Capítulo 10
Como caçar estrelas
Felipe estava sem camisa e descalço, usava apenas uma de suas calças de moletom preta e tinha os braços cruzados sobre o peito quando finalmente entrei pela janela do quarto. Ele ficou me observando por longos segundos, em silêncio, e seu rosto expressava preocupação, apesar de ele não tentar se aproximar de mim.
- Teve algum problema com seu pai de novo? - Perguntou.
- Na verdade, não. - Confessei, baixando o rosto quando o senti ficando quente novamente. - Eu só não queria ir para casa, então pensei em você.
Levantei os olhos e vi Felipe assentir e andar até o seu armário. Tirou a mesma calça que eu tinha usado na noite anterior e a jogou na minha cara em um gesto rápido. O ato me pegou de surpresa e acabei dando alguns passos para trás, caindo de bunda na cama dele com uma calça de tecido presa ao redor do meu pescoço.
Pisquei os olhos quando garoto de olhos azuis gargalhou alto e não pude deixar de rir junto, enrolando a peça de roupa na mão. A risada de Felipe era contagiante, mágica, e me fazia querer sorrir junto... porém ela parou de repente, como se ele tivesse lembrado de algo forte o suficiente para calar uma gargalhada. Engoliu em seco e focou suas duas lindas bolotas azuis sobre mim, o rosto adquirindo feições duras ao dizer:
- É claro que pode dormir aqui, Benson.
Pegou uma camisa, que estava pendurada na cadeira da escrivaninha, e seguiu para o banheiro, deixando-me para trás. Durante alguns segundos, fiquei em choque pela mudança repentina de emoção, mas então lembrei do que tinha escutado mais cedo naquela noite e uma lógica surgiu em minha mente. Felipe tinha medo de se aproximar de mim, deixar que eu fizesse parte de sua vida e, de uma forma impressionante, eu realmente queria que isso acontecesse. Dentro de mim, uma vozinha implorava para que eu quebrasse os muros ao redor daquele menino e descobrisse o que ele escondia por trás.
Assim, caminhei até a porta do banheiro e me encostei nela. O cômodo era pequeno, quase todo forrado de porcelanato branco, mas com desenhos de caneta permanente espalhados aleatoriamente pelos azuleijos. Haviam alguns ao redor do espelho, perto da ducha e do sanitário. Abri um sorriso ao ver os traços perfeitos de um pai segurando uma menininha nos braço, uma paisagem pequena em preto e branco de tirar o fôlego. Cada um dos desenhos era milimetricamente detalhado e transformavam um simples banheiro em algo especial.
- Você não para de desenhar nem quando está no banheiro? - Fiz cara de surpreso e cruzei os braços sobre o peito.
Felipe me olhou pelo espelho e, ao ver minha cara de falso resentido, acabou não aguentando e rindo, jogando pasta de dente no espelho em sua frente. Não aguentei vê-lo ficar completamente vermelho de vergonha pelo o que tinha acontecido e tive uma crise de riso enquanto ele lavava a boca com água.
Ele me lançou um olhar duro, porém, ao mesmo tempo, brincalhão, como se dissesse "se não sair agora, vou fazer você engolir pasta de dente!" e, dramaticamente, ergui as mãos como se estivesse me rendendo, voltando para o quarto logo em seguida. Eu ainda sorria bobamente quando arranquei a camisa, tirei a calça e os sapatos e fiz um monte bagunçado do chão. Vesti a calça do garoto de olhos azuis, surpreendendo-me ao finalmente perceber que ela era muito longa e o tecido sobrava em meus calcanhares. Isso acontecia porque, mesmo não sendo tão forte como eu, Felipe era mais alto e gostava de roupas folgadas e compridas.
Ele voltou do banheiro, secando as mãos em uma toalha que logo foi pendurada em uma cadeira para secar, e seu rosto ainda estava um pouco mais avermelhado que o normal.
- Nunca mais faça isso! - Resmungou, empurrando meu ombro levemente. Em resposta, empurrei o dele de volta como brincadeira, fazendo-o sorrir.
- Você riu, então não coloque a culpa toda em mim.
Ele revirou os olhos, o que fez uma curta gargalhada surgir em meus lábios, e foi até a escrivaninha, sentando-se.
- Se precisar usar o banheiro, vá agora, Benson. - Resmungou novamente, ainda fingindo estar chateado.
Felipe baixou a cabeça e recomeçou a desenhar, tranquila e silenciosamente, um rascunho incompleto que havia ali. Eu deveria seguir o que ele havia me dito, porém, uma força muito mais forte que eu me compeliu a me aproximar devagar, olhando por sobre seu ombro e vendo um desenho de um casal sob uma grande macieira. Cada traço era impecável e, olhando por muito tempo, a impressão era de que a imagem saltava do papel e se tornava real.
- Você tem um dom. - Comentei.
Seu rosto ficou vermelho mais uma vez naquela noite e ele abriu um pequeno sorriso. Era apenas um repuxar de lábios, mas valia a pena fazer qualquer coisa por ele. Pisquei algumas vezes, tomando conciência do quanto os meus pensamentos sobre Felipe era profundos, muito mais profundos do que eu gostaria de admitir. Meu estômago revirou, como se mil borboletas tentassem escapar dele, e senti meu coração bater mais rápido.
- Eu gosto. - Ele me respondeu. - Se tornou minha fuga.
- Sua fuga? - Perguntei, franzindo o cenho.
- Sim. - Ergueu o rosto e focou seus olhos azuis em mim. - Todo mundo tem uma forma de fugir dos problemas, dos pesadelos, das dores e desenhar é a minha. Ver uma simples folha de papel tomar vida é algo que me deixa feliz. É algo... bom...- Felipe se perdeu em algum pensamento enquanto falava e baixou o rosto novamente. Em um impulso estranho, segurei seu queixo e o fiz olhar para mim novamente.
- Hey, eu to aqui para me divertir e conversar com... c-com um amigo. - Sussurrei. - Se quiser conversar, estou aqui, é sério.
Ele piscou algumas vezes e eu o soltei, pensando em minhas próprias palavras. Ele se tornara meu amigo, não era? Quero dizer, eu já podia considerá-lo assim? Felipe sabia meu segredo mais bem guardado e me apoiou quando mais precisei. Havia deixado que eu chorasse em seus braços e não me julgara. Nós tinhámos uma estranha ligação que muitas vezes me deixava até mesmo surpreso, então não havia problema de chamá-lo de amigo, não era? Sim, era bom chamá-lo daquela forma, mesmo que a palavra amigo ainda nāo fosse a adequada. De alguma forma estranha, Felipe se encaixava e não se encaixava naquela categoria, ao mesmo tempo.
Alguns segundos se passaram enquanto eu divagava e retornei ao normal quando o vi abrir um lindo sorriso.
Por que lindo? É apenas um sorriso! Repreendi-me mentalmente, entretanto, era uma mentira. Aquele não era apenas um sorriso, era um repuxar de lábios, seguido de pequenas ruguinhas sob os olhos que me encantava. Não era de mim achar tanto de um simples sorriso, mas meus pensamentos tomavam rumos estranhos antes que eu pudesse controlá-los.
Felipe fez cara de pensativo por alguns instantes e então falou:
- Que tal procurar estrelas cadentes? - Ele tinha a mais pura expressão infantil e sapeca no rosto, como uma criança que vai aprontar alguma coisa.
- Quer que a gente fique no quintal a essa hora? - Perguntei. - Sua mãe sabe que eu estou aqui, Felipe.
Ele apenas sorriu ainda mais abertamente e se levantou, andando até o armário e tirando uma grande e colorida toalha de lá. Colocou o tecido por sobre os ombros e falou para mim:
- Ela não vai ver, prometo. A não ser que você não consiga fazer silêncio, é claro.
- Claro que consigo fazer silêncio. - Fiz um biquinho birrento e cruzei os braços sobre o peito, uma atitude infantil, eu admitia. A verdade era que eu me sentia bem, livre e sorridente, quase como criança de novo. Seja lá o que Felipe tinha, era assim que eu reagia a sua presença.
Abrindo a porta devagar, colocou a cabeça para fora, espiando para ter certeza que não havia mais ninguém acordado, e então sussurrou, ainda de costas:
- Me siga e fique quieto.
Saimos do quarto, cruzando o corredor na ponta dos pés. Felipe tinha passos realmente leves, enquanto eu me esforçava para não pisar no chão de madeira com muita força. Passamos em frente ao quarto de Anne e pude, pela fresta da porta aberta, ver minha pequena boneca dormindo como uma anjinha, abraçada a um ursinho de pelúcia.
Felipe só parou quando chegamos ao pé da escada que levava ao sótão. Com um pequeno salto, puxou a escada até o chão e a escalou em poucos segundos. Agarrei os degraus de madeira com as mãos e o segui até o andar superior da casa.
O quartinho escuro continuava do mesmo jeito de sempre: o computador de Felipe desligado, pousado sobre a mesa, os desenhos do nosso projeto espalhados por todos os lados, colados contra as caixas de papelão, e minha pasta de pesquisas aberta no chão, onde preguiçosamente tínhamos deixado.
- Felipe, sinto dizer, mas não dá para ver estrelas daqui. - Sussurrei, rindo baixinho também.
Foi quando ele se aproximou da parte mais inclinada do teto, a qual era separada do chão por poucos centímetros, e abriu uma portinha ali, permitindo que eu pudesse ver o céu estrelado do lado se fora. Quantos segredos essa casa esconde?
- Quem disse? - Ele piscou para mim, brincalhão, e colocou um dos pés em uma caixa, tomando impulso ali e puxando o restante do corpo com os braços. Seus músculos se tensionaram sob a camisa preta e logo ele havia desaparecido pela portinha, engolido pela imensidão do universo.
Quando finalmente saí, tive a mais bela visão do céu de toda a minha vida. Ali de cima, as luzes da rua e da cidade ficavam cobertas, pois a casa era alta o suficiente para isso e todas as constelações pareciam brilhar dez vezes mais que o normal. Era como entrar em um novo mundo e lembrei de um desenho que assistia quando criança, na qual o famoso feiticeiro Merlim entrava em sua capa e viajava para um lugar estrelado semelhante ao que eu estava.
Quando Felipe me olhou, percebi que todas as estrelas se refletiam em seu olhar. Realmente, aqueles olhos eram mágicos e me chamavam, mantendo-me preso neles para sempre, encarando fixamente, tentando descobrir os segredos contidos naquele olhar. Cada pedaço deles pareciam irradiar uma mágica, que, naquele momento, hipnotizou-me mais do que qualquer outra coisa. Pareciam gigantescos faróis, que continham todas as cores do Universo, e eu queria segui-los até o infinito, se fosse possivel.
Felipe piscou e desviou do meu olhar, o que me fez perceber onde estava realmente. Estávamos em um pequeno espaço sem inclinação, escondidos pelas laterais inclinadas do telhado, altos demais para sermos vistos por alguém que passasse na rua. O garoto de olhos azuis colocou a toalha sobre o chão e olhou para mim.
- Mamãe exigiu que a gente tivesse isso. - Ele começou, deitando-se sobre a toalha e deixando um espaço para eu fazer o mesmo. - Ela queria poder passar as noites aqui com os filhos, contando histórias. E ela realmente fez isso quando eu era pequeno, mas, depois que Anne cresceu, parou.
Assenti e fiquei em silêncio, virando o rosto para o céu. Ficamos ali pelo que pareceram ser horas, encantados com o brilho natural da noite estrelada. As constelaçõe vistas dali eram tão nítidas, lindas e complexas que senti um arrepio ao perceber o quanto nossas vidas eram insignificantes perante um Universo infinito como aquele.
- Quando estou sem inspiração e com preguiça de ir até a praia, venho aqui. - Felipe quebrou o silêncio, de repente. - Tudo parece tão simples e perfeito quando se olha essa vastidão.
- Observar o céu é a melhor forma de observar nossa alma. - Sussurrei e, pelo canto do olho, vi ele assentindo em concordância.
- É uma boa forma de entender quem nós somos. - Ele virou o rosto pra mim e fiz o mesmo. - Não esperava que entendesse de coisas assim, Capitão.
- Eu estou aprendendo agora. - Respondi, um pequeno sorriso brotando contra a minha vontade.
Recaimos em um silêncio confortável, cada um perdido em seus próprios caminhos, sejam os do céu, sejam os da alma. Em determinado momento, um vento frio passou por nós, deixando Felipe arrepiado e encolhido. Ele se aproximou de mim ligeiramente e não se afastou quando passei o braço sob sua cabeça e puxei a ponta da toalha, cobrindo uma parte de seu corpo. Puxei a outra ponta da toalha para enrolar minhas próprias pernas, ainda segurando o outro lado para manter o garoto coberto.
Virei o rosto para olhá-lo no mesmo minuto que ele fez isso também. Poucos centímetros separavam nossos rostos e pude sentir sua respiração calma e ritmada fazer cócegas sobre o meu rosto. Eu deveria ficar constrangido com aquela proximidade, com raiva ou, no mínimo, ter decência para virar o rosto, mas simplesmente não consegui. Ele me prendeu de novo com o olhar e ficamos ali, nos encarando, ouvindo os pios ao longe das aves noturnas, o balanças dos galhos, o barulho raro de um carro passando pelas ruas ali perto.
- Obrigado. - O Garoto-Morcego sorriu e, quase que involuntariamente, eu o embalei mais com a toalha, puxando-o ainda mais para perto. Era tão calmante tê-lo ali, que acabei relaxando e esquecendo totalmente tudo o que acontecia na minha vida. Olhei novamente para o céu, agradecido pelo calor que senti crescendo no meu peito, espalhando-se pelo corpo lentamente.
Ali, me senti seguro.
E foi quando ela passou.
Um único e rápido raio luminoso pelo céu estrelado.
Felipe se ergueu em um salto, ficando sentado sobre a toalha, seus olhos arregalados, um sorriso gigantesco e sincero nos lábios.
- Você viu? Viu? - Quase gritou.
Sacudi a cabeça, afirmando, sem tirar os olhos do local onde a estrela cadente havia passado. Tive tempo de fazer um desejo nos miléssimos de segundo que durou aquela aparição.
Paz.
Foi o que eu pedi: sentir paz novamente. Sentir a calma dentro de mim como era no passado, quando eu era uma criança despreocupada e amada. Quando o mundo era fácil, simples, sem sentimentos confusos ou dor. Aquela paz interior, amor próprio, a calmaria de uma alma feliz.
Felipe voltou a se deitar na toalha, alongando-se nela e juntando-se ainda mais perto do meu corpo ao deslizar um braço ao redor dos meus ombros. Seu rosto ficou vermelho quando percebeu o que fez e tentou se afastar, mas eu flexionei os músculos de propósito, apertando meu braço ao redor de seus ombros, e não o deixe sair dali. Relaxei de uma vez por todas o corpo, pousando o rosto lentamente sobre o braço de Felipe que repousava sob mim, dando tempo suficiente para ele se afastar, caso quisesse. Porém, ele suspirou e continuou quieto, minha mão ainda segurando a ponta da toalha sobre seu corpo. Parecia feliz ali, com um pequeno sorriso nos lábios.
Bocejei, com sono, e me peguei olhando para o lado. Felipe estava de olhos fechados, a cabeça apoiada no meu braço assim como a minha estava apoiada no dele, mas ainda com um sorriso no rosto. Estávamos em um abraço torto, desconfortável, porém alguma força estranha me impedia de sair dali, mantendo-me perto de Felipe não importasse como. Com o passar do minutos, suas feições relaxaram completamente, indicando que havia adormecido.
E, quando meu olhos arderam e começaram a se fecharem também, senti aquele aperto bom no coração. Um formigamento feliz que vinha de dentro e fazia meu estômago se revirar de uma forma engraçada.
O desejo tinha se realizado.
Me senti em paz.
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🍁IMPORTANTE 🍁LEIAM POR FAVOR 👇
Eu tinha terminado esse capítulo tinha uns dias já, mas o Wattpad fez questão de apagar todas as modificações que fiz e tive que recomeçar. Por isso não consegui postar antes.
Era sobre isso que queria falar com vocês. Recebo muitos e muitos comentários cobrando atualização e alguns são tão brutos e ignorantes que me sinto triste e desmotivada. Entendam, não escrevo apenas essa história e também minha vida não se resume ao Wattpad. Muitas vezes, quero escrever e postar um capítulo rapidamente, mas não consigo e os comentários frios de alguns de vocês me machucam realmente.
Sempre que atraso uma atualização, deixo uma mensagem no meu perfil, entretanto, muitos de vocês não me seguem e não recebem essas mensagens. Caso não queiram me seguir, peço que, ao menos, olhem o meu perfil antes de montar um comentário arrogante.
Vale reforçar que não são todos os meus leitores que são assim. Muito pelo contrário, a maioria de vocês são amáveis e pacientes comigo, sempre comentam nos capítulos e isso me deixa feliz. E por vocês que continuo a escrever, muitas vezes até me forçando ao extremo para tentar cumprir um prazo.
Me perdoem por esse desabafo. Acredito que nem todos irão lê-lo, mas, aos que chegaram até aqui, meu muito obrigada.
Feliz 2017 a todos.
Kyv❤
PS.: Preparem o coração para o próximo capítulo!
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