Capítulo 6

Dinossauros

A casa não era grande, mas parecia bem aconchegante. Havia um belo jardim diante dela com vários canteiros de flores, alguns formando uma cerca viva que separava o terreno do dos vizinhos, e uma cobertura de grama, perfeita e bem aparada. As paredes pareciam ter sido pintadas pela cor creme um dia, mas naquele momento eu não podia ter tanta certeza: uma planta crescera sobre os muros, escalando-os até as janelas do andar superior e enfeitando o ambiente com verde.

Depois de alguns minutos de observação, finalmente desci do carro e tomei coragem para andar pelo caminho de pedras que levava à entrada. Ao chegar diante da porta, suspirei profundamente e toquei a campainha.

Uma mulher por volta dos cinquenta anos abriu a porta segundos depois. Tinha olhos azuis claros, mas não tão claros quanto os de Felipe, bochechas avermelhadas e um cabelo grisalho, preso em um coque frouxo no alto da cabeça. Ela usava um avental de tecido sobre a roupa e, apesar das fortes linhas de idade ao redor dos olhos, continuava muito bonita.

- Olá? - Ela disse, com um minúsculo e confuso sorriso nos lábios, a interrogação clara em sua voz.

- B-Bom dia. - Gaguejei e escondi nos bolsos as mãos. - É... Bem, eu sou um colega de Felipe e ele disse que eu poderia passar aqui para fazermos um...

Minha fala foi cortada por um gritinho fino, engraçado e genuinamente infantil que ecoou do interior da casa. Uma menininha desceu correndo a escada que desembocava na sala de estar, gargalhando enquanto saltava os dois últimos degraus. Parecia uma bonequinha: cabelos pretos com cachos bagunçados, olhos cor de mel e perninhas gorduchas sob um vestido floral. Não devia ter mais que cinco anos.

Ela correu até a mulher que abrira a porta para mim e se colocou entre as suas pernas, escondendo-se com o avental, espionando e sorrindo atrevidamente em direção à escada por onde descera. A mulher lhe lançou um olhar interrogador que só fez a menina rir mais e ficar com as bochechas mordivelmente avermelhadas.

E então ele apareceu.

Usava uma máscara do Hulk cobrindo o rosto e estava sem camisa, apenas com uma calça preta e rasgada. O som do riso era evidente e a ligeira elevação da máscara evidenciava um sorriso largo sob ela.

- BUUUUUÚ! - O garoto gritou, pulando os três últimos degraus da escada e caindo com um som seco no chão. Os pés descalços estavam virados para fora e os braços abertos com os músculos tensionados, em uma pose típica do personagem da máscara. A menininha soltou um gritinho, escondendo-se ainda mais, e a mulher pareceu ficar vermelha de vergonha enquanto me lançava um olhar.

Nesse momento, o rapaz parou e perdeu a pose de monstro que fazia, deixando os braços desnudos caírem ao lado do corpo. Empurrou a máscara para cima e exibiu o rosto.

- O que você está fazendo aqui? - Felipe resmungou, olhando diretamente pra mim e com o rosto visivelmente carrancudo de novo. Mas, apesar disso, dava para ver que ele estava com vergonha, já que seu rosto estava avermelhado nas bochechas. E, bem, eu entendia, já que ele tinha sido flagrado em um momento infantil e íntimo.

- Hã... - Demorei a responder, as palavras sumindo. - Você disse que eu podia.

- Ah, por favor, entre. - Disse a mulher, afastando-se para me deixar entrar. - Fique a vontade.

Parei perto da porta, sem saber exatamente o que fazer. A sala em que estávamos era pequena, porém, mais uma vez, aconchegante. Tinha apenas um sofá branco, uma televisão grande, uma mesinha de centro com um vaso de flores em cima e um quadro de uma maravilhosa paisagem preso em uma das paredes. Tudo era limpo, perfumado e organizado.

- Mãe, vou para o quarto fazer um trabalho com Tody. Não deixe Anne ficar batendo na porta, ok? - Felipe falou olhando para a mãe e depois fez um sinal com a cabeça para que eu o seguisse escada acima. - Vamos?

- Fê! - A menininha chamada Anne gritou, fazendo um biquinho no rosto. - Não quero brincar sozinha!

Ele desceu os dois degraus que já tinha subido e se ajoelhou diante de uma manhosa garotinha, puxando-a para um abraço.

- Preciso fazer esse trabalho agora, anjinho, mas prometo assistir Scooby-Doo com você até a hora de dormir, o que acha?

- P- Promete mesmo? - Ela disse, o rostinho de pidona quase me fazendo desistir de tudo e ir para casa apenas para que ela pudesse brincar com o irmão.

- Prometo. - Felipe estendeu o dedo mindinho para a menina, que abriu um sorriso e entrelaçou o seu dedinho no do irmão. Ele se levantou e foi em direção à escada.

Subimos correndo os degraus e eu o segui quando abriu a primeira porta da direita no corredor principal do segundo andar e entrou.

Eu tinha entrado no quarto do Garoto-Morcego e ele não era nada como eu esperava.

As paredes tinham originalmente a cor preta, mas estavam recobertas por desenhos de todos os tipos feitos em papeis, os quais eram presos de qualquer forma pelo espaço. Em uma das paredes, porém, havia o desenho perfeito de uma árvore cheia de galhos secos e retorcidos e frutas esquisitas. Da pintura, dezenas de pequenos fios saíam, pendendo contra a parede como se estivessem realmente presos nos galhos de uma árvore, e, no fim de cada fio, havia uma foto aleatória. A cama era de solteiro e mais desenhos em papel estavam colados na cabeceira dela. No teto, constelações perfeitas estavam desenhadas, um verdadeiro universo feito de tinta que dava a impressão de estar sob o céu aberto.

Ao lado direito da cama estava uma escrivanhia pequena e ao lado dela, ainda mais a direita, havia uma janela de vidro. Um armário de duas portas estava na outra parede, ao lado de algumas prateleiras repletas de livros.

Perdi-me observando tudo.

Felipe pegou uma camisa no armário e a vestiu, logo depois de jogar a máscara no chão, e virou-se para mim.

- Enfim, bem-vindo ao meu mundo sombrio. - Falou, sarcasticamente, mas então suavizou a expressão e apontou para um pequeno puff. -  Pode sentar, se quiser.

Eu estava nervoso e meu estômago embrulhou. Sentei onde ele tinha dito e o observei fazer o mesmo na cadeira giratória da escrivanhia. Pigarreei e tomei coragem para falar.

- Quando cheguei em casa, pesquisei algumas coisas e tive uma boa ideia. - Disse. - É claro que eu não poderia fazer isso sozinho, mas depois de ver seus desenhos, ela me pareceu possível.

- Meus desenhos? - Felipe franziu o cenho e apoiou os braços nas próprias coxas, curvando-se para mais perto de mim. - Com biologia?

- Sim. Imaginei algo relacionado ao corpo humano, com seus desenhos explificando passo a passo para facilitar a compreensão. - De repente, o nervosismo aumentou e percebi que eu queria que Felipe gostasse da minha ideia. - Poderiam ser relacionados a como o ser humano reage quimicamente aos diferentes eventos da sociedade. E pronto! Sociologia envolvida também!

Ele ficou em silêncio quando terminei, apenas balançando a cadeira de um lado para o outro com as pernas. Seus magníficos olhos azuis não deixavam transpassar nenhum pensamento seu. Involuntariamente, comecei a bater o pé no carpete, esperando por uma resposta. Eu estava tão tenso e nervoso que precisava gastar energias, nem que fosse com um ato tão simples quanto balançar a perna.

- Se vamos apresentar isso a toda a escola, teremos material humano para usar as pessoas em demonstrações. - Ele disse, por fim. - O que melhor para provar nossa teoria que algo prático?

E então ele abriu um pequeno e travesso sorriso, um sorriso que eu nunca imaginava que ficaria tão bem naquele rosto sempre tão inexpressivo.

Aquele sorriso, que me fez sorrir em resposta.

••••

Nós não estávamos apenas rindo, estávamos morrendo, e tive a comprovação disso quando não consegui mais respirar. Os músculos da minha barriga doiam e eu não podia sequer me mexer corretamente sem sentir uma fisgada dolorida ali.

- Eu... tenho... outro! - Disse Felipe, agarrando o travesseiro contra o peito e tentando falar em meio às risadas. Ver seu esforço para não rir me fez rir ainda mais e acabei por rolar no chão até fazer uma bolinha, os olhos totalmente enevoados por causa das lágrimas.

- Arquipotauro! - Ele finalmente conseguiu falar e depois rolou para o lado na cama, saindo do meu campo de visão.

Segundos depois, escutei um "Pof" barulhento e soube que ele tinha caído da cama, do outro lado. Agarrei-me à borda do móvel para erguer o meu corpo ainda sem força e vi Felipe do outro lado, os olhos totalmente fechados em uma risada tão intensa que ele nem mesmo conseguia produzir algum som. Parecia tão destruído por aquela risadas que recomecei a rir enquanto tentava passar por cima da cama para chegar ao seu lado.

Tínhamos pesquisado por algumas longas horas os detalhes da minha ideia e percebemos que ela era totalmente viável. Claro, seria complicado explicar conhecimentos científicos complexos de uma forma lúdica, mas Felipe já tinha começado a fazer alguns esboços dos desenhos que faria. Infelizmente - ou talvez felizmente -, acabamos lendo muitos nomes bizarros no meio do caminho. Nessa onda, começamos a rir e criar outros nomes, que poderiam ser usados um dia para classificar uma nova doença encontrada ou um dinossauro até então desconhecido.

Em determinado momento, nem sabíamos mais do que riamos. Era contagiante e dominava cada parte de mim. Ouvir sua gargalhada alta e intensa me fazia rir e ele ria por eu estar rindo e o ciclo se repetia daquela forma. Eu tinha que admitir que Felipe era bem mais criativo que eu e que os nomes que criara pareciam russo, mas nos faziam rir do mesmo jeito.

E aquele tinha sido o resultado disso tudo: dois homens jogados no chão e sem força para levantar.

Finalmente, deitei ao seu lado no chão do quarto, ao lado da cama, parando de rir aos poucos e tentando controlar a respiração para pronunciar algo que fizesse sentido. Sequei as lágrimas que ainda desciam por minhas bochechas.

- Você é muito mais divertido do que aparenta nessas roupas pretas. - Comentei, não sabia muito bem o porquê.

Era a mais pura verdade. Quem olhava o Garoto-Morcego nunca poderia imaginar que ele era o tipo de pessoa que ficava deitado no chão do próprio quarto, ofegante de tanto gargalhar. Muito menos sorrir de lado daquela forma e me olhar risonho.

- Cuidado, eu ainda posso morder o seu pescoço. - Falou. - Essa cama é só enfeite. Eu durmo na árvore lá fora, de cabeça para baixo.

Comecei a rir de novo, baixinho, e neguei com a cabeça, o que o fez acompanhar meu riso. Deitado daquela forma, eu tinha a visão total do teto do quarto e de todas as estrelas pintadas ali, cada uma brilhando fortemente em suas diversas cores. Franzi o cenho ao perceber que, na penumbra do local, aquelas estrelas eram as únicas coisas que irradiavam luz.

- Elas brilham no escuro. - Felipe explicou antes que eu perguntasse. Olhei para o lado para perceber seus olhos claríssimos sobre mim. - A tinta foi bem cara, mas realmente valeu a pena.

Observando aquela magnífica obra de arte, tão maravilhosa, tive a certeza de que sim, valera a pena.

Felipe soltou um suspiro ao meu lado e o olhei novamente. Estava relaxado, os braços sob a cabeça servindo de apoio e as pernas esticadas. O cabelo escuro era um ninho de ratos, espetando-se em todas as direções, e os olhos pareciam mais escuros que o normal. A pele era pálida, os músculos visíveis sob a camisa colada: um peitoral magro, porém bem definido, com linhas fortes. Os ossos do quadril, que apareciam por causa da blusa ligeiramente repuxada para cima, eram bem evidentes.

Ele era lindo.

Pisquei os olhos quando Felipe se virou para mim e voltei a olhar para o teto. De onde inferno aquele pensamento, tão repentino e inesperado, tinha saído? Por que, de tantas outras que eu poderia ter pensado, justo aquela tinha se sobreposto às demais?

Por que eu estava debatendo aquilo comigo mesmo?

Entretanto, antes que eu pudesse me fazer mais perguntas desconexas, meu telefone tocou muito forte no bolso da minha calça. Imediatamente, meu corpo tensionou e eu arregalei os olhos ao ver o nome de Scott no visor de chamadas.

- Merda! Merda! Merda! - Resmunguei e fiquei de pé em um pulo. Meu desespero aumentou ainda mais quando olhei o relógio digital do quarto e vi que horas eram.

19:16.

- O que foi? - Perguntou Felipe, alarmado, erguendo-se do chão também. - O que aconteceu, Benson?

- Meu jogo! - Gritei, correndo pelo quarto. Peguei minha jaqueta, que estava apoiada no puff, e abri a porta, descendo as escadas às pressas.

Estava tão atordoado, que nem mesmo tinha percebido o Garoto-Morcego descendo logo atrás de mim antes de ele dar um encontrão com as minhas costas quando parei repentinamente. Virei-me para ele, abri a boca para dizer algo, apertei a chave do carro entre as mãos e, por fim, nenhuma palavra saiu. Como eu iria me despedir dele?

Foi quando percebi que Anne estava sentada no sofá da sala, assistindo a um programa infantil. Dali, eu ouvia o cantarolar baixo da Sra. Clavien enquanto fazia o jantar, ainda usando o mesmo avental de mais cedo. Antes que pudesse me impedir, olhei para Felipe e pedi:

- Vem comigo.

Ao mesmo tempo, Anne gritou do sofá:

- Fefê, assiste desenho comigo!

Dentro de mim, meu estômago revirou. Eu estava atrasado, mas ainda assim não conseguia arrancar meus pés do chão e partir. De alguma forma, dar risada com o garoto diante de mim tinha despertado a vontade de tê-lo por perto um pouquinho mais de tempo, mesmo que aquilo significasse levá-lo ao jogo.

Felipe revezou o olhar entre mim e Anne e depois gritou para a mãe:

- Mãe, to saindo. Não sei de que horas volto, okay? - Anne imediatamente fez uma careta e ele a abraçou, sussurrando alguma coisa para ela. A menininha sorriu e assentiu veementemente antes de receber um beijinho na testa.

Segurei-o pelo braço e o puxei em direção à porta, acenando com a mão para a Sra. Clavien no caminho. Corremos pelo corredor de pedras até a minha picape e, enquanto via Felipe sentar no banco do passageiro, um pequeno e involuntário sorriso se formou em meus lábios.

Ele iria assistir meu jogo... Que, por sinal, começava dali a pouco mais de vinte minutos!

Sequer prendi o cinto antes de ligar o motor e acelerar bruscamente, fazendo o som dos pneus ecoar por toda a vizinhança. Virei na larga avenida da costa, abri os vidros - permitindo que a brisa marítima da noite entrasse no carro e bagunçasse meu cabelo - e desviei dos outros veículos desesperadamente.

- O que falou a ela? - Perguntei, de repente, impulsionando pela curiosidade.

Felipe riu, o som se misturando ao do vento, e respondeu:

- Prometi que compraria sorvete para ela amanhã.

E, enquanto eu passava do limite de velocidade imposto naquela estrada, acabei por rir junto, imaginando Felipe e a pequena Anne comendo sorvete e assistindo Scooby-Doo. Era uma imagem sutil e doce. Uma imagem que eu jamais associaria ao Garoto-Morcego antes daquela tarde.

___________

Oi, meus anjos. Como estão?

Gostaria muito que pudessem comentar aqui, dissessem o que estão achando da história e o que eu poderia mudar.

Para os novos leitores, uma pergunta: o que acham que vai acontecer?

Até o próximo.

All the love
Kyv❤

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