CONTO 2 | Jungkook | Capítulo 2
Entra no apartamento como se fosse a dona do lugar. Seu olhar imponente me atinge como se me provocasse a desafiar sua autoridade. A cada novo passo vai matando a curiosidade por explorar o ambiente novo.
Examina todos os cantos com um andar altivo, como uma conquistadora pronta a torná-los todos seus. Testa os limites de onde ir e as possibilidades de conforto em cada móvel, o balcão da cozinha, a prateleira sobre a televisão, o pequeno espaço entre a mesa de canto e o sofá, até que se abanca no tapete felpudo da sala.
— Lili, Lili, se você fizer xixi no meu tapete, vamos ter problemas. — ameaço lhe apontando o dedo.
Boceja entediada, mostrando os dentes afiados em resposta, me ignorando por completo. Não é de hoje que conheço Lili, a gata cor de caramelo de Paola, minha melhor amiga. Costumamos nos dar muito bem, por sinal, sempre muito receptiva aos meus afagos e petiscos. Porém sempre na casa dela.
Agora ela está na minha.
Paola me ligou aflita. Perdeu o trabalho de garçonete e não tem como pagar o aluguel do próximo mês. Passaria uns tempos na casa do namorado, mas não podia levar Lili para viver com os dois cachorros da família dele.
Assim, ganhei uma colega de casa com seu banheiro portátil em forma de caixinha e uma lista enorme de cuidados. Recolher cabos e fios soltos, não deixá-la beber água do vaso sanitário, usar aquela marca especial de ração e somente ela e nunca, jamais, deixá-la sair de casa.
Em poucos dias criamos nossa rotina juntas. Acostumei com ela passeando sobre mim, me fazendo cócegas a cada posição de yoga, ou se metendo na frente do computador durante as aulas. Confesso ser reconfortante tê-la roçando nos meus pés enquanto vejo televisão.
Divirto-me assistindo as suas diferentes reações em relação ao alvoroço sobre nossas cabeças. De manhã, cada salto que se ouve de cima, gera um outro aqui embaixo, como se tentasse imitá-lo. Durante as cantorias na varanda, se posiciona no canto da janela, entretida.
Já as sessões de bateria causam o efeito oposto. Corre por todos os lados, tentando fugir arreganhando os dentes sempre que se ouvem os pratos. Acaba sempre encolhida por baixo da manta entre as minhas pernas, como se quisesse escapar de relâmpagos.
No outro dia, encontrei o isqueiro abandonado na pobre avenca. Diverti-me da falta de jeito do vizinho em deixar para trás o que o levou até ali. Um isqueiro azul bic, bem comum, sem nada que lhe chamasse a atenção. Não sei se foi pelo visual underground do rapaz ou pela atitude furtiva ao entrar na minha varanda, mas esperava mais estilo daquele pequeno objeto.
Depois de brincar um pouco com Lili, a provocando com o isqueiro, girá-lo umas vezes nas mãos em busca de qualquer informação a mais e acendê-lo só porque sim, decido o devolver na mesma moeda.
Subi os degraus bem devagar, evitando fazer barulho. Quando cheguei ao último degrau, tentei espiar para dentro, mas apenas vi uma parte da varanda. O teclado e alguns instrumentos de percussão estavam montados, metade para dentro da casa e metade para fora, com um tripé de telefone apontado para eles. No canto, havia um único vaso com um cacto e um varal com meias.
O último andar é um pouco diferente do restante do edifício de três pisos. A varanda não possui cobertura e é enorme, se conectando com o telhado. Senti a inveja me corroendo quase instantaneamente quando vi o tamanho do espaço externo que ele tinha. Porém, não tive coragem de explorar o local — como ele havia feito no meu — e deixei o isqueiro no topo da escada.
Passaram alguns dias e me pergunto se o terá encontrado. Estranhamente, não o tenho ouvido muito pelo lado da varanda. Quase como em resposta aos meus pensamentos, ele começa a cantar. Ouço-o caminhar para fora e perco a atenção de Lili que salta do meu colo para o seu cantinho no parapeito, ouvindo-o compenetrada.
A música para de repente e ouço passos na escada. Corro para o banheiro. Desta vez, com a tv ligada, a chaleira apitando e as luzes acesas não tenho como fingir que estou fora. Lavo o rosto e solto o cabelo por cima do moletom com manchas de molho de tomate, enquanto ele chama:
— Vizinha? Você está aí?
Caminhando do banheiro para a varanda, sinto um frio na espinha. Lili salta para a porta de vidro e o observa intrigada. Desta vez, ele se mantém na parte de cima da escada à espera da minha resposta com os chinelos tipo rider e as calças de corrida.
— Olá! Tudo bem? — digo abrindo a porta de vidro.
— Oi, muito prazer. Eu só quero agradecer por você ter encontrado o meu isqueiro. Deixei cair no outro dia e até pensei que tinha ido parar lá embaixo. — ele diz, inventando uma desculpa.
— Que isso, não tem de quê. — respondo tentando soar o mais natural possível.
A cada frase ele avança um degrau, já eu, quase sem perceber, passo de cabeça de fora para o corpo todo para lá da porta conforme ele se aproxima. Sorrio sem graça com o fim abrupto da conversa. Nenhum dos dois parece encontrar um novo assunto.
— Qual o seu nome? — perguntamos ao mesmo tempo.
Não temos tempo para apresentações. Lili aproveita o meu momento de distração e a pequena fresta aberta para fugir, subindo feito um raio pelas escadas. Pude ver o meu desespero refletido nos grandes olhos escuros arregalados à minha frente.
— O seu gato... — ele balbucia.
— Ela não é minha... E não costuma sair de casa. — explico engolindo em seco.
O pânico é um grande estimulante para a quebra de decoro. No instante seguinte estava entregando a minha vida nas mãos do vizinho, sacudindo-o pelos ombros, perguntando o que fazer e esquecendo por completo que estávamos a bem menos do um metro e meio da distância recomendada um do outro.
— Calma, calma. Ela subiu, não foi? Então deve estar lá por casa. Vem.
Gentilmente, ele juntou as minhas mãos junto às suas e conduziu-me para o andar de cima. Na varanda estava apenas o cacto solitário e uma cadeira de praia. A sala era na verdade o quarto, sendo a cama de casal o móvel mais próximo da entrada por aquele lado.
Ajoelho-me tentando ver se a bichana está ali por baixo e me deparo apenas com roupas amontoadas e algumas caixas. Sigo o vizinho para outro cômodo e tropeço em alguns pesos de ginástica, espalhados pelo chão.
O local é basicamente um estúdio sem o devido isolamento acústico. Vejo o teclado, uma guitarra e a detentora do meu ódio, a bateria. Pelo visto, também do de Lili, porque não demorou nada para a bicha demarcar território justo ali, bem no meio do bumbo. Tive de segurar o riso ao notar a decepção no rosto do rapaz.
— Ahhh, não. — ele reclama com a feição desiludida.
— Me desculpa, eu vou limpar tudo direitinho. Eu juro. — afirmo com as mãos junto ao peito.
Reviramos o lugar inteiro. Armários, caixas, panelas, cobertas. Em poucos minutos, passei de total desconhecida a profunda conhecedora de todos os recantos do apartamento vizinho. Mas para além do xixi vingativo na bateria, nem sinal de Lili.
Começo a tremer pensando no que poderá ter acontecido e em como poderia dar uma notícia destas para Paola. Sinto as lágrimas se formarem e mordo os lábios tentando retraí-las. Ele me traz um copo d'água e põe a mão no meu ombro.
— Nós vamos encontrá-la, carina. — diz me tranquilizando — Fica calma, eu estou com você.
— Como você sabe o meu nome? — pergunto desconfiada.
— Como? — ele parece confuso.
— Você disse Carina, como você sabe que esse é o meu nome?
— Carina, como bella? Você se chama carina? — diz apertando as próprias bochechas e imitando o sotaque italiano.
Como pude esquecer? Vivendo na Itália, me chamando Carina, esta era uma reação muito comum de italianos e mesmo estrangeiros que vivem aqui. Duvido muito que os meus pais soubessem, quando escolheram o meu nome lá no nordeste brasileiro, que ele significava algo como fofinha ou bonitinha na Itália. Nem que fosse uma palavra tão usada e muito menos que eu viria parar aqui.
— E você, como se chama? — pergunto ao rapaz sorridente à minha frente.
— Pode me chamar de JJ. — responde estendendo a mão.
Aperto-a e noto as tatuagens nos dedos que parecem continuar pelo pulso. Pergunto-me quantas existirão por baixo da camisa. Ele sorri notando a minha curiosidade e arregaça a manga, apresentando com orgulho o braço repleto delas.
Fixo-me na flor no cotovelo, uma imagem tão delicada em meio ao caos organizado de frases e ilustrações mais duras e ferozes. Acaricio-a de leve, sentindo a pele macia e percebendo a seguir o que fiz. Ele arregala os olhos, surpreso. Eu me desculpo e me afasto.
— Acho que ela deve ter descido, né? — digo sem jeito.
Desço os degraus e percebo que a porta está fechada, ela não teria como ter voltado. Desço para o outro andar, onde vive a proprietária do edifício, senhora Francesca. Bato no vidro e pergunto se viu alguma coisa.
— Põe a máscara, menina!! — a senhorinha diz me recordando que vivemos uma pandemia.
Cubro o rosto com a gola da camisa, mas Francesca não sabe de nada. Dou a volta no quarteirão e retorno pelo mesmo caminho, chamando por Lili. Percebo que JJ não me seguiu e estou sozinha na busca. Tudo bem, este é um problema meu, insisto em dizer para o meu coração magoado.
Dou mais algumas voltas, chamando por cima de muros, revirando contentores de lixo. Mas acabo desistindo. Subindo novamente as escadas começo a chorar, deixando o pânico me dominar. À porta de casa, JJ me espera encarando os próprios pés. Ao me ver soluçando, se aproxima com os braços abertos:
— Eu sei onde ela está. — afirma ao me abraçar.
Nunca senti tanto alento em um abraço. A minha respiração voltou ao normal, as lágrimas pararam de cair e a calma retornou. Mas continuamos ali, em silêncio no corredor, nos braços um do outro. Não tinha noção do quanto senti falta do toque de alguém e suspeito que ele também.
Ele se afasta devagar, me encara secando as minhas lágrimas e pergunta se eu estou pronta para resgatar Lili.
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Ufa, que essa Lili dá trabalho! Quem está pront@ para o resgate?
Pelo menos assim a Dona Carina percebeu que o vizinho de cima não é tão mau quanto ela pensava.
Se está gostando, não se esqueça de deixar a sua estrelinha e comentar! Eu vou adorar saber sua opinião, palpites e etc.
Beijo grande e até o próximo capítulo.
Ana Laura Cruz
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