A última foto
"O passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente..."
Mário Quintana
Um pombo branco pousa sobre um caixote de madeira, arrulhando em busca de sua primeira refeição matinal. O cheio do couro cru, que cobria o velho equipamento, despertou a curiosidade do pássaro. Quem sabe daria um bom ninho... Quem sabe...
Mas os latidos de um vira-lata logo denunciaram as intenções do pombo.
- Xô! Xô! - Um tapa afastou a ave do local, que voou para longe, arrulhando lamentações.
Debaixo de um pano preto que cobria o caixote, um velho senhor reclamou, agitado, quase derrubando o tripé do equipamento. – Pombo maldito! Suja minha máquina, afasta meus clientes...
O cão fitou seu amigo humano, abanando o rabo com ares de orgulho.
Mas o homem, apressado, nem deu bola pro animal. Logo começou a lamber uma chapa para fixá-la na máquina e iniciar seu trabalho. O cachorro achou aquilo engraçado, e observou com orelhas atentas.
O fato também chamava a atenção de quem caminhava pelo parque. Alguns acabavam se aproximando para ver do que se tratava. E assim aconteceu, naquela manhã, não tardando para surgir a primeira alma viva do dia.
- Bom dia, seu Padre!
Sem responder, o religioso preferiu limitar-se a observar o equipamento em questão. Percebeu cada detalhe daquela máquina, antiga e bem conservada, e daquela cena do velho senhor e sua língua espichada, lambendo suas fotografias feito um cachorro. Realmente inusitado.
Algumas fotos estavam coladas na lateral do caixote, como amostra do seu trabalho. Fotos 3X4 para documentos; foto lembrança; álbum de família. A velha máquina ainda dava conta do recado, em quase todas as situações. E o velho complementou, apontando cada uma delas:
- Ta vendo essa foto aqui, desse casal de bonés vermelhos? Tirei semana passada. Vieram com a filha lá do Riacho da Pedra Polida. Estão morando em um barraco, ali na esquina da Prefeitura... (apontando com seus dedos enrugados).
O padre olhava, juntando as mãos em uma prece silenciosa.
- Essa outra foto aqui ao lado, é de um sujeito famoso! Sim! Olha os cabelos longos desse cara... E os olhos vermelhos... Ele veio de cavalo e parou aqui na praça ontem. Disse que vende remédios e ervas pra curar doenças. Tô sabendo...
O padre parecia aborrecido. Mas continuou calado, escutando.
- Também tem empresário que vem aqui tirar foto, acredita? Esse aqui veio de terno, numa Kombi de vidros pretos... Falava uma língua estranha, não entendi nada do que ele falou. Understand? Nem sei bem o que ele queria, mas fiz essa foto. (Sorrindo, meio sem jeito. Mas orgulhoso)
O padre acenou com a cabeça, concordando. (Na verdade, ele admirava mesmo os pássaros, que cantavam nas árvores naquele momento).
Mas a última delas, em especial, interessou particularmente ao padre. Abrindo seus pequenos olhos orientais, o religioso contemplou calmamente a última fotografia da mostra: um menino, adolescente... de ar rebelde. Parecia nervoso. Um casal, mãe e pai. Demonstravam união. E uma linda menina, de vestido azul com bolinhas brancas... Alva como um anjo. E com um pequeno Daschhund no colo.
- Gostou da foto, seu padre? Eu mesmo que tirei! E olha que deu trabalho!
O padre, curioso, aproximou-se do lambe-lambe para ouvir a história daquela fotografia mais de perto.
- Era dia do aniversário dessa menina. Maria! Completava 6 anos neste dia. Nome abençoado! Vieram passear aqui no parque naquela manhã. Lembro bem do pai, professor na escola aqui do bairro. Ele parecia feliz, e comentou que a filha estava cansada, abatida, sem vontade de andar... Ia levar ela ao médico no dia seguinte. O irmão, ao contrário, não parava quieto e também não tinha paciência para aguardar o tempo da foto. Mas dei a ele umas balas, e o pestinha prometeu se comportar. Juca era seu nome... Deus multiplica! Não é curioso?
A mãe, coitada, parecia realmente preocupada com a filha. Lembro bem! De braços dados com o marido, abraçada aos filhos, posou para a foto com um riso tímido, com ar de preocupação.
- Um sorriso, Camila!- Disse o marido. E assim registrei aquele momento. Ah, aquela família... Pareciam tão unidos!
Enquanto lambia outra chapa, o velho fotógrafo era observado com atenção pelo padre, que contemplava a cena em seu silêncio paroquial.
- E então? Vai uma foto hoje, seu padre?
Realizado com mais um cliente, o velho senhor enfiou-se novamente embaixo do pano preto, preparando uma fotografia em sua máquina Lambe-Lambe.
Contudo, o Padre não aguardou seu retrato. Saiu apressado, sem se despedir.
...
O cachorro latiu. O pombo pousou novamente no caixote. E na lateral da velha máquina lambe-lambe, faltou aquele último retrato. Nas mãos do padre, a fotografia de família mostrava marido, esposa, filhos e um cachorro em uma pose congelada no tempo e na história. Para sempre.
F I M
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