Liberdade

ADONIS NARRANDO
Talvez haja algo que me fale o que fazer. Mas estou curioso. Quero ler outras histórias. Uma história daqui.

Vamos ver... achei. Daniel, é do Brasil.

Vamos lá, Daniel. Me conte sua história.

DEPOIMENTO DO DANIEL
Olá. Sei que está escrito que esse depoimento é do Daniel. E ele realmente é. Mas ele não pode escrevê-lo.

Mas essa história não pode deixar de ser contada. Eu sou Dimitri. Melhor amigo do Daniel. Eu sou quem presenciou tudo. Sou quem mais aprendeu com Daniel.

Muitos o descrevem como a representação física da boemia. E ele é mesmo. Vou resumir a vida dele.

Acorde. Trabalhe. Volte pra casa. Saia para fazer qualquer coisa na rua. A vida dele é ir pra gandaia. Toda sexta ele estava em uma boate diferente.

Mas ao mesmo tempo que ele era safado, era alguém digno de ser chamado de humano, pois diferente de muita gente, ele tinha humanidade.

Eu sou vendedor em uma loja de roupas, ele trabalhava na administração de uma sorveteria.

Conheci Daniel através da recomendação de um psiquiatra. Sofri muita discriminação pela minha sexualidade. O bullying sempre foi algo rotineiro em minha vida. Minha própria família me rejeitou.

Eu estava acabado. Então meu psiquiatra me contou sobre um cara que passou pelo mesmo problema que eu, e assim como a mim, entrou em depressão profunda. Mas ele se recuperou.

Quando combinei de me encontrar com Daniel pela primeira vez, eu só pensava em como ele poderia me ajudar. Pensei em dicas de como ele superou. Mas no lugar ganhei algo melhor. Um amigo.

A família o botou para fora de casa com 18 anos. Ele arrumou emprego numa sorveteria. E lá dentro foi crescendo até virar gerente. Mas no começo, ele não tinha vida. Ele trabalhava, e quando não trabalhava, ele se isolava dentro de sua casa.

Até que um dia, ele resolveu ir na parada LGBT de São Paulo. E ele voltou de lá totalmente renovado.

Sempre que eu perguntava o que aconteceu, ele respondia:

"O amor aconteceu."

Pensei que ele tivesse conhecido um cara legal e se apaixonara. Mas foi muito além disso.

A presença de Daniel era ótima. Ele sempre tentou me animar. Me pagava sorvetes. Me levava pra passear.

A companhia dele sempre me fez bem. Eu não estava apaixonado. Mas eu sentia amor por ele. Um amor de amigo. Não era sexual, não era romântico e nem erotizado. Era uma amizade muito forte que foi construída aos poucos com muito carinho.

Ele foi se infiltrando em mim aos poucos. E com o tempo, eu me sentia melhor com a presença dele. Ele realmente foi capaz de me ajudar com a depressão.

Depois de melhor, ele me levou a baladas, festas, shows de todo tipo. Ele me apresentou a vida noturna de São Paulo. Acampamos juntos, viajamos para todo lugar juntos. Santos, Rio de Janeiro, Diamantina, Holambra, Campos do Jordão... Eu vivia a vida intensamente.

Meu quadro se normalizou. Mas eu ainda queria saber como Daniel se recuperou. Ele não tinha ninguém como eu tive ele. Então um dia, ele me chamou para sair com ele. Iríamos para a parada LGBT de São Paulo. Foi ano passado.

Cada coisa que era nova para mim, ele me apresentava. Eu sempre fui muito fora do meio, já que tinha algumas dificuldades para me aceitar.

Ele me apresentou a algumas drag queens. Me comprou uma bandeira LGBT. Eu vi caras se pegando. Mulheres se beijavam. Até mesmo casais de poliamor. Conhecia tudo isso por nome e teoria, mas ver aquilo me passou um sentimento diferente. Eu senti que estava aonde pertencia. Aquele era o meu mundo.

Entendi tudo o que o amor representa. Eu vi demonstrações de amor. E então eu perguntei a Daniel:

- Foi isso que você quis dizer quando falou que o amor aconteceu. Não é?

- Sim. Quando eu vim aqui, eu descobri o que significa a palavra amor. Eu estava prestes a desistir da vida. Mas aí, eu vi isso. Pessoas lutando para terem seu amor aceito pela sociedade, e demonstrando nitidamente seus sentimentos. Nunca me senti tão tocado quanto nesse momento.

- Eu entendo.

- Não. Você não entendeu. Não é somente o amor por pessoas do mesmo sexo, é o amor por quem você é. É o amor próprio. É o orgulho de ser LGBT. Me diga, por que acha que eu amo sair para as noitadas, pegar vários caras e ficar bêbado? Porque eu também descobri outro tipo de amor. O amor pela vida. Eu quero aproveitar a vida ao máximo. Quero que quando eu morrer, eu tenha o prazer de ter tido uma vida boa. Pode me caracterizar como um vadio, galinha, puto... eu não ligo. Eu vivo bem. Eu amo a vida. Eu me amo. E amo o amor. E eu quero que você se ame também. Não importa se amamos homens ou mulheres, o mais importante é amarmos uns aos outros e a nós mesmos.

Eu chorava enquanto ouvia tais palavras. Eu passei a observar tudo o que ocorria ali naquele momento. O amor. A luta. A resistência. O respeito. O orgulho. Isso deveria ser parte da minha vida, e eu não tinha me tocado disso.

Mas como eu disse no começo. Essa história não é minha. É de Daniel.

Essa é a história de Daniel auxiliando outro gay a sair da depressão. Essa foi também a história de como o próprio Daniel saiu da depressão. E essa é a história do que aconteceu com Daniel.

Alguns dias depois, ele e eu estávamos passeando à noite. Tínhamos ido a um bar, e o caminho de volta para casa era calma e seguro. Exceto por um descuido nosso. Éramos amigos muito íntimos, e às vezes andávamos de mãos dadas. E só tinha um senhor idoso na rua. E eu e Daniel estávamos de mãos dadas, e somente isso. Não nos beijamos, até porque nunca fomos namorados.

Mas só o simples fato de dois homens andarem de mãos dadas ser o suficiente para serem taxados de homossexuais, nós fomos. O senhor começou a gritar com a gente. Daniel pediu calma, pois não fazíamos nada de errado. Mas o senhor sacou uma pistola. E atirou em Daniel. O tiro foi certeiro no pulmão. E quando ele foi atirar em mim, não tinha mais balas.

Eu estava desesperado. Comecei a chorar e gritar. Liguei para o Samu. Mas quando eles chegaram, era tarde. E Daniel morrera em meus braços.

Nunca me senti tão destroçado. No velório eu chorava e passava mal, pois me recusava a acreditar que alguém tão bom como ele foi levado assim, de uma maneira tão cruel. No enterro, eu já estava mais calmo. Eu teria que aceitar que ele se foi.

Daniel se tornou parte das estáticas de mortes no Brasil. Novamente o Brasil, onde ser gay não é crime, honra a sua fama de país que mais mata LGBTs no mundo. Daniel se tornou mais um número. Um número que não sei se irá permanecer subindo.

Poderia ter sido eu. Poderia ter sido você que está lendo. Poderia ser qualquer um de nossos irmãos de luta. Mas foi ele.

Nunca me esquecerei de Daniel. Eu o amo, e sempre o amarei.

E lhes deixo a frase que Daniel me disse na conversa da qual nunca esquecerei:

- Não importa se amamos homens ou mulheres, o mais importante é amarmos uns aos outros e a nós mesmos.

Essa é a história do homem que amei, não como homem, mas como amigo.

FIM DO DEPOIMENTO

ADONIS NARRANDO

Estou chorando. Nunca desejo mal à ninguém, mesmo Leo. E há pessoas como esse senhor, que não entendem o amor. Uma história daqui. Dimitri perdeu o melhor amigo para o Ódio. Daniel realmente foi alguém incrível. Ele foi capaz de tirar alguém da depressão profunda. Ele apresentou o amor para Dimitri.

Estou emocionado. Mas estou triste. Será que morrer nas mãos do ódio é meu destino? Às vezes, me pergunto quanto tempo falta para Leo me matar.

Ouço batidas fortes na porta do meu quarto. Guardo meu celular na lateral da cueca, pois já sei o que vai acontecer.

Abro a porta, e um Rubens vermelho de raiva entra em meu quarto.

- Que história é essa que o professor de Sociologia viu você apanhando?

- Leo tinha me batido com um pedaço de pau. Eu estava sangrando no chão do banheiro. Eu poderia ter morrid...

- Eu não ligo! Não quero nem ver o que acontece comigo e com a Sara, se descobrirem que nunca te ajudamos.

- Eu pedi para ele não contar sobre vocês...

- Ele vai contar, e mesmo se não contasse, mamãe cobraria de nós a falta de atenção com você. - Rubens fala bravo. - Você está com seu celular aí?

- Não. - Minto. - Meu celular está carregando na sala.

Ele me revista pra ver se não está comigo. É por isso que boto o celular na cueca, ele é muito hétero top para revistar lá. Ele faz o mesmo que já fez várias vezes. Me leva até a dispensa, e me tranca lá. Essa ideia foi da Sara, e o Rubens a adotou.

Ele me larga lá. Eu escondi um travesseiro lá. Então fica menos desconfortável. Boto o travesseiro no chão e me deito. Pego meu celular e volto a ler. Acho que é tudo o que me resta hoje, pois amanhã será um dia longo.

Olho por mais histórias. Escolho uma qualquer e começo a ler. É de um homem chamado Apollo. Ele é de Dunquerque, na França.

Vamos, Apollo. Me conte sua história.

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