Capítulo Quatorze

Os gritos vinham de longe.

Ele podia ouvi-los.

Era Zion? O que estava gritando? 

Espere... Zion não estava sozinho... aquela voz....

Jonathan? 

"Você precisa acordar, William" uma voz feminina sussurrou em seus ouvidos. 

William respirou fundo, como se estivesse debaixo da água durante longos minutos e finalmente tivesse conseguido subir à superfície, trazendo todo o ar possível para dentro de seus pulmões. Ele olhou ao seu redor, em busca de algo que lhe explicasse qualquer coisa à sua mente recém-desperta e confusa. 

Ele estava dentro de uma floresta não muito densa. As árvores ao seu redor permitiam um espaço grande o suficiente para olhar tranquilamente para o céu e ver o sol coberto por uma camada espessa de nuvens cinzas com tons roxos. O ambiente em si era mórbido e cinzento, as folhas das árvores amareladas, o chão coberto pelas folhas secas. O clima estava levemente frio. Com dificuldade, se levantou, continuando atado à árvore. Suas mãos estavam atadas detrás de suas costas, preso à uma das árvores. 

Som de folhas secas se partindo sob passos.

Alguém se aproximava. 

William encarou ao seu redor, em busca daquele que se aproximava, mas o som vinha de todos os lados, não sabia identificar. Sua respiração, aos poucos, se tornou ofegante, temendo pelo o que quer que estivesse chegando cada vez mais perto dele, com passos calmos e leves. 

- Finalmente. - A voz que sussurrara em seu ouvido antes disse. William olhou na direção dela, vendo uma pequena garotinha, talvez com seus doze ou treze anos. Usava um vestido colorido de traços africanos. Sua pele era morena, os cabelos encaracolados com um olhar de pesar por trás dos óculos de grau. - Achei que não acordaria. - Ele a conhecia, mas quem era ela... 

- Onde estou? O que é esse lugar e... quem é você? - Perguntou, tentando manter a calma. 

- Sério que não lembra quem sou eu? Nossa... tudo bem, vai lembrar depois. Isso que dá ficar tanto tempo longe. Acho que precisa de ajuda aí, não é? - Ela perguntou, rindo para ele. Devagar, ele balançou a cabeça, assentindo. Ela caminhou até ele, desamarrando suas mãos e o libertando. William massageou os pulsos vermelhos e machucados pelas amarras e então se voltou para a garota.

- Obrigado. Agora... sabe me dizer onde estou? - Perguntou. A garotinha olhou ao seu redor, pensativa. 

- Acho... que estamos dentro de você. - Ela respondeu. William arqueou as sobrancelhas, curioso. A menina apontou o dedo para a própria cabeça. - Aqui dentro de você. Sua mente, sabe. - Explicou. William soltou um longo "ah..." olhando ao seu redor. Sua mente era tão sombria e mórbida daquela forma? 

- Como eu vim parar aqui? 

- Tente se lembrar, William. - A garotinha disse. Uma dor dilacerante tomou a mente de William, que começou a respirar fundo, enquanto as memórias lutavam parar ressurgir. Aos poucos ele se lembrou de estar em São Paulo e receber uma ligação. Lembrou-se de Pedro e do quanto ainda estava irritado. Lembrou também de ver Julia quando saiu do posto policial e ela acompanhá-lo até um hospital.

Sua mente continuou a voltar. Lembrou-se do velho, do hospital e da baronesa. Ao rever a baronesa em suas memórias, um flash o fez vê-la morta, sem a mandíbula, caída no chão sobre o próprio sangue. Sua mente continuou a recordar e, de lembranças suas, se tornaram flashes, como se as memórias macabras que via agora, de várias criaturas sendo mortas enquanto ele corria pelos corredores daquele lugar insano, não pertencessem a ele. Seus dentes rangiam de acordo com que os flashes ficavam cada vez mais fortes, acompanhados dos gritos de Julia que ficavam cada vez mais altos e então, num último flash, ele se viu num espelho.

Mas aquilo não era ele.

Aquela criatura de olhos brancos e pele cinza banhado de sangue.

Aquilo... ele sabia o que era...

William caiu no chão, ofegante. Ele lembrava de tudo. 

Ele estava sob controle de Mulak.

- Então... só falta lembrar quem sou eu... - William encarou a garota. Sua mente começou a escavar mais e mais fundo, até finalmente se recordar. Seus olhos se encheram de lágrimas à medida que as lembranças daquele dia retornavam, vívidas, à sua mente. A boca de William se abriu lentamente, tentando balbuciar algumas palavras, enquanto a garotinha se aproximava dele, com os olhos se enchendo de lágrimas. 

- Eu... eu... - William tentava falar, mas as palavras lutavam contra. - Eu sinto muito... Foi minha culpa naquele dia... - As lágrimas começaram a cair de seus olhos, enquanto a garota tentava dar um sorriso de conforto para ele. 

- Não sinta, William. Você não fez nada errado...

- Eu... eu matei você...

4 anos antes

William se aproximava do local dirigindo,ao parceiros que haviam se unido à ele naquela investigação. De acordo com a pessoa que os contratou, três homens, cúmplices, haviam sequestrado a esposa e a filha mais nova de oito anos e tinham se escondido num antigo prédio abandonado na zona sul de Urupema. 

Era inverno, e por mais agasalhado que estivesse, o frio penetrava em seus ossos. William tinha certeza absoluta de que jamais se acostumaria com o frio. O bairro parecia ser um verdadeiro labirinto. Depois de quase uma hora procurando o prédio, finalmente o encontraram. Só de olhar para estrutura, podia se dizer que desabaria a qualquer instante. William parou o carro e voltou seu olhar para Michael e  Moisés, seus dois companheiros de investigação, ambos assentindo para ele, mostrando que estavam preparados para entrarem em ação. Ele respirou fundo, e então avançaram.

A porta da entrada do pequeno prédio de quatro andares estava aberta. Aliás, não tinha como trancar, a fechadura tão desgastada que caía aos pedaços. Para cobrir maior área e economizar mais tempo, o trio se dividiu. 

William seguindo direto para o terceiro andar, cada um de seus companheiros ficando com o andar anterior. O lugar era habitado por viciados e malucos, mas não fizeram nada com eles, olhando para ele como se não existissem. Enquanto William andava pelo terceiro andar, o seu celular tocou. Era uma chamada em grupo, ele atendeu e colocou o fone.

- Situação? - Perguntou.

- Primeiro andar limpo, não tem muito o que ver aqui. - afirmou Moisés.

- Segundo até agora limpo. Quer dizer... não tão limpo, mas vocês entenderam. - disse Michael, espirrando duas ou três vezes.

- Acabei de olhar o terceiro. Estou indo para o quarto, subam logo e cuidado: pelo que nos foi informado, são homens com problemas mentais sérios. De acordo com a senhora que pediu para encontrá-los, a mulher e filha de um dos três homens sempre apareciam machucadas, o que nos leva à violência doméstica. A mãe nunca deu queixa na polícia, talvez ele ameaçasse a vida da filha de oito anos caso ela o fizesse. O problema foi quando a família começou a morar na casa dos irmãos do cara, ambos com passagem na polícia, coisas relacionadas à sequestro, assassinato, e até mesmo abuso sexual e infantil... - Falava William, enquanto verificava um dos quartos do último andar.

- É... demônios existem... - disse Moisés. - Me solta rapaz, tenho nenhuma pedra pra você não! - Gritou, podendo ser ouvido pelo microfone o som dele empurrando alguém. - Eu hein, malditos viciados...

- Não Moisés... demônios não existem, só existem nós, humanos. Bons e ruins, sãos e loucos. Essa é a verdade. - Michael disse, espirrando mais duas ou três vezes.

- Profundo isso Michael. Bom, se demônios existem ou não, talvez nunca saibamos, mas quem está fazendo todas essas coisas são humanos, três deles, até onde sabemos. Enfim... Haviam rumores da parte dos vizinhos de coisas horríveis que poderiam estar fazendo com a mãe e filha. Quando eles perceberam que os vizinhos estavam começando a notar o que estava acontecendo, fugiram.

- Os desgraçados são bem espertos, estava pensando aqui comigo mesmo porque a mãe ou a família não deu um jeito de se liberarem... provavelmente enquanto eles deixavam a mulher livre, ficavam com a garota, como uma refém. Se a mulher abrisse a boca, eles matavam a garotinha. - Michael disse. - William, me encontrei com o Moisés, estamos revirando o andar que você acabou de passar para ter certeza, como está aí?

- Eu estou chegando nos últimos quart...- Antes que William terminasse a frase, um brilho surgiu diante de seus olhos e ele se agachou, desviando de um tiro, mirando imediatamente na direção do brilho e atirando três vezes, atingindo um homem alto, forte, cabelos negros, rosto enrugado, talvez com seus quarenta anos. Ele caiu no chão, morto. Provavelmente era o tal Felipe. 

Os três sequestradores e irmãos eram: Felipe, o mais velho dos irmãos, com 41 anos de idade, tendo trabalhado como personal trainer em algumas academias e vendendo anabolizantes ilegais em outras. Matias era o mais novo, tinha a idade por volta dos seus 26 anos, usuário de drogas pesadas durante alguns anos da vida. O irmão do meio, com 35 anos, era o Miguel, esposo de Sara e pai de Camila, as duas vítimas do sequestro. Ele havia servido no exército durante cinco anos. 

Um homem gritou, furioso, e avançou veloz contra William, que antes que pudesse mirar nele teve a arma arrancada da mão por outro homem. Os dois estavam bem em sua frente e não hesitaram em bater nele. William levou vários socos e chutes, até que conseguiu pegar sua faca deixado da jaqueta e cortar o ombro de um deles, que se afastou gritando descontrolado. Com certeza sob efeito de drogas. Desferiu dois golpes com a faca em direção ao segundo, provavelmente o Miguel, que conseguia se esquivar. William imediatamente chutou seu peito, e ele caiu girando no chão. William se agachou e pegou sua arma, mirando em Miguel.

- Parado! - Ele disse, O que aparentava ser o Miguel se levantou, ficando parado, o encarando com raiva. William se virou para Matias, que ficou imóvel, olhando para a arma na mão de William.

- Caraca, o que foi isso?! - Michael gritou pelo fone de ouvido.

- William, por que de entrada do quarto andar está trancada?! - Moisés perguntou, assustado.

- Acabei de render Matias e Miguel. Felipe, o mais velho, está morto. Arrombem a porta! - William respondeu, tenso. - Matias e Miguel Silva, estão presos por tanta coisa que nem vou listar aqui. E...

- O que foi esse barulho? - uma voz fina e doce perguntou. William se virou para sua direita e viu uma garotinha com as roupas rasgadas, suja e ferida o encarando. Ela tinha os cabelos cacheados, a pele morena, usando um vestido surrado com traços africanos. Ela olhou para os dois irmãos e voltou seu olhar novamente para William. - Moço, o que você tá fazendo? - Ela perguntou. William a encarava, assustado. A expressão facial da garota o fizera congelar por um instante. Quantas coisas aqueles pequeninos olhos não haviam visto, quantas coisas aquela garotinha não havia presenciado?

Infelizmente, William ficou distraído por tempo demais. 

Matias pegou a arma do irmão mais velho, caída no hão e pressionou o gatilho, descarregando toda a arma em direção à William, sendo atingido por um dos tiro na lateral do tórax. William atirou contra o seu rival, a bala atravessando sua garganta. 

Miguel, endiabrado, saltou em cima dele, segurando seus braços. Enquanto William tentava livrar-se dele, o mesmo acabou apertando o dedo de William, que zerou o cartucho da pistola. Miguel mordeu seu trapézio, e William num movimento desesperado, conseguiu agarrá-lo e o jogar para sua frente, ambos se levantando, William ofegando, a dor do tiro que recebera o consumindo a cada segundo. Miguel começou a desferir vários golpes contra William, que desviava o melhor que podia. 

William atingiu seu rosto com um cruzado bem no queixo, derrubando-o. A porta se abriu, Michael e Moisés entraram no local.

- Caramba... Você matou eles? - Moisés perguntou.

- Não todos... Esse aqui ainda está vivo, e bem drogado. Agora... - William disse. Antes que fizesse algo, Miguel se levantou e desferiu um último soco contra William, que caiu no chão, disparando acidentalmente, Michael e Moíses agarrando Miguel e o rendendo. Com dificuldade, William se levantou, olhando para a jovem Camila.

Seu coração, por um instante, congelou.

A pequena Camila o encarava, desnorteada. 

Tudo ficou em silêncio, enquanto William encarava a jovem Camila caindo ajoelhada, com um buraco de tiro em seu peito. 

Buraco do tiro que ele disparou acidentalmente. 

O mais rápido que pôde, correu até a garota e a pegou no colo. 

- Meu Deus, não... não... - ele repetia sem parar. A garotinha ainda respirava. - Pelo amor de Cristo, chamem uma ambulância! Moisés, procure a mulher, Michael, liga pra ambulância e vem comigo! - Gritava enquanto corria com a garota no colo. Ela não tirava os olhos dele. O peito inchando e desinchando lentamente, a cada respiração, seu corpo por inteiro tremendo. O rosto de William estava coberto por lágrimas. 

"Não... eu não posso ter feito isso... não posso... por favor, não morre, não morra" 

Michael corria atrás dele. Gritava alguma coisa, mas William não o ouvia. Tudo parecia estar mudo. Conseguia apenas ouvir o seu coração bater, e o coração da garotinha pulsando lenta e pesadamente. Não levou um minuto para saírem do prédio, William, a carregando no colo. Um ambulância se aproximava do lugar. William corria em direção à ambulância, olhando para a garotinha todo segundo.

- Por favor, resista! Não morra, você não pode morrer! - Ele chorava. 

Então uma mão fria tocou seu rosto. 

A mão da garotinha. 

Seu toque o fez paralisar. 

Ficou olhando para a garotinha acariciando seu rosto, e com um sorriso branco nos lábios.

- Moço... porque... - Ela falava com dificuldade. William queria pedir para que ficasse em silêncio, para não gastar energias, mas não conseguia. - Por que você está chorando? Não chora não moço, vai ficar tudo bem, os homens maus não vão me machucar agora, nem machucar você. Vai ficar tudo bem, ta bom? - Ela disse, sorrindo. William encarava aquela cena sem compreender como ou porquê ela dizia aquilo. Ela estava prestes a morrer, não tinha consciência disso? Ela continuava sorrindo para ele. Ele sorriu para ela, e segurou sua fria mão.

- É... vai ficar tudo bem. - Ele disse, sem parar de sorrir para a garotinha, que expirou e então fechou os olhos. O sorriso lentamente sumiu do rosto de William, que ficou encarando a garota, o cérebro tentando processar o óbvio: A garotinha estava morta. 

A ambulância chegou alguns segundos depois da garota ter fechado os olhos. Os paramédicos correram até William e pegaram a garota, ele caindo no chão, olhando o céu, sem querer acreditar naquilo que havia acontecido.  

Agora

- Foi minha culpa... eu sinto muito... - Repetia, em lágrimas. A jovem Camila se ajoelhou ao lado de William, acariciando seu ombro.

- O que aconteceu depois?

- Bom... os... jornais relataram que meus dois parceiros e eu havíamos salvado a mãe da garota, impedido que ela tivesse o mesmo destino da garotinha, que foi morta por um dos três irmãos. A sua mãe tendo enlouquecido nas últimas semanas... depois daquilo, meu mundo piorou mais do que eu eu achava que poderia. Mais do que o caso do "Desafio da casa"... Eu... foi minha culpa, eu matei aquela garotinha... eu matei você e você... tinha tanto para viver e... e eu tirei sua vida, porque não fui forte nem esperto o suficiente. Porque eu me distrai no momento mais crítico. Antes, minha equipe e eu tivemos a chance de interceptar os três irmãos várias vezes, mas por minha causa eles sempre conseguiam fugir para outro lugar antes de pegarmos eles. E... - Camila agarrou sua mão.

- Will, a culpa não é sua. Foi o Miguel quem te fez apertar o gatilho. Ele me matou. Na verdade... ele já havia me matado várias e várias vezes. Você me salvou no fim. Eu vi isso. E você.. William, você me fez sentir algo que eu não sentia há anos.

- O... o quê?

- Paz. - Camila respondeu, sorrindo. O céu começou a se rachar, as árvores a cair ao seu redor. - Quando você me carregou, demostrando preocupação, me fez sentir. Eu me senti em paz, depois de tanto tempo de sofrimento, ao ver alguém que demonstrou se importar comigo. William... precisa se perdoar. É o único jeito. - Ela disse. William olhava ao seu redor, o mundo se destruindo. Não entendia o que estava acontecendo. Mas então ao rever o sorriso daquela garota em sua mente, a calma e simplicidade, e sua preocupação em acalmar William... ela o tinha perdoado. Por que então ele não se perdoaria?

- Vai ficar tudo bem, ta bom? - Ele ouviu a garota dizer. Ela não estava da mesma forma que antes. Usava um vestido azul e branco, o cabelo penteado, sem nenhuma ferida no rosto. Ela sorria para ele, aquele sorriso tão belo e puro. Sua mãozinha estava estendida para ele. William agarrou sua mão e a abraçou. Uma luz forte o cegou, mas ele sequer se importava com aquela luz. Uma paz pairou sobre seu coração. Quando a luz forte sumiu, a garota também havia sumido, e a floresta agora estava cinzenta, uma neblina pairava pelo lugar. Mal se podia ver a luz do sol. Apesar de estar sozinho, sabia que alguém o observava.

- Estou preso num sonho, é isso? - William perguntou.

- Mais ou menos isso... Uma outra coisa está controlando seu corpo, William, e o único jeito de você ter uma chance contra ele é destruir as correntes que enfraquecem sua mente. Eu fui uma das maiores correntes e você conseguiu se livrar dela, a criatura sentiu isso. Lembre-se, William: você já passou por uma situação como essa, em que tinha que enfrentar seus medos para escapar. Agora é a mesma coisa. É como o desafio da casa, só que dentro de sua mente.

- Bom... quantas etapas faltam?

- Só mais duas, talvez essa tenha sido a mais difícil. Vamos, siga-me.

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