7 - Carta anônima

Dez anos atrás


Maju fechou a porta da geladeira, praguejando baixo. A comida estava quase acabando, e tudo o que seu pai sabia fazer era ficar trancado no quarto, criando um milhão de teorias para a morte da esposa e se afogando no álcool.

Em seus dezesseis anos de idade, Maju já estava de saco cheio de tudo aquilo. Daquela casa. Daquela vida. De ficar na sombra da irmã gêmea. De ser motivo de piada na escola por ter um pai "louco e teórico da conspiração".

Bom, mas alguém precisava ir ao mercado ou eles passariam fome.

Ela apanhou um papel e uma caneta, e se debruçou sobre o balcão. Começou a escrever os itens que faltavam na dispensa e na geladeira. As palavras saíam com dificuldade, a letra era um garrancho, e a...

— O que você está fazendo, Maju? — Malu perguntou, a voz doce e atenciosa como sempre.

— A lista de compras, mas...

A irmã colocou um sorriso gentil no rosto.

— Quer que eu escreva para você?

— Tanto faz.

Maju largou o papel e fingiu se ocupar com o lixo que precisava ser levado para fora. Não queria que a ardência que queimava o fundo de seus olhos se revelasse para a irmã. Aproximou-se do latão, erguendo com força a sacola mal cheirosa.

— Eca.

Nauseada, caminhou até a área externa, abriu o portãozinho da garagem e foi até a lixeira, onde depositou a sacola.

Ao se virar para voltar para dentro de casa, escutou o ronco de uma moto.

Mal teve tempo de se mover. A moto parou diante de onde ela estava.

Receosa, Maju deu dois passos para trás. Por conta do capacete e das roupas pesadas, não conseguia identificar se o motorista era um homem ou uma mulher. Mas conseguia enxergar um lampejo dos olhos azuis que se escondiam atrás da viseira.

A mão coberta por uma luva de couro lhe estendeu um envelope.

— Para o seu pai.

Maju piscou, apanhando o envelope. Ouviu apenas o sussurro da voz do motorista, e se viu incapaz de saber se era um homem ou uma mulher ali.

Antes que pudesse fazer qualquer pergunta, a moto rugiu e acelerou, desaparecendo de sua vista.

Confusa, voltou para dentro de casa, os dedos abrindo o envelope.

— Terminei a lista de compras — Malu anunciou. — O que é isso?

— Acho que é uma carta. Alguém acabou de deixar aqui. É para o pai.

— E por que você está abrindo?

— Quero saber o que tem aqui dentro.

— É errado abrir a correspondência dos outros.

Maju revirou os olhos.

— Pare de ser assim.

— Assim como?

— Tão certinha. Tão...

— Foi impressão minha, ou escutei uma moto parando aqui em frente à nossa casa? — o pai perguntou, entrando na cozinha.

Maju o olhou de cima a baixo. Ele estava precisando fazer a barba, cortar o cabelo e trocar de roupas. Céus, devia estar necessitando de um banho urgentemente. Estava exalando aquele cheiro de bebida barata que a enojava.

— Alguém deixou uma carta para você — Malu falou. — Está com a Maju.

— Deixe-me ver — ele pediu, pegando a carta aberta das mãos de Maju.

Como se uma tempestade destruidora tivesse atingido a cozinha, todo o semblante de seu pai se transformou enquanto lia a carta.

As gêmeas o encararam, confusas e assustadas.

E a expressão que enchia seus olhos...

Maju nunca vira algo tão insano.

— O que está escrito, pai? — Malu perguntou.

As mãos dele tremiam.

Maju percebeu que suas próprias pernas tremiam com a tensão e a expectativa.

— Pai! — Malu chamou outra vez. — O que está escrito na carta?

Com o ar saindo em um assovio ruidoso dos lábios, ele ergueu a voz:

— "Há muitas coisas que você não sabe sobre sua esposa. Você pode encontrar as respostas com o EQA. Assinado: um amigo".

Maju se lembrou no mesmo instante das provocações e tirações de sarro que seus colegas de classe faziam com as teorias conspiratórias de seu pai. Uma mistura de mágoa e irritação subiu por seu peito. Em dias como aquele, a saudade que sentia da mãe ficava ainda pior.

— Que brincadeira de mau gosto é essa? Quem enviou isso?

— Por que acha que é uma brincadeira, filha?

— Porque está na cara! Ninguém dá uma notícia assim, desse jeito! Você não vai levar isso a sério, não é, pai? — Maju retrucou outra vez. — Todo mundo sabe que você é obcecado com a morte da mamãe. Isso deve ser uma piada de muito mau gosto, de alguém que gosta de brincar com a dor dos outros.

"Dos meus colegas. Dos vizinhos. De qualquer um que sabe que somos uma tragédia cômica por sua causa", ela complementou em pensamentos.

— Malu, fale com ele! Fique do meu lado! — Ela se virou para a irmã. — Malu?!

Sua gêmea estava apoiada contra a parede, o rosto branco, as mãos comprimindo a têmpora.

— Malu, o que foi?!

— Eu... Eu não sei. Senti uma tontura. Foi... Foi estranho. — Malu agitou a cabeça. — Pai, o que é esse EQA que a carta menciona?

— Não sei, mas vamos descobrir.

O coração de Maju disparou.

Aquela carta — uma brincadeira, uma maldade — era como fogo na pólvora da loucura e na bebedeira do seu pai.

Era demais desejar um pouco de normalidade?

Era demais para pedir que nenhum motoqueiro idiota passasse na frente da sua casa e entregasse uma carta com uma mensagem que levava do nada para lugar nenhum?

— Viu só, Maju, viu só? — O pai agitou a carta no ar. — Eu sempre soube que havia mais coisa por detrás da morte da sua mãe. E mais alguém sabe sobre isso. E está tentando nos avisar.

— Então tirando com a nossa cara! — Maju esbravejou. — Por que somos motivo de chacota! Por sua causa!

— Foi bom fazer barulho. Foi bom não me calar. Alguém finalmente me ouviu. Temos um novo ponto de partida para nossas investigações.

Maju engoliu o choro, a decepção, o cansaço.

Queria os avós.

Queria a mãe. Mais do que tudo, queria a mãe.

— Se isso é verdade, por que a pessoa não entrou em casa, ao invés de se esconder atrás de um capacete?! Uma carta anônima, sem assinatura, sem provas, sem explicações... Isso não significa nada! — Uma dor de cabeça latejante pairava sobre ela. — Isso não passa de uma provocação! Mamãe era programadora! Trabalhava com desenvolvimento de software! Nós fomos até a empresa dela! Não tinha nada lá!

Mas nem o pai, nem a irmã, olharam para ela.

— Quero descobrir mais sobre esse EQA — Malu falou.

Maju balançou a cabeça e engoliu em seco. Era como se alguma coisa tivesse mexido com sua irmã. Não sabia explicar, não sabia nomear; mas sentia, tateava, pressentia. E ela teve certeza de que, a partir daquele dia, tudo ficaria ainda mais estranho e insano naquela casa.


***************


Atualmente


Pela janela do seu quarto de hotel, Maju acompanhou a transformação da noite em dia.

Dormir foi algo impossível. Ela tinha se levantado várias vezes, checado o corredor, espiado através da janela, olhado ao redor do cômodo; qualquer sinal de que houvesse sido seguida se mostrara um alarme falso. Mesmo assim, a inquietação não aliviou a pressão em seu peito.

Vou acabar ficando paranoica igual ao meu pai. Pagarei minha língua.

Tudo bem, precisava dar um pouco de crédito ao pai. Ele e Malu tinham descoberto, após anos a fios de pesquisa em cima da carta, que existia algo com as siglas EQA rondando as sombras do governo.

Mas aquilo tinha sido tudo o que encontraram em dez anos.

Dez anos!

E mais nada.

Nada.

Nem a identidade do motoqueiro.

Maju já teria desistido há muito tempo.

Só que eles não pararam. Aquela única e minúscula descoberta havia ditado o caminho profissional que sua irmã gêmea optara em seguir.

Enquanto tomava café da manhã no quarto, seu pai repassava as últimas informações que ela precisava assimilar. Em duas horas, teria que se apresentar no local onde Malu fora convocada.

— Sua irmã estudou, prestou inúmeros concursos, cresceu dentro das redes de segurança do governo. Sempre foi a número um em tudo. Sabíamos que era questão de tempo até ela se destacar. — Os olhos do pai brilhavam com um orgulho inconcebível ao falar da filha. Maju tentou não ficar encarando aquele brilho que fazia seu estômago se contrair e a boca secar. — E, finalmente, recebeu a carta de convocação do EQA.

O pedaço de bolo que mastigou e engoliu desceu raspando em sua garganta.

— Nunca entendi que merda é esse EQA.

Nunca entrou na minha cabeça como vocês se deixaram levar por uma carta anônima e uma informação aleatória. Nunca entendi como a Malu abraçou sua loucura, pai, e mergulhou nesta insanidade com você.

Malu era inteligente. Malu era brilhante.

Como tinha sido convencida pelo pai, sem provas concretas?

Como tinha se permitido conduzir por uma mensagem enigmática?

— Malu tentou caçar pelo máximo de informações possíveis — ele falou, terminando de beber seu café. — Chegamos à conclusão de que é algo entre uma organização e um esquadrão. Mas é tão sigiloso que nem mesmo as altas patentes podem falar sobre isso.

— Então, só estando dentro para saber?

Ele assentiu.

— Isso. E a Malu estava há um passo de entrar no EQA e confirmar se havia alguma veracidade naquela carta que recebemos anos atrás.

Maju assoprou uma mecha do cabelo que caía sobre seus olhos.

— Então, tenho que entrar nesse EQA, me passar pela Malu, descobrir se há alguma ligação com a morte da mamãe e cair fora?

Outra vez, seu pai assentiu.

Maju se poupou de comentar que aquilo seria muito mais difícil do que parecia. Que aquela obsessão já havia custado caro demais para toda a família. Mas o pai não precisava saber. Ela só precisava ganhar tempo para despistar Víbora, se esconder nesse tal EQA, pegar seu dinheiro assim que conseguisse e desaparecer.

"Para um lugar brilhante e especial".


**************


O caminho até o local onde deveria se apresentar foi costurado pelo silêncio e pelo som das ondas que estouravam no horizonte.

Aquilo não foi nenhuma surpresa para Maju, já que ela e o pai mal tinham assuntos em comum para conversar.

Quando seu pai desligou o carro, uma apreensão que não costumava sentir abocanhou seu estômago.

Isso está acontecendo. É real. Eu aceitei pegar o lugar da minha irmã que está em coma. Meu Deus. Onde estou com a cabeça?

O pai esticou a mão; Maju se desvencilhou do toque.

— Mais alguma instrução?

— Não É aqui que nos separamos, Maju. Mais uma vez, obrigado por ajudar a mim e à sua irmã. Isso é pela sua mãe.

— Assim que conseguir, me mande notícias sobre o estado da Malu.

Foi tudo o que disse.

Maju desceu do carro. Não se despediu do pai.

Você consegue, garota. É seu pescoço que está em jogo. Aguenta a situação. Despiste Víbora. E então, você poderá ir para onde quiser.

Ergueu o queixo, ajeitou a mochila no ombro direito e atravessou a entrada do lugar que mais parecia um forte medieval do que uma construção litorânea.

— Identidade? — um guarda lhe pediu.

Maju entregou todos os documentos que pertenciam à Malu.

A análise foi minuciosa; detalhista; por um momento, Maju achou que eles enxergariam através dela e toda a farsa seria desmontada.

O guarda lhe devolveu os documentos.

— Seja bem-vinda, agente Rios.

Ela anuiu e seguiu em frente.

Havia homens armados e postados em pontos estratégicos.

O negócio é sério mesmo.

Maju parou no meio do pátio, olhando em volta, sem saber ao certo o que fazer ou como se misturar. Não havia muitas pessoas ali. Pelo jeito, o EQA era bem seleto.

Daria um jeito de desempenhar o papel.

Podia não ser perfeita como Malu, mas era uma sobrevivente.

E aquilo teria que bastar pelos próximos dias.

— Malu!

Uma moça ruiva sorriu, acenou e correu em sua direção, se atirando em seus braços e lhe dando um abraço apertadíssimo. Maju tentou demonstrar o mínimo de choque possível.

— Er... Oi.

A moça se afastou, franzindo o cenho.

— Está tudo bem, Malu?

— Hã... Só estou com um pouco de enxaqueca.

— Nossa, que estranho. Nunca te ouvi reclamar de dor de cabeça.

Maju limpou a garganta, ajeitando a alça da mochila que teimava em escorregar por seu ombro.

— Sempre tem uma primeira vez, não é?

A moça entreabriu os lábios, ligeiramente confusa, mas antes que pudesse falar alguma coisa, um homem fardado surgiu no pátio.

— Agentes, em formação!

As palavras não fizeram muito sentido para Maju em um primeiro momento; foi somente quando ela viu os novos colegas se alinharem lado a lado em uma linha reta que ela compreendeu o que era para ser feito, e se pôs entre a moça que a cumprimentara e um moço de pele escura.

Maju percebeu que manter aquele comportamento seria entediante.

— Vocês foram recrutados para fazer parte do nosso esquadrão. Contudo, isso não significa que ainda estão aprovados. Durante as próximas semanas que antecedem a missão, vocês serão treinados e preparados pelo comandante Carbone, que vai liderar este esquadrão e decidir se vocês farão parte do EQA.

Será que ninguém vai me falar o que significa EQA?

— Sim, senhor! — todos responderam em uníssono, com exceção de Maju.

Droga; teria que começar a se sincronizar com os demais. Malu era um exemplo de perfeição e obediência. Não poderia deixar que ninguém suspeitasse dela.

— Agentes, conheçam seu novo comandante. — O homem gesticulou para o lado. — Comandante Carbone, se apresente!

Os passos do comandante eram militares, elegantes e calculados.

Tudo nele exalava um ar de controle, autoritarismo e poder.

Ele ergueu o rosto, fitando cada um dos agentes.

E, quando os olhos de Maju se encontraram com os olhos do líder do esquadrão, ela soube que estava ferrada.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top