia me urinado quando ele e seu bando abriram um bueiro e me lançaram lá dentro, e só fui resgatado quando uma professora deu falta de mim e um deles arregou e contou o que fizeram. Mas já havia passado três horas.

Três horas na escuridão, no fedor, tão amedrontado que fui incapaz de soltar um som sequer. E com o tornozelo quebrado pela queda, de maneira que nem pude tentar fugir por mim mesmo.

Alguns diriam que era completamente normal a vingança, aliás quando contei essa história meus amigos que tiveram a ideia de tudo. A princípio recusei, mas depois descobri que não tinha o direito de recusar uma ordem direta deles, e tive que fazer de todo jeito. Mas no processo eu acabei... exagerando. Tudo pela vingança.

O problema era que, na mesma dose em que eu "melhorei" para me tornar o mais malvadão, aquele que ninguém ia implicar, aquele cara tinha mudado para melhor. E fez o amigo certo que apareceu na hora certa.

E eu?

Naquele momento eu experimentei na pele os boatos do que Maksin Petrov era capaz de fazer numa briga. Para nunca mais.

Se depender de mim.

Então, é completamente compreensível eu estar com medo.

— Justificativas, apenas. — meu subconsciente fala comigo, me debochando.

Não é justificativa, é um fato, eu sou fraco, somos fracos. — Rebato, indignado comigo mesmo.

— "Nós" é muita gente, somos a mesma pessoa. Eu sou seu lado racional que te mostra o tipo de imbecil que você é.

— Se você é você e eu sou eu, mas nós não somos nós porque nós somos eu. Então somos eu, mas não nós e eu estou falando sozinho?

— Você é um idiota, eu sou só seu pensamento inconsciente do quão idiota você é, mas pensamentos não são pessoas, e eu não sou você. Mas você sou eu, e eu também faço parte de você, o que deixa tudo num círculo, pois se eu sou eu e você tem eu, então nós somos um eu... e quer saber? Deixa para lá que não estou entendendo nada.

— Mas, se você é burro e eu também, mas somos eu. Então só sou eu, e eu. Talvez eu só seja burro por dois?

— Por dois? Sua burrice pode ser elevada a quatrocentos!

E essa é a conclusão válida.

Às vezes, quando não consigo raciocinar, gosto de falar comigo mesmo ou inventar situações na minha cabeça de coisas que nunca vão acontecer, mas imagino ainda assim como agiria nelas e...

Pera!

Cadê o Maksin?

Querendo me estapear por meu descuido, o procuro através da lente do binóculo, desesperado, e o encontro perto da porta que dá acesso ao dormitório ainda junto a professora. Os dois permanecem conversando o que me traz alívio, e ao mesmo tempo curiosidade, afinal dado o tempo que passou aquela granada já não deveria ter explodido...

Um barulho alto e agudo soa, quase me fazendo cair da árvore, o que só se agrava quando um brilho cegante atravessa a janela do dormitório da professora, me deixando enxergando apenas pontinhos brilhantes.

A granada explodiu.

E sinto meu coração gelar quando, do mesmo quarto, um som ainda mais intenso e profundo que o da própria granada se faz ouvir. Só que dessa vez é óbvio que vem de um grito. Um grito agoniante, de dor. Muita dor.

Tinha alguém no bendito quarto. E essa pessoa se machucou.

Quando vi Maksin correr, com o rosto retorcido em aflição e tão desesperado quanto a professora que seguiu bem atrás dele, mal contive o vômito que se formou na minha garganta.

Já podia ouvir o som fúnebre, sentir o cheiro adocicado das flores e ver as velinhas queimando.

Quem quer que estivesse naquele quarto, tem um vínculo emocional com Maksin Petrov.

É oficial.

Com dezenoves anos de idade, Allysson Gonzales é um cara morto.

Mortinho da silva.

— Quem gritou, Allysson? — Lucas questiona.

— Não sei, veio do quarto, a professora não tinha subido ainda e... 

— Não importa. Desça, agora.

Obedeço de forma lânguida. Lânguida... Outra palavra que aprendi com Maksin, tive que procurar no dicionário para saber o significado, e foi interessante. Agora toda vez que vou fazer um movimento lento, acabo falando lânguida por ser mais chique.

Agora estou me sentindo mais chique e...

Sinto a dor atravessar minha coluna quando escorrego na casca da árvore, por ser uma anta distraída com lânguido, e caio de bunda no chão. Num reflexo rápido, me escondo o mais ligeiro possível nas sombras que as árvores formam.

Veloz o suficiente para quem quer que tenha surgido na janela não me veja.

Segundos depois vejo a sombra da pessoa que foi na janela sumir. Por longe escuto mais e mais passos apressados que vão na direção do quarto onde tudo ocorreu. Meu estômago pesa, meus instintos me deixam mais do que alerta. 

Caso eu não saia logo dali vou ser descoberto. E meus amigos também.

A ansiedade faz meu corpo todo tremer e suar, posso sentir tudo quente e frio o mesmo tempo. Tento acalmar minha respiração, sem sucesso, que permanece cada vez mais rápida e profunda. Como se todo o ar do mundo não fosse capaz de preencher a porcaria dos meus pulmões. De quebra, sinto meu peito disparado, chegando a ser doloroso, meu coração batendo tão forte que consigo escutar o som.

Apenas quando sinto o gosto metálico de sangue, volto a me situar no mundo real. Balanço a cabeça fortemente, tentando me concentrar. A dor de quase ter arrancado um pedaço da minha língua ajuda bastante.

— Ok, ok. — Murmuro comigo mesmo, engolindo o sangue que jorra sem parar dentro a minha boca. — Vamos ser racionais, racionais, racionais, racionais, racionais.

Eu não sou racional.

— Racional, racional, racional, racional, racional, racional, racional, racional, raio... Lucas. Sair daqui. Renan. Chave.

Sentindo todos os arranhões que deixo no meu corpo enquanto procuro desesperado pela maldita chave, tento lembrar a mim mesmo o motivo por eu estar aqui. E aquela frase que Yuki sempre dizia a mim veio à minha mente: Se Renan pular de um fodido penhasco você iria atrás?

Pelo visto sim.

Vou me aproximando aos poucos da borda da árvore. Quando vejo que não há ninguém prestando atenção na direção onde estou, começo caminhar pela lateral, sem sair da proteção das grandes copas, indo para mais ao fundo do prédio.

Com os binóculos vou acompanhando de perto toda a merda que fizemos, e quando a sirene da ambulância soa. Percebo o quão longe chegamos. E o medo das consequências me faz disparar em direção a porcaria daquele porão.

A mesma palavra. As mesmas vozes me acompanham.

— Covarde. — Maksin me falara uma vez.

Pelo visto, isso também. 

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