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O último andar do complexo laboratorial da Amazônia era o mais interessante, segundo os visitantes que se interessavam por astronomia. Se nos outros andares as paredes de vidro permitiam admirar a natureza ao redor, no último, o teto arredondado de vidro abria a vista para o céu.
De dia, Mori comparava aquele andar como estar dentro de uma bolha de sabão e, à noite, como naquela, a impressão era de que o teto inexistia; poderia apreciar a lua minguante como se estivesse a céu aberto, sendo o silêncio e a temperatura agradável os únicos indicadores do recinto em que estava.
Ao longo da vista horizontal, era possível discernir os movimentos dos galhos mais altos das árvores chacoalhando as folhas como silhuetas sorrateiras debaixo da iluminação escassa das estrelas.
Sentada em um dos bancos do observatório, a Dra. Lírie apoiava os braços na mesa bege à frente dela, de onde saía a interface de um holograma com o qual ela interagia. Todos os móveis tinham cores pastéis e isso, por algum motivo, dava-lhe nos nervos; cores apagadas, facilmente ofuscadas por tons fortes. Às vezes, tinha saudade da tinta verde que usara no cabelo por anos, ainda que a cor branca lhe parecesse a ideal.
A decoração neutra percorria o corredor interminável e amplo tal qual um salão. As luzes emanavam de postes similares aos que se viam nas praças, com uma distância de dez metros entre eles. Seguindo a mesma direção do corredor e pegando 1/3 do espaço deste, um parapeito separava a área do trem-bala; estacionado, no momento, mas que em horário diurno transportava cientistas, biólogos e visitantes que necessitavam cruzar o laboratório em menos de um dia.
Cati estivera ali até pouco tempo, distraindo Mori de seus anseios e contando sobre a gestação de um tubarão-branco que estava acompanhando, contudo, com a aproximação da madrugada e sem obter êxito em convencer a jovem doutora a se recolher, precisou deixá-la à mercê da solidão silenciosa daquele recinto gigantesco.
Nem meia-hora se passou depois da partida de Catrin até que o som de passos se misturassem com o vídeo ao qual Mori assistia. Ela fechou a janela do programa jornalístico e levantou o olhar para seguir a aproximação de Li, que saíra de um dos elevadores protegidos por portas duplas de vidro próximas aos pilares de iluminação, até a imagem borrada dele aparecer por detrás do holograma.
Mori desligou a tela da mesa, cruzou os braços, segurando os cotovelos como se o frio de fora a afetasse, e andou até uma das paredes de vidro, obrigando Li a mudar a rota para encontrá-la.
— A reunião foi remarcada para daqui três dias — informou Li, assim que se postou ao lado da Dra. Lírie. — Mas será em um lugar diferente. Pegarei um avião amanhã para a Eurásia.
— Isso é preocupante? — A fala da doutora foi acelerada pela apreensão.
— Imagino que não. O alquimista que vai avaliar o projeto está lá. É só isso.
Nenhum tom apaziguador era capaz de bloquear os pensamentos insurgentes de Mori, que vinham cumprimentá-la antes de cada plano ou reunião envolvendo os harmínions. Aquele era um lado dela que nunca mudou: o pessimismo que a perseguia — mas que, por outro ponto de vista, poderia ser um ótimo artifício de defesa. O receio maior era trazer problemas a Li, como se ele não tivesse o suficiente com o que se preocupar. Ela não estaria ali se houvesse outra opção.
— E a Cindy? Ela tá por aí? — Era outro item, dentre os detalhes do plano, que ela precisava se certificar para aquietar a mente.
— Explorando o bioma do deserto.
— Quando ela volta?
— Em três dias, uma semana... nunca se sabe. Vou procurá-la assim que decidirmos o que fazer.
— Não vai dar certo sem ela.
— Eu sei.
A doutora observou o contorno da floresta na escuridão. O vento faria as folhas dançarem por mais algumas horas prenunciando a chegada da chuva. Mesmo com as aflições que a perturbavam, aquele cenário trazia certo aconchego; nada do que estava lá fora poderia atingi-la ali dentro.
— Depois que tudo estiver resolvido, o que pretende fazer? — Li impediu que a noite se encerrasse em pura contemplação. — Posso indicá-la para trabalhar aqui.
Por um instante, vento, árvores e pensamentos cessaram na mente de Mori.
— Você, sugerindo isso? — Ela deixou escapar um riso. — Achei que não suportasse a minha presença. E a Isadora? O que ela vai achar disso?
— O que ela deveria achar?
— Não sei. O que ela estava fazendo aqui hoje? — A bióloga continuou com a provocação; sabia onde terminaria, sabia que seria desagradável, mas talvez Li não contasse se o assunto fosse abordado de outra forma.
— Você sabe. Não quis colaborar, encontrei outros meios.
Depois de respirar fundo, Mori se voltou para ele com um olhar severo.
— Seria melhor se você desistisse dessa ideia — disse ela em tom convicto.
— Por quê? Tem alguma informação importante sobre o caso que queira compartilhar? — ironizou Li, mantendo uma expressão neutra quando, fosse outra pessoa com quem estivesse falando, decerto não se conteria em elevar o nível do sarcasmo com um sorrisinho arrogante.
Ela mordeu o lábio e fechou os olhos por um segundo, torcendo para que as próximas palavras conseguissem atravessar o crânio duro dele.
— A pessoa teve a memória apagada, não se lembra do que fez. — Falou devagar, ressaltando a importância da informação com um tom claro de alerta. — De que adianta querer vingança contra alguém que nem sabe o que fez?
Foi a vez de Li focar na visão da floresta como uma maneira de desvencilhar daqueles olhos suplicantes.
— Perda de memória justifica isentar uma pessoa de um crime? Ou só por que não se lembra significa que o crime nunca foi cometido?
Mori expirou o ar com impaciência.
— Não tem uma resposta simples pra isso! Mas... essa pessoa também tá sofrendo pelo que aconteceu... mesmo sem saber da própria culpa.
— E qual seria a opinião da Sílvia? Ela concordaria em perdoar esse amigo?
Li continuou impassível perante a perturbação de Mori.
— Como eu poderia saber? — A voz da bióloga abaixou a um tom de angústia. — Ela acha que o Maurício realmente morreu por nadar embriagado.
A verdade é que ela sabia. Depois do funeral do marido, Sílvia revelou um desejo de vingança provindo do ápice da tristeza em perdê-lo, mas nunca o direcionou ao amigo, delator de Maurício e atual presa de Li. E, agora, esse desejo inexistia, assim como as memórias de Sílvia relacionadas ao fatídico dia.
Sem intenção de prolongar a conversa, a única reação de Li foi de franzir de leve as sobrancelhas, as íris cinzentas e frias ainda fixas na escuridão noturna.
— Por isso estou pedindo para que deixe eles em paz — insistiu Mori. — O que pode ter acontecido para alterarem a memória da Sílvia? Se fizer alguma coisa ao amigo deles, ela pode sofrer as consequências. — Tomou ar para se acalmar e remover as emoções da voz antes de continuar: — Low, não é só uma questão de vingança. Isso pode afetar pessoas inocentes... pode afetar seus amigos... e a Alice também. Vale mesmo a pena arriscar a segurança deles?
A doutora Lírie não esperava uma resposta, mas vislumbrar as pupilas dele ao menos apontarem para baixo antes de focarem outra vez no escuro foi suficiente para causar nela a reação de cerrar os punhos ao lado do corpo e expirar inquietação para inspirar conformação — pelo menos, durante aquela noite.
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