CONTO 2 | Jungkook | Capítulo 1

Se fosse para escolher uma palavra para definir o meu vizinho, esta seria inacreditável. Não encontro forma melhor de descrever alguém que era tão despercebido de repente se tornar presente de tal maneira ao ponto de parecer que vive comigo em vez de no andar de cima.

Não me entenda mal, o ser que vive por cima de mim continua um total desconhecido. Porém, desde que este caos em forma de pandemia se instalou há alguns dias, o meu mundo se tornou a minha casa e, bem, o dele também. Só que no dele parece caber uma galáxia inteira.

Logo cedo começam os treinos de, imagino, crossfit. Saltos, batidas de ferros contra o chão, às vezes gritos de esforço e música alta. Altíssima. Uma hora de bate estaca diária assim que acorda. Uma delícia!

Além disso, parece sempre esperar quando eu começo a minha prática de yoga. É acender o incenso, estender o colchonete na sala, fazer três inspirações profundas organizando os chakras e pimba, começa a agitação por cima!

Acabo sempre mudando de planos.

Com mais de duas semanas de lockdown, não tenho muito para onde ir. Portanto a mudança de planos acaba por ser ir da sala para a cozinha apertada, usar fones e aproveitar o momento do banho do rapaz para a meditação.

Só que para além disso, ele canta. Ah, e como canta. Muito bem, devo admitir, mas se deixar é o dia inteiro. Deve ser algum tipo de influencer digital, porque vez ou outra dou por ele gravando lives na varanda com o seu teclado. Normalmente quando eu estou dando aulas online.

Sou professora de português na Itália. Como tantos, tive que transportar todo o meu agitado horário de trabalho para o meio digital. Antes ia e vinha de uma aula particular para um cursinho e, de novo, para outro tête-à-tête com algum aluno.

Agora sento-me em frente ao computador e espero que conectem um após o outro, dando uma olhada na minha timeline nos intervalos. Parece ser uma boa solução, mas pouco a pouco vejo-os irem embora. Muitos perdendo os seus trabalhos e sem dinheiro para continuar.

Vim para cá aprender a língua local e acabei ensinando a minha. Nada mais justo para uma estudante de Letras na Universidade de Bolonha, que decidiu fazer o curso depois de conhecer os encantos de La Rossa, como a cidade é conhecida.

Lá se vão três anos vivendo aqui, dois deles como professora de português, um e meio como estudante universitária e um ano morando neste apartamento. Deixei a família no Brasil para seguir o sonho de me tornar tradutora e intérprete. Uma profissão que me leva a outros países, mas que me mantém com um pézinho em casa.

Uma coisa é certa, por mais anseios que alguém possa ter quando opta viver longe da família, uma pandemia global que impede o convívio com as pessoas e apanhar um avião quando bem entender nem passaria pela cabeça de ninguém há poucos dias. Mas aqui estamos nós, isolados e confusos, separados por milhares de quilômetros, sem poder cuidar de quem se ama.

O mesmo deve se passar com o vizinho. Não identifiquei o idioma, mas o ouço falar constantemente em outra língua. Soa-me asiático, mas não tenho certeza. No entanto, posso afirmar sem dúvida que está sozinho como eu.

Talvez seja por vivermos em uma cidade agitada como Bolonha, mas não lembro de termos nos cruzado. Nem de ouvi-lo tanto antes, mas a bem da verdade, eu nunca parava em casa.

Entre as aulas, o estúdio de yoga e a saída com amigos, a minha casa sempre foi um lugar mais para dormir e guardar coisas. Com tanta atividade acontecendo por cima de mim nos últimos dias, não penso que fosse muito diferente por ali.

Esta manhã, perdi mais uma aluna e ouvi nas notícias que o lockdown será prorrogado. Pergunto-me quando este pesadelo coletivo, porém solitário, vai acabar. Tantos dias sem ver ninguém além do caixa do supermercado está me deixando deprimida. Quando sinto-me assim, vou à varanda observar o pouco movimento que ainda se detecta fora de casa.

Este tem sido o meu maior refúgio no pequeno apartamento quarto e sala. Um cômodo estreito cercado por grades de metal que se comunica com as varandas vizinhas através de uma escada de incêndio. Mal cabe uma cadeira e uma mesa, mas é só o que preciso e o melhor lugar da casa para as minhas refeições diárias sob o sol do fim do inverno.

Comprei mais alguns vasos com plantas, gosto de enfeitá-los com desenhos de padrões coloridos. Passo horas concentrada em cada um. Novas adições têm sido incluídas dia sim, dia não, entre elas uma avenca que hoje parece tão tristonha quanto eu.

Sento-me enrolada no xaile, encoberta pelo início da noite, observando o silêncio que pouco a pouco é quebrado. Um carro passa. Uma senhorinha sacode o pó dos tapetes no prédio em frente. A gargalhada de crianças que se ouve ao longe.

Deixo as lágrimas caírem sentindo o peso do mundo sobre os meus ombros. Assumindo a dor de todos como minha, querendo fugir para os braços da minha avózinha no interior do Ceará. Sentindo-me inútil e impotente diante da calamidade, tentando evitar o pânico crescente de que talvez não venha a reencontrar esse abraço tão amado.

Uma melodia recai sobre mim, consolando-me.

I know you're somewhere out there (Eu sei que você está em algum lugar por aí)

Somewhere far away (Em algum lugar distante)

Como sempre, o vizinho se faz notar. Porém, pela primeira vez, sua presença espaçosa é bem-vinda. Solto um risinho com a ironia da situação. O quão sozinha estou para me sentir reconfortada por alguém que me incomoda tanto?

Ele continua a cantar com a voz doce e fecho os olhos, me sentindo embalar pela canção. De repente ouço passos na escada. Abro os olhos aturdida e me deparo com botas de couro despontando nos primeiros degraus. Com um suspiro, ele larga o corpo e se senta no topo da escada, voltando a cantar.

Talking to the moon, (Conversando com a lua)

Trying to get to you (Tentando alcançar você)

In hopes you're on the other side talking to me too (Na esperança de você estar do outro lado, falando comigo também)

Or am I a fool who sits alone talking to the moon? (Ou eu sou um idiota que senta sozinho falando com a lua?)

Diz mais alguma coisa que não compreendo, mas que identifico. Confirmando as minhas suspeitas o vizinho é asiático, para ser mais precisa, coreano. Com um novo suspiro vindo das escadas, o ouço acender um isqueiro. Não só isso, mas também escuto quando o deixa cair tilintando nos degraus e parando no vaso da avenca à minha frente. Envergonhada, salto para dentro de casa o mais rápido e silenciosamente possível.

— Olá! Vizinha? Alguém em casa? — chama por mim em italiano, descendo os degraus devagar.

Escondida na penumbra por detrás das cortinas, o vejo invadir a varanda sem grandes cerimônias após um instante de hesitação no último degrau, esticando-se para tentar ver algum movimento para dentro. Acompanhando as botas de couro, veste calças rasgadas nos joelhos e jaqueta, também de couro.

O cabelo preto, grande o suficiente para lhe cobrir os olhos, parece lhe incomodar um pouco e o vejo sacudir a cabeça, jogando-o para trás. Um visual bem rock'n roll, que me surpreende. Em especial os piercings. Um na sobrancelha, outro no canto inferior do lábio.

Ele explora a pequena varanda com cuidado, sem pressa. Cheira as lavandas, acaricia as folhas do morangueiro, toca algumas vezes o sininho de vento e se detém observando a mandala pintada na parede. Os grandes e encantadores olhos absortos no desenho que fiz quando me mudei para ali.

Perco-me naquele olhar.

Quando dou por mim, primeiro me sinto culpada por observá-lo escondida. Depois percebo a situação ridícula em que me encontro, me sentindo culpada por espionar quem invadiu a minha casa. Corro na ponta dos pés até a entrada e destranco a porta, acendendo a luz e sacudindo as chaves com estardalhaço.

Escuto o som duro de um passo nos degraus, mas na sequência já não ouço nada. Rio imaginando a cara de espanto dele, saltando sobressaltado e fugindo nas pontas dos pés.

Ainda com um sorriso nos lábios, ponho-me em frente ao espelho. Ao me ver, constato ter tomado a decisão certa ao me esconder. Ui! Esta criatura desgrenhada não deve ser dividida com ninguém!

Solto o coque preso há tantas horas que os fiapos laterais parecem antenas. As ondas do meu cabelo castanho escuro caem emoldurando o meu rosto pálido. Quantas saudades do sol da minha terra, que me torna cor de bronze. Este inverno trancafiada tem me deixado cada vez mais amarela.

Observo os meus olhos cor de mel e me surpreendo com o quanto estão inchados. Lembro que estava chorando antes da visita surpresa e me detenho no sorriso em meu rosto. Agradeço em silêncio ao vizinho intrometido por me trazer de volta o ânimo.

Para me arrepender quase no mesmo instante quando ele começa a sua sessão, também diária, de bateria. Ou melhor, de aprender a tocar bateria, o que é pior!

-----------

Oi gente, 

Continuamos com os nossos clichêzinhos por aqui e, desta vez, o amor ronda a vizinhança em tempos de pandemia. PS: esta foi a primeira história que publiquei no wattpad, há alguns anos, e achei que combina demais com esta coletânea.

Alguém aí se vê representad@ na busca de paz de espírito da ... Opa! Quase revelei o nome dela, ufa, escapei de dar um spoiler 😉

No próximo capítulo vamos conhecer a minha personagem favorita desta história, me digam depois o que acharam.

Se está gostando, não se esqueça de deixar a sua estrelinha e comentar! Eu vou adorar saber sua opinião, palpites e etc.

Beijo grande e até o próximo capítulo.

Ana Laura Cruz

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top