Capítulo 13 - Maksin
Podia, de alguma forma, sentir ou saber, não tenho certeza, que meu corpo estava tremendo.
Não sabia o que alguém pensaria caso me visse, mesmo que quisesse não poderia imaginar, o pequeno fio de lucidez ainda muito fraco em relação a névoa mental do sono aprofundado.
Era óbvio que eu estava sonhando, quando se vive repetidas vezes o mesmo pesadelo é facílimo decorar tudo que acontece nele. Todos os passos e lugares. E mesmo que pareça que eu possa ter certa autonomia na minha própria cabeça, que posso controlar a redundância, ou até mesmo decidir interromper esse sonho... Isso é uma ilusão.
Esse é o pesadelo. E em como todas as outras vezes me encontro amarrado por minha própria mente, obrigado a ser um expectador e o protagonista da minha angústia.
Sinto meu peito pesar como se, de repente, o ar no ambiente fosse rarefeito, meu estômago se contrai, levando um frio extenso que toma conta da minha espinha e ácidos se estacam na minha garganta queimando, e queimando.
Meu coração bate cada vez mais frenético e forte, quando em uma tortura lenta eu me forço a andar um passo de cada vez. Quando chego em frente a porta imaginária, mas que no momento parecia bem sólida, estico a mão e toco a maçaneta, mas não consigo girá-la, parece até que meus ossos viraram gelatina.
E apesar de isso ser um sonho estou falando realmente no sentindo figurado da coisa, meus ossos não viraram gelatina, apenas estou sem forças demais para virar a maçaneta.
Covarde demais para girá-la, por que sei o que tem detrás da porta. E não quero ver, não de novo.
Mas covardia, há muito, deixou de ser parte do meu ser, então apenas me forço a engolir o medo e o receio, engulo-os seco e eles atravessam ardendo por minha garganta. Não ligo para isso, não ligo para a dor. Respiro fundo três vezes, inspirando e expirando, em todas as três o ar entrou em meu corpo como navalhas afiadas, e saiu da mesma forma.
Rasgando. Queimando.
Podia me sentir sangrando por dentro, e por fora.
Então decidi abrir a porta, porque o que não seria mais uma pitada de desolação em um banquete de sofrimento?
E assim como das outras vezes, me arrependi amargamente de tê-lo feito.
— Maks!
— Maks!!! — a voz de Dani foi como uma nota musical em meio ao caos do silêncio, me tirando das minhas divagações.
De forma abrupta.
Muito abrupta.
Antes mesmo que minha mente se "situe" de volta, meu corpo reage e em menos de dois segundos, com um curto pulo, já estou de pé. Um barulho oco segue logo em seguida, e serve como um baque para que a tontura do sono finalmente se esvazie de mim.
— Dani. — solto um murmuro surpreso. Tardio, mas surpreso.
Pelo visto eu acabei cochilando debaixo da árvore onde antes tinha me sentado para escrever, e por falar nisso... procuro com os olhos o caderno que antes tinha em mãos, não é difícil de encontrar já que ele foi o responsável pelo barulho de antes.
Barulho... Como não ouvi Dani se aproximando de mim? Tenho o sono extremamente leve, qualquer coisinha me acorda, então ou Daniel está praticando ser ninja, ou a falta de horas dormidas finalmente resolveu me pegar de jeito. Mas não consigo saber o que me preocupa mais, a minha desatenção com o ambiente ou a ideia de que Dani possa ter dado uma olhadinha no meu caderno.
O embrulho que cobriu meu estômago responde por mim. A mera ideia de Dani, ou qualquer outro ser dessa escola, estar vendo minhas anotações me faz ter vontade de vomitar... Em cima deles.
Como sempre, meu rosto delata minhas emoções e Dani na hora percebe.
— Porque cê tá parecendo irritado, cara?
— Nada. — solto um bufar, tentando mascarar meus sentimentos com a razão, Daniel não é exatamente intrometido então provavelmente não deve ter lido nada.
— Nada? Com certeza aconteceu algo, dá pra ver na sua cara.
— Sou tão transparente assim?
— Nãoo, não exatamente...
Ergo uma sobrancelha de maneira questionadora. Por dois motivos, um lado está curioso pela resposta que ele dará e outro aliviado demais por ele nem chegar no tema da caderneta, e tentar mantê-lo assim.
— É que tipo assim, normalmente você tem a cara fechada, aí dependendo de como você se sente, ela pode ficar mais fechada ou diminuir um pouco.
— Está dizendo que estou em constante mau humor?
— Não! Na maioria dos dias você é bem humorado, só que tu não fica feliz e saltitante, ou alegre e sorridente como as pessoas normalmente fazem.
— Nossa! Isso só tá melhorando, pois prossiga. — Respondo revirando os olhos. Talvez, só talvez, um pouquinho ofendido.
— Heii! Não fale como se fosse uma ofensa, é mais tipo, tipo... uma definição!
— Você sabe como elevar o ego de alguém, hein.
— Argh! Odeio, odeio quando você é o sarcástico. — sua voz denota uma leve frustração, e ele movimenta as mãos irritado, e tentando recuperar o raciocínio, oq ue faz prontamente. — É que você é hostil.
Ergo as sobrancelhas naturalmente. Essa me surpreendeu, mesmo.
— Não hostil, tipo hostil hostil, mas hostil não querendo ser hostil e não sendo hostil, mas aparentando ser hostil, mesmo que em realidade não seja hostil. — ele fala tão rápido que chega a ofegar no final. — Entendeu?
Que você e Gonzales tem o mesmo problema para formular respostas? Sim.
Sua resposta? Não.
— Vou fingir que eu entendi, se isso vai ter fazer sentir melhor. — E parar de tentar arrumar a situação.
— Pera! Vou reformular! Sua cara sempre tá fechada aí algumas pessoas até chegam a ter medo, porque você passa uma aura de ,"fale alguma coisa que me incomode e vou te socar até a morte", ao mesmo tempo uma de, "não me importo com o que você faça, desde que não interfira na minha vida".
— Ou seja, eu ameaço as pessoas, inconsientemente.
— Não... Você é só intimidador por natureza, as pessoas tem medo e receio, mas isso é atraente na mesma balança.
— Então, eu sou atraente?
— Pare com esse tom de dúvida! Tem ideia de como é irritante quando pessoas bonitas ficam questionando se são bonitas ou não?
— Mas você é bonito.
— Eu sei, mas se eu admito parece ser arrogância, quando você faz é só a reafirmação do que você é.
— Sabe Dani, se eu quisesse ficar confuso iria reler o Grande Sertão Veredas.
— Argh! É que no mundo o padrão de beleza tem várias categorias, eu sou do tipo "cara de criança" bonitinho, talvez fofo, você já faz parte de outro patamar. — ele fala e fica os próximos segundos calados esperando eu perguntar qual o patamar.
— Vai completar o raciocínio?
— Deveria ser mais educado. — ele me mostra a língua com falsa irritação, mas continua mesmo assim. — Atualmente você tá no estilo heroí moderno, tipo o batman, mas no futuro deve se assemelhar a um deus grego.
Minha incredulidade por escutar tal absurdo deve ter transparecido muito no meu rosto, porque ele questiona:
— Qual o problema?
— Sempre achei os deuses gregos superestimados demais. — me contenho a responder, fazendo o possível para não revirar os olhos.
Até onde é possível ir a criatividade das pessoas? Um deus grego... Que piada de mal gosto.
— Está zombando de mim! — ele fala depois de um tempo, apontando o dedo acusador.
— Claro que sim! — estalo a língua ainda meio divertido — O batman? É sério?
— É só um exemplo, você não chega a ser o batman, mas tô falando da tua vibe.
— Minha vibe?
— Sim.
— E por acaso eu sou um lúnatico, a beira da loucura total e a um passo de me tornar o que mais repudio, que vivo em constante depressão e raiva insana. Em uma busca sem sentindo por todos os "associados" a meu sofrimento e alienado ao fato de que apesar da tragédia fonte do meu trauma, eu sou o único responsável por toda a desgraça da minha vida?
— Quase isso, sem ser isso, quer dizer... tu é em partes, mas de forma menos intensa. — ele balbucia confuso. — Tá, o que eu quero dizer é que sua vibe transparece um pouco sabe? Sombrio, sério, um pouquinho hostil e tals...
— Uh. — me limito a resmungar.
Dani não a primeira pessoa a dizer isso. Não sobre o batman é claro — Por que né? — mas sobre minha aura. E sobre isso ser atraente. O que pode levantar uma hípotese que a mente humana ou é muita estranha, ou muito tendenciosa ao masoquismo. Quer dizer? Achar um cara atrente por ele ter uma vibe ameaçadora?
— Enfim... Escrevendo? — ele questiona, sobrancelha erguida e um meio sorriso no rosto, com a cabeça indica o pequeno caderno no chão. — Quando vai me deixar ler um desses textos? Ou são poesias? Poemas?
Cada pergunta saindo em um tom mais agudo de curiosidade. Dessa vez, mais concentrado, forço a mim mesmo a continuar com cara de paisagem e não revelar minha incomodidade com esse assunto. Mesmo que já esteja saturado dele.
— São apenas palavras Dani, e são para terapia, mal eu os leio depois que escrevo.
Ao repetir as mesmas palavras que uso sempre que ele faz essa pergunta, não contenho soltar um bufar. Me agacho e recolho os objetos caídos.
É nítido que a curiosidade ainda brilha profundamente nos olhos ébanos dele, mas ainda assim sei que ele não vai insistir no assunto. Assim como das outras vezes não forçou a barra, dessa ele só joga os cabelos para trás põe um largo sorriso no rosto e diz:
— Tô com fome.
É claro que está.
— Já está na hora do almoço?
— Sim. — ele faz um gesto igual daqueles antigos, quando os mordomos faziam uma curta referência lançando o corpo curvado para frente, um braço dobrado para trás e o outro esticado na direção a se seguir. — Por aqui, senhor.
— Pare de brincar.
— Aí não seria tudo tão divertido. Além disso tem que existir alguma coisa para equilibrar toda essa tua seriedade. — dessa vez ele me oferece o braço. — Let's go?
— Você é um porre quando está com fome. — Bom, dessa vez nem tanto, mas não posso perder o costume de dizer isso a ele.
— E você me ama ainda assim.
— Amor é uma palavra muito forte.
— Nesse caso taria mais para um eufemismo.
— Você se acha, Yamamoto.
— Não fale como se fosse uma coisa ruim, se nós mesmos não nos colocarmos em primeira categoria, quem vai colocar? O mundo é um poço vazio, e enquanto escalamos em direção ao topo sempre vem um para te puxar para baixo.
— Saiu das aulas da professora Edna? — ela é a de filosofia.
— Sim. Como sabia?
— Intuição.
— Somos todos homens de intuição, certo?
— Certo. — respondo depois de um tempo, porque a minha mente me diz que eu não ia gostar do rumo que o assunto iria.
— Porque a minha me diz que tem algo estranho com você.
— Estranho. — apenas repito, esperando ele completar o raciocínio.
— Sim, estranho. — ele fala sério. — Desde aquela vez, na aula de química, você estava meio disperso.
— Porque eu odeio química.
— Rá! Nem tente me enganar mocinho, você põe atenção ao cubo quando se trata de matérias que você não gosta.
— Pra alguém que não conhece quase nada de matemática você usa muito bem na conversa.
— Eu tenho uma LEVE dificuldade, nada demais, e você está evadindo o assunto.
— Você, irritantemente, me conhece muito bem, aliás você vai ter mesmo que mudar da turma de química? Por que?
— Sim conheço, sim terei, a professora pediu ao diretor para que dispersasse um grupo de alunos que estavam fazendo impossível de dar aula na outra turma. E não mude de assunto.
Ele fala tão rápido que fico transtornado.
— Como dizia antes, primeiro foi você meio tan-tan na aula de química e agora isso. — ele aponta para o caderno que guardei dentro da jaqueta. — Pensei que você já tinha parado de usar a meses.
— E tinha. — é o único que me atento a responder.
— As pinturas não foram o suficiente dessa vez? — ele questiona intrigado. — Isso é estranho você sempre pinta tudo, o que você não iria querer pintar?
Algo que eu não quero ver.
Arte é uma coisa quando se pinta, se cria, torna-se vivo aquilo ali, e minha mente já tinha um pesadelo vivaz bastante, sendo assim dispensável uma versão física do mesmo. Quanto a escrever, é o mesmo processo de criar uma realidade, transpassar, mas diferente da pintura ela só será "física" se eu ler, o que eu não irei fazer.
— Hei, não precisa fazer essa cara, se não quer dizer tudo bem, mas saiba que qualquer coisa eu tô aqui, falou?
Apenas assinto com a cabeça.
Essa é uma das muitas coisas que me fizeram aproximar de Dani, ele é compreensível, e empático, nunca força demais as coisas e aceita uma recusa com facilidade. Sua curiosidade não ultrapassa seu bom senso e ele não está disposto a satisfazê-la em troca da chateação de outras pessoas.
Ele começa a tagarelar sobre um grupo pôlemico no Instagram e apenas acompanho a conversa de maneira superficial, minha cabeça ainda meio entorpecida por minhas preocupações.
Não demora para chegarmos ao refeitório, na direção oposta vinham caminhando Thales e Arthur, eles nos cumprimentam, eu retribuo com um aceno, mas Dani se estanca no lugar na intenção de espera-los. Sem nem falar nada, apoio a mão no ombro de Dani e o puxo delicadamente na direção onde as tias da cozinha distribuem a comida.
— Por que não esperar?
— Vamos guardar a mesa. — um "por favor" implícito na minha fala o faz me seguir.
— Não é isso. — Dani franze o cenho desconfiado. — Tem algo de estranho.
— Você e suas coisas estranhas.
— Não evite o assunto, o que aconteceu entre você e o Thales? Vocês dois tão agindo esquisitos.
— Nada demais, só tive um desentendimento com alguns dos amigos dele.
Envolvendo uma ameaça bem séria sobre assédio, prisão, expulsão e, é claro, uma leve advertência sobre uma noite no leito de um hospital.
Exagero?
Talvez. Mas uma das coisas que menos tolero nesse mundo é assédio. E mesmo que Allysson não perceba, foi isso que aconteceu. Além do mais, até chego a pensar que aconteceu mais coisas além da história que ele me contou.
Recordo cada detalhe, cada mínimo titubear que ele fez. Há algo a mais que ele não quis me contar, e eu não vou pressioná-lo. Primeiro, porque é algo rude a se fazer, segundo porque não temos tal proximidade para que ele queira se abrir.
Proximidade. É até uma piada.
A maior proximidade que já tivemos foi quando acertei um soco na cara dele, e dessa vez eu tinha perdido os estribos. Ou quando ele teve um ataque de pânico, e dessa vez foi ele quem estava descontrolado por causa dos seus sentimentos.
Vou definir nossa relação como conturbada.
Relação. Há três meses atrás nem isso eu consideraria ter com Allysson. Nem amigo, nem inimigo, ele é um zero a esquerda para mim. Era o que eu provavelmente falaria.
Meio arrogante, não? Ao fim e ao cabo Allysson sempre me irritou demais para que eu considerasse ele um zero a esquerda. Mas meu orgulho sempre foi forte demais para admitir isso... Mas viver em negação não faz muito meu estilo. Então sim, criamos um laço... se ele vai ser bom, ruim ou neutro só o tempo dirá.
Porque até agora não consigo entender ele. Não somos amigos, definitivamente não, eu diria que até mesmo impossível de sermos, mas não somos inimigos.
Eu não gosto dele, mas também não o odeio.
Tá, ok, na verdade eu ainda o odeio um pouquinho. Mas é bem menos em relação a antes. Bom, talvez não tão, tãoo menos. Mas já não o odeio tanto.
— No futebol? — Dani fala se referindo a quais colegas eu briguei.
— Sim.
— Isso deveria abrir espaço para uma explicação.
— Eu sei, mas só... esquece, ok? Eu e o Thales estamos bem, foi só uma discussão. — Bom, talvez não só uma discussão, mas tá valendo.
Se eu contasse para Daniel que eu briguei com Thales por ele usar uma história pessoal, e bem íntima — e pra lá de horrorosa também. Tipo? Qual o problema do irmão do Allysson? A falta de tato, e de noção, é algo de família só pode — para humilhar seu precioso Ally, ele mesmo surtaria e brigaria com Thales.
E depois com o irmão do Gonzales.
Eu acho.
— Primeiro um desentendimento, depois uma discussão, o que aconteceu com vocês? — não respondo, porque foi uma pergunta voltada para si mesmo e não para mim.
Mas Dani não tem muito espaço para pensar sobre o assunto, porque em questão de segundos Thales e Arthur, junto a duas desagradáveis companhias chegam perto da gente.
Vejo que Dani se tensa um pouco também, desgostoso, quando vê que uma delas é Pietro. A outra, bem, é o insuportável do Dominique.
Não sei o que é pior, ter ele por perto ou ver como Arthur fica desengonçado perto dele.
Meu amigo deve ter socado o cupido dele em outra vida, só assim para ter o dedo tão podre quando se trata de quem gosta.
Meu santo nunca bateu com o de Dominique, isso é fato, ele e Arthur são os únicos nesse colégio que me conhecem além do primeiro ano do ensino médio. Arthur foi meu melhor amigo durante a infância, e mesmo quando vivemos alguns anos sem muito contato, incrivelmente, mantemos o mesmo elo de sempre. Já Dominique... uma das mães dele é atriz, fez um papel com meu pai, quando eu tinha uns onze anos, e eles se tornaram amigos, assim que minha interação com Dominique sempre foi a de obrigação por normas de educação.
E vice-versa.
Por que nunca gostei dele e nem ele de mim, bastava a porta se fechar atrás de um adulto e ele amava deixar escorrer, de maneira bem sórdida — ele tinha uma boca muito suja para alguém da idade dele — o quanto minha companhia era odiosa.
E eu, o quanto pouco me importava a existência dele, ou o que ele fazia, conquanto me deixasse em paz.
E assim seguiu a vida.
Mas infelizmente Dani tem amizade com esse estrupício, então tenho que aguentá-lo.
E sobre Pietro, bem, eu nunca tive nada contra ele, nem a favor também, mas de uns tempos para cá só consigo acha-lo desagradável. Permaneço sendo educado e tudo mais, mas já não lhe dou certas aberturas.
— Peguei pra você. — Dani fala me entregando a bandeja recheada com arroz á grega, feijão carioca, tirinhas fritas de peixe, legumes cozidos, saladas, frutas e uma caixinha de suco.
Murmuro um obrigado e todos seguimos para a mesa, Arthur se senta de frente para mim, seguido por Thales e por Pietro, Dani se senta a meu lado, e adjacente a ele Dominique se ocupa.
A conversa rola solta na mesa, eu sou o único calado, ainda pensando em meus próprios problemas. Em um impulso natural ponho minha própria bandeja de lado, e me inclino para capturar a de Dani, quando a tenho frente a mim, pego meu garfo e provo cada uma das comidas ali em frente. Arroz, lasanha de queijo, parmegiana de frango, feijão, salada de atum e pudim.
Sim, ele tem um péssimo gosto.Quem raios mistura parmegiana, ou lasanha, com feijão?
Não expresso meu descontentamento e apenas empurro a bandeja de volta para ele, que pega o próprio garfo e vai comer muito, muito feliz.
Meu estômago antes quieto, ruge por ser alimentado então pego a minha própria, mas antes mesmo que consiga colocar uma garfada na boca, a voz de Pietro interrompe o fluxo das coisas.
— Cara, porque você sempre prova a comida do Dani? — ele questiona curioso e zombador. — Quer dizer ele é tipo um faraó ou algo do tipo? Devemos todos nos inclinar?
No mesmo instante, é possível sentir, o clima já não muito bom piorar.
Evidentemente ele ri da própria piada. Quem não vê graça nenhuma é Dani que enrijece completamente o corpo, com um só vislumbre percebo que a mão que segura o garfo está tão trêmula que ele força a si mesmo a baixa-la, pego sua outra mão por debaixo da mesa esperando assim poder transmitir um pouco de calma, leva alguns segundos mas ele consegue respirar direito novamente.
E se não fosse pela tez levemente pálida e pelo denso clima que ficou, seria como se Pietro nunca tivesse feito essa pergunta.
Mas ele fez, e também percebe que tem alguma coisa errada, pois novamente se faz ouvir.
— Caras, relaxem, foi só uma piadinha.
Ele tenta amenizar as coisas, o que é um indício de que acha que há algo de errado na situação, a mão de Dani entre a minha volta a tremer.
Uma troca de significativos, embora breves, olhares com Arthur é o bastante para fazê-lo compreender a mensagem que quero passar.
— É óbvio que é o antigo Egito! Não vê como ele trata Dani como se fosse a própria Cleópatra? — Ele usa a zombação para ocultar a verdade. Para as pessoas não passam de brincadeira, mas é notório, para mim, que ele também está nervoso tentando ocultar a verdade.
Pietro morde a isca e Arthur consegue conversar com ele desviando o caminho do assunto principal. Mas ainda assim a sombra do que foi dito deixa meu humor um pouco mais azedo, e posso ver que nos demais que sabem a verdade também.
Dani agora apenas remexe a comida parecendo sem apetite algum e uma capa fina de suor se forma na testa de Arthur, indicando o esforço que faz para prosseguir com a conversa, ou para não mandar Pietro a merda.
Não tem como saber.
Como Dani, tento ao menos me concentrar um pouco mais na comida diante de mim, mas não consigo. As lembranças são desgraças destinadas a me assombrar. Essa é uma das muitas vezes em que eu não gostaria de ter memória fotográfica.
Mas eu tenho, e a batalha contra minha própria mente é inútil e me deixo levar em meio a lembranças que amargam por completo meu humor.
Foi no final do ano passado, em uma das inúmeras festas, que eu quase nunca participei. Mas dessa vez quem oferecia a casa era Arthur, e tinha algo em mim que desejava ir até lá, o que eu estranhei. — Não sou exatamente antissocial, mas não curto muito socializar com pessoas da escola. Sim da escola. Consigo curtir uma balada, até mesmo festas de universitário. De vez em quando. — Então eu fui na festa, acompanhado de Dani e de um cara que eu não conhecia, tinha pinta de mais velho, um entorno de vinte anos, jovem pela idade, mas velho demais para uma festa de garotos do ensino médio. Mas ainda assim foi ele quem nos levou.
Não gostei dele.
Ele era ruivo, alto, com o rosto salpicado de sardas laranjas, uma leve barba nascendo, e um corpo musculoso, mas musculoso mesmo, estilo de cara que passa horas na academia. Eu não perguntei seu nome, nem ele o meu e nem Dani fez questão de nos apresentar. Talvez já empolgado demais para festa, ou talvez sua personalidade não conflituosa se fez mais forte, já que obviamente eu e ele não nos daríamos bem.
Talvez por aquele cara exalar arrogância por cada poro do seu ser.
Ou talvez por ele estar comendo Dani com os olhos.
Posso até não ter direito de expressar meu ciúme abertamente para Dani, mas podia sentir internamente e odiar o cara por estar olhando meu amigo como um cão sem comer à dias encara uma bisteca.
Não demorou para chegarmos e meu dia azedou ainda mais. O cara que nos levou desapareceu na festa, e Dani se "enturmou", então obviamente eu acabei me sentindo um pouco mais mal humorado e questionei a mim mesmo o que raios eu tava na cabeça para vir nessa festa?
Porque não é exatamente legal ver como a pessoa que você gosta se esfrega descaradamente em várias outras aleatórias.
Então, basicamente resumindo as sensações daquela hora, eu já estava meio abatido e irritado quando vi Daniel mergulhar a língua na nona garota da noite. Assim que dá para imaginar que quando eles praticamente começaram a se comer no meio da pista, meu humor decaiu por completo.
Em certo momento Dani percebeu isso e, em uma ação levada pela euforia, veio até mim e me beijou.
Sim, me beijou.
Beijar Dani, mesmo que por breve segundos, foi como fogos de artifícios estourando dentro de mim, foi entorpecente, chocante e mortificante. Mas antes mesmo que pudesse lhe beijar da forma como queria de verdade, ele aproximou seus lábios do meu ouvido e disse com a voz baixa. "Você é um dos caras mais gostosos daqui, as mina tão o tempo todo te secando, as yag nem se fala, se solta um pouco mais pra elas chega em tu". E se afastou para voltar a comer a língua da menina.
Foi a primeira e a última vez que a gente se beijou.
E o pior é que foi numa espécie de consolação.
Sim, sua mente entorpecida calculou que minha "tristeza" era por não ter beijado ninguém ainda. E que esse ato me deixaria mais "solto".
Nunca antes eu tinha ficado tão puto com Dani e comigo mesmo. Irritado por ele me beijar, algo que eu havia sonhado várias vezes, de uma forma tão fútil e rasa. Bravo por ele ser um tonto que carecia da sensibilidade de saber o que aquilo significaria para mim. Chateado comigo mesmo por culpá-lo por algo que ele não era obrigado a saber, porque EU escolhi não dizer.
E finalmente puto, com ele, comigo, até mesmo com Arthur que resolveu oferecer a maldita festa.
A irritação era tamanha que de um momento a outro eu conseguia sentir o lugar mais apertado, o som mais alto e o ar mais abafado. E, de repente, tudo era capaz de aflorar ainda mais meu humor, desde os irritantes olhares sedutores, até mesmo aos sem noções que passavam por mim tocando no meu peito, barriga ou braços, sussurrando elogios de como eram tonificados.
E minha vontade era de mandar todos, e cada um deles, para a puta que os pariu. Mas no final eu me limitei a mostrar o dedo do meio e fui para fora em busca de ar puro.
Eu precisava de calma. De ar puro. De uma boa dose de Daniel longe de mim. E para o bem da minha saúde, e do restante, de qualquer pessoa longe de mim.
Ou talvez eu só precisasse do completo oposto. Eu deveria procurar alguém e aproveitar nem que fosse por uma noite.
Nem precisa de dizer que descartei a ideia de imediato. A primeira boa razão é porque tinha muita gente da escola, e gente da escola é pior que vizinho fofoqueiro. Não precisam saber da minha vida pessoal.
E a segunda boa razão, é que eu não tinha levado camisinha, e ter que trocar a rota só para conseguir uma não é algo que me agrade. Mas também não me agrada pegar a primeira pessoa aleatória que aparecer e descarregar o que sinto nela.
Mesmo para uma situação de uma noite é injusto. Com ela e comigo. Só de pensar usar alguém assim me causava náuseas.
Uma coisa é você transar com alguém porque ambos se sentiram sexualmente atraídos e estão com vontade. Outra bem diferente é foder com alguém só pra se sentir melhor consigo mesmo.
Não, não ia rolar.
Então apenas caminhei um pouco para longe e me encostei em um poste, aguardei silenciosamente o abalo do beijo de Dani parar de estremecer meus órgãos. E quando a irritação finalmente saiu do meu sistema, dando voz a meu lado puramente racional, resolvi voltar para dentro. Mas não encontrei ele em lugar nenhum.
Procurei ele por todos os cantos, tinha a possibilidade dele ter saído para transar, mas ele sempre manda mensagem antes de sair da festa — mesmo quando não tô nelas, só pra que saber caso ele seja sequestrado — e também, a garota que ele tava pegando já estava rebolando no colo de outro. E pela cena dos dois antes eles queriam eram se pegar, então estranhei.
Perguntei a todos se tinham visto a Dani, até tentei achar Arthur, mas pelo visto o maldito deveria estar metendo em algum cara por ai, já que eu não o tinha visto desde a hora que cheguei. Assim que continuei perguntando até que uma das moças que Dani havia beijado sussurrou para mim, antes de voltar a se atracar num beijo triplo, que o viu sendo levado para o andar de cima.
A sensação de que algo estava errado triplicou. E automaticamente corri escada acima, procurando de quarto em quarto, abrindo porta a porta, até mesmo revelando coisas desagradáveis, como Arthur transando com um garoto que nunca vi antes.
Eles ficaram surpresos.
Absolutamente chocados.
E eu também.
Principalmente porque a visão de Arthur "comendo" alguém quase queimou minhas retinas.
Uma das muitas coisas que eu gostaria de apagar da minha mente.
Mas como o traseiro branquelo de Arthur estava longe de ser minha maior preocupação, eu segui a corrente, até finalmente encontrar a habitação certa. No momento propício, ou quase isso pois teria sido melhor ter impedido antes de acontecer.
O maldito nem se preocupara em passar a tranca.
Atrás da porta, se encontrava uma das piores cenas que já vi na vida.
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