Fase 5 | Dever
Os ouvidos do velho ainda zumbiam e o cheiro de fumaça pairava no ar. Podia sentir a poeira grudada em seu rosto suado, ainda sem entender o que diabos havia acontecido. A visão turva gradualmente se ajustou à penumbra, revelando destroços e fragmentos de objetos pelo chão, iluminados apenas pelo débil feixe de luz solar que adentrava o ambiente sabe-se lá por onde.
Ele estava sentado no assoalho de madeira com as costas apoiadas no que um dia fora a parede do escritório. Correu os olhos ao redor e constatou que nenhum móvel havia sobrevivido ao que quer que tivesse acontecido. A exceção foi um grande cofre caído à sua frente. E atrás dele, o corpo do senhor Waltz jogado no chão. Estava vivo.
Vozes vinham de fora e um sem-fim de "cracs" e "crecs" saiam das paredes e do teto. O homem tentou puxar da memória o que acontecera, mas a cabeça não ajudava. Finalmente pousou os olhos na perna esquerda e de repente a costela fraturada no dia anterior já não doía tanto assim. "Droga," pensou.
Algum tempo se passou até que o senhor Waltz abrisse os olhos e mais uns minutos até que recuperasse as capacidades. "Os idiotas instalaram os tanques de combustível ao lado dos escritórios!" Foi o que disse, mas logo se arrependeu do tom e se retratou com pesar: "Iríamos começar a mudança hoje..."
"Neste caso," murmurou o velho, "acho que os homens vão ter o dia de folga." Pedro olhou para ele surpreso. Talvez fosse o desespero da situação ou talvez o fato de nenhum deles esperar aquela dose de humor, mas os dois começam a rir. Contidos, no início, mas gradualmente as risadas se tornaram gargalhadas. Riram tanto que precisaram secar as lágrimas em seus olhos e, da mesma forma como começou, a risada cessou subitamente.
Foi o silêncio que se seguiu que os trouxe de volta à realidade: estavam presos nos destroços de uma explosão e suas vidas estavam em risco. "Você está bem?" Pedro perguntou. O velho fez que sim com a cabeça, mas ambos sabiam que não estava. "Os homens já devem ter acionado os bombeiros," o engenheiro disse, "devem estar retirando os escombros à procura de sobreviventes. Fique tranquilo, vão nos achar."
Pedro se levantou com calma, ainda não sabia se o corpo sofrera alguma fratura. Começou a avaliar cuidadosamente seu entorno. Os destroços e fragmentos testemunhavam a intensidade da explosão que o havia enclausurado ali. A fraca luminosidade o obrigou a usar as mãos para analisar as paredes rachadas. Sentiu seu peito apertar ao constatar que as rotas de fuga estavam bloqueadas por uma montanha frágil de escombros. CREC. O som fez a espinha gelar.
"O que o fez mudar de ideia?" O velho perguntou, tomando a atenção Pedro. "Sobre Chico, por que desistiu do acordo?" complementou a pergunta. O engenheiro fez uma longa pausa para escolher as palavras certas. A verdade é que ele mesmo não sabia descrever o real motivo. Tomara a decisão de cancelar o acordo apenas quando o velho entrara em seu escritório naquela manhã. "É uma longa história," disse por fim. E o velho respondeu apontando para a perna: "Não vou a lugar algum".
Pedro olhou para perna do homem e sentiu náuseas. Um lasco grande de madeira se desprendeu de um dos móveis na explosão e encontrou seu lugar enfincado na carne do velho. Havia muito sangue e era difícil de olhar. O engenheiro voltou sua atenção para os escombros e decidiu contar sua história. Falou de Charlie, do pai e de como fora "convencido" a virar engenheiro. Falou de como se sentiu — e ainda sentia — e também da dor que viu nos olhos do velho no dia anterior. Falou que não era homem de voltar atrás na palavra, mas não achava certo comprar Chico. E o velho ouviu com atenção e ponderou cada detalhe.
Por um tempo o espaço foi preenchido apenas pelos sons abafados que escapavam das paredes destruídas. A história contada ainda ecoava na mente do velho e no coração do engenheiro. A quietude pesava sobre eles, carregando reflexões e incerteza. "Acho que seu pai é um bom homem," o velho quebrou o silêncio. Pedro ofegou com ironia: "Um encanto."
O velho percebeu o ressentimento na voz do rapaz e disse: "Não perca tempo com isso, garoto." Pedro o encarou em busca de uma explicação. "Já é a terceira vez que você passa as mãos neste lugar," o homem ferido explanou, "não há como sairmos daqui e nós dois sabemos disso. Você realmente quer gastar seus últimos momentos acariciando estas paredes?" Um profundo sentimento de impotência inundou Pedro e seus olhos se encheram de lágrimas que teimavam em não cair. Era angústia, resignação e uma compreensão dolorosa da inexorável verdade: aqueles eram seus últimos momentos, aprisionado na escuridão. "Sente-se aqui," disse o velho. E Pedro se sentou.
"Sabe... quando minha filha nasceu lembro que pensei sentir a maior felicidade que um homem poderia sentir," o velho começou e por algum motivo já não doía mais lembrar da filha. "Mas foi quando vi pela primeira vez o rosto de Maria, minha neta, que finalmente entendi o que era o verdadeiro amor." Ele suspirou tomando forças para continuar: "Uns anos atrás, Maria foi diagnosticada com uma grave condição de saúde que a deixou muito abatida. Chico foi um presente de minha filha para ela, numa tentativa de amenizar sua dor. E que no final funcionou, já que Maria amou aquele animal desde o primeiro momento em que pôs os olhos nele. O amou mesmo sem nunca o ter montado, pois ele representava a esperança de que um dia ela melhoraria."
"Então na véspera de seu aniversário, pedi para que minha filha e seu marido fossem ao centro comprar uma cela para Chico, como presente para Maria. Eles foram, mas demoraram muito para voltar. Achamos que fosse por causa da garoa que caia e transformava todo o chão em lama. Até que tarde da noite alguém bateu na nossa porta. Minha esposa correu para atender, preocupada. Era um policial. Ele precisava que o acompanhássemos. Pediu que fossemos ao necrotério. Minha filha e meu genro estavam mortos."
O estômago de Pedro deu um nó. Não sabia por que o velho estava contando toda aquela história e só pensava na dor que sentiria se perdesse o próprio filho. Não queria pensar naquilo em seus últimos momentos, mas não teve coragem de interrompê-lo.
"Os anos que se seguiram, como você deve imaginar, não foram bons. Maria se fechou por meses e sua condição chegou ao ponto de se tornar irreversível. Mas foi sua relação com Chico que a salvou. Aos poucos ela transformou a dor em uma espécie de amizade com o cavalo. E quanto mais o tempo passava, mais Maria se apegava a ele. Até que ontem eu disse a ela que nós o venderíamos." O velho se lembrou do que sentiu na noite anterior e de repente a perna já não doía tanto assim. "Então por que vendê-lo?" Pedro perguntou. E o velho olhou no fundo da alma do rapaz sentado ao seu lado e respondeu: "Porque nós fazemos o que tem que ser feito pela nossa família."
Pedro se lembrou da última discussão com o pai, anos atrás, e as coisas começaram a fazer sentido. Ele não perguntou o real motivo do velho vender o cavalo, mas sabia que tinha que fazê-lo. Sabia que a decisão não fora fácil, mas necessária. "Eu nunca perguntei seu nome," ele disse. "Tomas," o velho respondeu. "Bom, senhor Thomas," continuou o engenheiro. "Quando sairmos daqui, terminaremos nosso acordo."
Tomas sorriu, mas sabia que não sairiam dali. A não ser que... "Tive uma ideia," ele disse, "Me ajude a levantar." Pedro hesitou por um momento pensando se o homem suportaria a dor na perna, mas decidiu agir, afinal sabia que não tinham muito tempo. Apoiou o braço de Thomas por cima de seu ombro e o levantou lentamente. Sentiu a pele queimar — o velho ardia em febre. Tomas era forte, mas não conseguiu segurar o grito de dor ao apoiar parte do peso do corpo sobre a perna dilacerada.
"Abra o cofre," pediu o velho e Pedro hesitou mais uma vez, "Não tem dinheiro aí dentro," brincou o engenheiro incerto, "só a papelada da fábrica." Tomas gemeu de dor mais uma vez e respondeu: "Nenhum dinheiro no mundo nos ajudaria agora, rapaz. Só abra o cofre e tire tudo de dentro." E Pedro obedeceu de imediato. Abriu o cofre e retirou os calhamaços de papel de lá. Pegou na mão o caderno com o qual havia passado dias e noites trabalhando para resolver os problemas da fábrica e parou. "Foi tudo em vão," ele suspirou. "Isso aqui resolveria tudo."
Os olhos e ouvidos de Thomas avaliaram rapidamente a situação então ele disse: "Ótimo, deixe o caderno aí dentro." E antes que Pedro pudesse perguntar o motivo, Thomas reuniu toda a força que ainda tinha no corpo velho e doente e deu um forte soco na boca do estômago do engenheiro. Thomas conhecia bem o efeito que um soco daqueles causava. Os pulmões ficavam sem ar, as pernas bambeavam e o corpo perdia o equilíbrio. E foi nesse momento que o velho aproveitou para empurrar Pedro para dentro do cofre e fechá-lo lá.
Quando Pedro se recuperou, tentou abrir a porta do cofre por dentro, mas estava trancada. Chutou, bateu e gritou, porém não tinha chances contra as grossas paredes de ferro. "Me tire daqui! Está ficando louco?!" ele urrava. Mas o velho já não dizia mais nada, o corpo havia desabado no chão e mal tinha forças para falar. "Por favor, Thomas, peço que pense bem no que está fazendo," pediu Pedro. E Thomas pensou e disse: "Tem razão, me diga o segredo do cofre que eu o abrirei."
Pedro ditou o segredo devagar e ouviu que o velho fazia alguma coisa do lado de fora, mas não estava tentando abrir o cofre. Com a voz rouca e fraca Thomas finalmente disse: "Lembre-se do nosso acordo, senhor Waltz." E as palavras fizeram Pedro entender o que o velho homem estava fazendo. "N-Não... Não faça isso, por favor não faça isso... Nós vamos encontrar outra solução." Ele implorou duas, três, dez vezes! Mas a decisão já havia sido tomada e Pedro sabia que o velho não mudaria de ideia. As lágrimas desta vez caíram e com elas o teto e as paredes do lugar.
Tudo desmoronou.
Foram dois dias de busca até os bombeiros encontrarem o corpo de Thomas. Não souberam identificar se havia falecido pelo desmoronamento ou pela perda de sangue da perna. Sangue este que fora usado para escrever "24D-36E-67D" na lateral do cofre. Um dos bombeiros entendeu a mensagem e usou o segredo para abri-lo. Encontrou Pedro lá dentro, desacordado e desidratado. Mas vivo. O levaram imediatamente ao hospital. Ficou internado e acordou depois de 3 dias — chorou por mais 3.
As semanas seguintes foram tomadas por intensos debates entre políticos, operários, empresários, jornalistas e qualquer um que estivesse vivo nos arredores de São Paulo. Tudo o que se falava era sobre o acidente na fábrica de automóveis. Pedro não teve descanso nem tempo para o luto, era o engenheiro responsável afinal. Mas mesmo no meio da tempestade, conseguiu ir até a casa de Thomas. Falou com a viúva por horas. Conheceu Maria. Choraram juntos. E ao final, disse que o acordo estava de pé.
Nas semanas seguintes, Maria foi operada e tudo correu bem — a doença havia sido curada. Pedro foi até o hospital ver a garota. Sentiu a tristeza nos olhos dela ao vê-lo chegar. E a felicidade ao ouvir que o homem não levaria o cavalo. "É pela dívida que tenho com seu avô," explicou antes de sair, "ele salvou minha vida."
E quando Pedro finalmente teve uma folga, decidiu viajar com a família para o interior.
Foi visitar a mãe.
Foi rever os irmãos.
Foi falar com o pai.
1989 palavras
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