Terceiro conto: A rena
Rodrigo abriu os olhos naquela manhã quente de dezembro e desejou que não tivesse que levantar. Ao seu lado, Simone, a mulher que tinha seu coração, ainda dormia tranquilamente, o rosto sereno e pacífico contra o travesseiro em meio a bagunça embaraçada de seus cabelos longos cacheados. O simples ato de olhar para ela enchia seu coração de alegria e gratidão por ser tão abençoado, por ter encontrado alguém que o fazia sentir tão completo e feliz.
Ao lado de Simone, todos os dias eram natal.
Mas neste em especial, Rodrigo tinha uma missão.
Há alguns dias atrás, Rodrigo pensava que teria o natal mais perfeito e tranquilo de sua vida, afinal era o primeiro que passaria em família com seus pais, a mulher que amava e os pais dela, ele não poderia se sentir mais completo.
O problema estava em seu enteado de 13 anos de idade, Eduardo.
Não é que Rodrigo não gostava do filho da esposa, não tinha problemas com o fato dele ser fruto de outro casamento, pelo contrário, amava Eduardo como se fosse seu próprio filho desde quando Simone os tinha apresentado – tinha inclusive se emocionado com tamanha demonstração de que estava sendo aceito por Simone não somente como um romance, mas parte da família. O problema estava no fato de que nada disso era recíproco, aliás, nenhum pouco recíproco.
Mesmo agora após o casamento, Eduardo ainda via Rodrigo como um parasita na sua casa.
Rodrigo vivia em busca de oportunidades de se aproximar do garoto, fazendo coisas que ele gostava – o que era muito difícil, pensando que pré-adolescentes não gostam de quase nada além do celular hoje em dia – e até tentando compra-lo como o pai bonzinho da casa, convencendo Simone a deixa-lo sair e outras coisas assim. Então em um jantar que tiveram juntos em família, com a intenção de ser aceito pelo enteado e fazê-lo se sentir mais confortável com ele por perto, Rodrigo tinha soltado a pergunta da qual iria se arrepender por muito tempo:
- Então, Edu – O garoto nem mesmo levantou a cabeça ao ouvir sua voz e continuou a comer em silêncio, enquanto Simone lançou-lhe um olhar encorajador, sempre incentivando a interação entre os dois – O que quer ganhar do Papai Noel esse ano?
O silêncio que veio em seguida foi totalmente constrangedor.
Simone olhou para Rodrigo com um olhar questionador que ele não entendeu nenhum pouco, afinal, crianças com 13 anos ainda gostam do Papai Noel, não?
Eduardo finalmente levantou a cabeça e olhou para Rodrigo, que quase comemorou a interação.
- Quantos anos você acha que eu tenho?
Rodrigo se ajeitou na cadeira, repentinamente desconfortável.
- Sei qual é a sua idade, mas todo mundo gosta de ganhar presentes, não é? Só queria saber o que você gostaria de ganhar.
Eduardo cerrou os olhos para Rodrigo.
- Para que você se sinta mais como meu pai?
Em resposta a essa pergunta, Simone lançou um olhar reprovador para o filho.
- Tudo bem – Continuou o garoto – Uma rena. Uma dessas que o Papai Noel tem. Esse é o presente que você precisa me dar para ser oficialmente aceito na família.
E continuou a comer.
Simone ainda olhava séria para o filho como se quisesse deixar claro que desaprovava seu comportamento, mas Rodrigo não estava nenhum pouco focado nisso. Estava mais focado na oportunidade que o garoto o estava oferecendo e isso tinha um significado enorme para ele. Ainda se lembrava do dia que tinha ouvido sobre o pai de Eduardo, a forma como tinha mentido para o garoto quando ele ainda era muito pequeno, dizendo que estava indo embora, mas que voltaria para busca-lo e então viveriam juntos em outro lugar. Simone contou que Eduardo tinha esperado de malas feitas por semanas, mas o pai nunca tinha voltado e já se faziam 7 anos.
Por essa razão Rodrigo não sentia raiva do garoto por trata-lo mal, pelo contrário, só queria ganhar a confiança dele, e era dessa forma que interpretara o pedido inusitado de Eduardo, mais como uma prova de confiança do que uma provocação, que foi como Simone chamou a situação quando conversaram mais tarde.
- Esquece essa história de rena, ele pediu isso porque sabe que você não vai conseguir.
- Como você sabe que não vou conseguir? – Rodrigo estava convencido – É só uma rena, não é um presente comum, mas não é impossível...
Simone colocou as mãos em seu rosto, o olhar carinhoso e compassivo de sempre.
- Sabe, uma das maiores razões de eu ter me apaixonado por você é esse seu coração puro.
Rodrigo sorriu.
- Pensei que tinha sido porque sou bonitão.
- Sei que quer ganhar a confiança dele, e vai conseguir. Uma hora ou outra ele vai perceber o quanto você se importa com ele de verdade, mas não deixe ele manipular você.
Aquele conselho ecoava na mente de Rodrigo mesmo dias depois do acontecimento, mas nada tirava sua determinação de que conseguiria uma rena para o garoto, custasse o que fosse. Então acordou bem cedo no dia da véspera de natal, se aprontou e saiu sem dizer nada, pensando que teria uma viagem e um dia muito longo pela frente, mas valeria a pena.
Dirigiu por mais horas do que tinha calculado, o trânsito transbordando de gente que tinha trabalhado até o dia anterior e só tinha a véspera do natal para viajar e ver os entes queridos, outros que como ele não tinham planejado a viagem muito bem e agora teriam que lidar com as consequências. Mas Rodrigo tinha toda a paciência do mundo, disso podia se orgulhar.
Enquanto dirigia pela rodovia, olhava as placas de aviso que indicavam a presença de animais por perto e ficava instintivamente animado. Significava que estava chegando ao destino.
Estava dirigindo para o parque ecológico dirigido pelo seu tio no interior de São Paulo, lugar onde ele costumava visitar quase sempre na infância para ver os animais que ele resgatava de áreas de risco e que não tinham mais condições de serem soltos para viverem por conta própria na natureza. Rodrigo se lembrava bem do dia que tinha visto a rena pela primeira vez, tinha vindo de outro estado para ser tratada com seu tio, que era um veterinário procurado e respeitado por todo o país.
Se lembrava do quão encantador fora o momento de ver um animal que ele mesmo pensava pertencer somente às histórias bem de perto e se animou pensando em como Eduardo poderia se encantar da mesma forma.
Ao chegar no parque, foi recebido pelo tio com um pássaro que ele nunca tinha visto na vida pousado em seu ombro. Seu tio Antônio era um estudioso, veterinário com doutorado e especialização em áreas que ele não entendia, mas desde que Rodrigo se lembrava, o tio parecia um daqueles aventureiros que gravavam documentários vivendo no meio da floresta com pouco ou nenhum mantimento. Os cabelos brancos sempre desgrenhados, quase como se quisesse parecer um ninho para que os pássaros se sentissem confortáveis perto dele.
- Diguinho! Há quanto tempo espero uma visita sua! – O tio o recebeu com um abraço caloroso, usando o apelido que costumava usar quando Rodrigo era apenas um garotinho.
- Pois é, Tio Tonho, faz muito tempo que não venho aqui, e depois de tantas horas no carro eu me lembrei o porquê.
O tio riu com as palavras de Rodrigo. Era realmente um caminho muito fora de mão e cansativo, mas naquele dia Rodrigo tinha um bom motivo para visitar. Olhou ao redor para o parque do tio, apreciando o quão bom e tranquilo era o clima por ali, apesar do calor que parecia estar sempre em seu máximo.
- Tio Tonho, não quero parecer grosseiro, mas preciso ir direto ao assunto – Rodrigo começou a falar, fazendo o tio parar de contar sobre todas as mudanças que tinha feito no parque desde a última vez que tinham se visto – O senhor lembra da rena que veio para cá quando eu era um menino?
Tio Antônio franziu o rosto, como se tentasse resgatar o acontecimento na memória.
- Acontece que eu preciso dela emprestada, só por essa noite, podemos colocar a cela no fundo da caminhonete. Prometo dirigir com ela de volta pra cá o mais rápido possível independente do horário, mas essa rena realmente faria o meu natal, ou melhor, o natal do meu enteado...
Rodrigo desembestou a falar, mas quanto mais ele falava, mais confuso seu tio aparentava estar, até que tio Antônio ergueu a mão, interrompendo a fala de Rodrigo.
- Meu filho, que história sem pé nem cabeça é essa que você tá me contando? Como é que vai levar esse animal selvagem sozinho pra cidade em pleno trânsito de véspera de natal? E o pior, quem te falou que existe rena no Brasil?
Rodrigo estranhou.
- Como assim não tem rena no Brasil? O senhor já me mostrou uma rena uma vez.
- Não era uma rena, filho, era um cervo. Um cervo do pantanal pra ser mais exato, são chamados de renas brasileiras por serem muito parecidos, mas aquele que você viu aquele dia nem aqui mora – Enquanto tio Antônio falava, a expressão esperançosa de Rodrigo murchava – Eles são criados lá no Rio Grande do Sul, se você tivesse me contado tudo isso antes...
Rodrigo mal ouviu o restante da fala do tio. Como pôde ser tão ingênuo a ponto de pensar que conseguiria uma rena no Brasil àquela altura? Definitivamente, seu natal estava arruinado. Não somente quando era pequeno, mas até poucos segundos atrás Ronaldo acreditava que tinha conhecido uma rena pessoalmente e não uma rena de mentira, Eduardo nunca o aceitaria se aparecesse com uma rena de mentira para ele.
- Me desculpe não poder ajudar, Diguinho... – O tio parecia genuinamente chateado, mas Rodrigo não soube mais o que dizer, apenas foi se despedindo com a promessa de que ainda voltaria lá com a família para visitar o tio, mandando um beijo para todos que não podia ficar para ver e voltou para o carro.
Antes de começar a viagem de volta, Rodrigo ponderou se poderia passar o natal ali mesmo, assim se pouparia da tristeza de continuar sendo rejeitado como padrasto. Não podia evitar, era um homem muito emotivo e tinha depositado muitas expectativas naquela rena. Pelas suas contas do tempo de viagem, chegaria em casa somente no fim da tarde e provavelmente não teria tempo de comprar outro presente para Eduardo, e nem conseguia pensar em algum que seria tão bom quanto aquele.
Em um ato de desespero, ligou para o seu irmão, Ronaldo.
Após alguns toques, o irmão atendeu.
- Alô? – A voz de Ronaldo pelo telefone soou meio trêmula.
- Ronaldo? Onde você está?
Rodrigo pôde notar um leve tom de decepção no irmão ao ouvir sua voz, mas resolveu ignorar.
- Onde você está? – Ronaldo rebateu.
- Bom, eu não estou em casa ainda, mas esperava que você pudesse me encontrar. Preciso de ajuda.
Rodrigo não sabia exatamente como o irmão poderia ajuda-lo, mas sabia que sozinho e desesperado não conseguiria chegar a lugar algum, precisava de reforços, só esperava que o irmão compreendesse sua situação.
- Que tipo de ajuda?
Ao ouvir a pergunta do irmão, Rodrigo hesitou. As chances de Ronaldo ser mais um que acharia graça de sua busca eram enormes, principalmente conhecendo o irmão e sabendo que ele fazia piada de tudo, e ele não precisava ser mais desencorajado, tinha um bom motivo para estar fazendo aquilo, mas se não tentasse, nunca saberia.
- Você sabe onde eu poderia encontrar uma rena? – Rodrigo fechou os olhos enquanto falava, como se o irmão pudesse vê-lo e fechar os olhos fosse uma forma de se esconder. Os segundos anteriores à resposta de Ronaldo foram uma tortura.
- Uma rena? No Brasil? – Ronaldo falava baixo, mas o deboche em seu tom de voz não podia ser disfarçado – Que tal tentar nos Estados Unidos?
Rodrigo suspirou audivelmente e se despediu para desligar o telefone. Se queria mesmo completar sua missão, teria que fazê-lo sozinho.
- Esqueça, eu posso me virar sozinho...
Ligou o carro se preparando para a longa viagem de volta e ligou a música numa estação de rádio qualquer que alternava entre chiados e alguma música sertaneja. Enquanto passava pela rodovia, olhando as placas que indicavam animais por perto, notou que a silhueta do animal utilizada era sempre a de um que parecia um cervo. Rodrigo sentiu mais raiva ainda por não ter conseguido o que queria.
Para completar sua onda de azar, o trânsito parecia estar ainda pior do que na hora da vinda.
Rodrigo chegou novamente na cidade de São Paulo com o dobro de cansaço e desânimo para o Natal. O que antes ele pensava que seria um dos melhores natais de sua vida, agora ele pensava que seria decepcionante para Eduardo perceber que ele tinha falhado. Ele tinha tantas expectativas para aquele momento, tinha comentado sobre isso com a esposa a semana inteira, ela mesma tinha dito que não era preciso ele se esforçar tanto, mas Rodrigo sabia que ela também estava animada para o momento que Eduardo e ele finalmente se dariam bem e o garoto finalmente se permitiria confiar nele.
Era por isso que mesmo sabendo que talvez Eduardo nem tinha falado sério, Rodrigo tinha levado aquilo muito a sério. Era por isso que a rena importava tanto.
Parou no milésimo farol vermelho naquele dia e foi quando ouviu a propaganda no rádio: Venham passar com a gente a véspera deste natal! Traga as crianças para conhecerem o Papai Noel, a Mamãe Noel e os duendes! E mais: a presença ilustre das renas brasileiras que chegaram hoje com o Papai Noel! Só no Shopping Central!
Rodrigo congelou depois de ouvir a palavra "rena" soar pelo rádio, quase não pôde acreditar em tamanha coincidência, e como se para provar que não tinha ouvido errado, quando estava prestes a sair em disparada em direção ao Shopping Central que não era muito longe de onde ele estava, foi obrigado a pisar no freio quando uma rena atravessou seu caminho bruscamente.
Dois ou três carros atrás dele o acompanharam com a freiada enquanto a rena parava de frente aos faróis, olhava nos olhos de Rodrigo e voltava a correr.
Antes que Rodrigo pudesse reagir, o som da porta do passageiro abrindo chamou sua atenção, onde um garoto com a aparência de não muito mais que vinte anos usando uma roupa de ajudante de Papai Noel entrou.
- Siga aquela rena! – O garoto exclamou, se esticando para colocar o cinto de segurança.
- Que raio...? – Rodrigo quis contestar, mas mudou de ideia, deu novamente a partida no carro que tinha morrido no meio da confusão e passou a perseguir a rena.
O animal fazia seu caminho por entre o trânsito de São Paulo chamando a atenção toda para si, alguns carros freiavam bruscamente a ponto de quase bater uns nos outros, pessoas corriam e outras alcançavam o celular numa velocidade impressionante para tentar registrar o acontecimento. Quando mais surpresa a rena causava, mais ela corria.
Rodrigo tentava seguí-la sem violar nenhuma regra do trânsito, mas era quase impossível.
- Cara, você precisa meter o pé nisso aí! – O garoto exclamava, se remexia como se fosse incapaz de se sentar quieto por muito tempo – A gente vai acabar perdendo ela!
- Esse animal é seu? – Rodrigo resolveu perguntar, se perguntando como um garoto jovem como aquele teria um animal exótico como aquele.
- Mais ou menos. Estou responsável por elas só por hoje... Cara, esquerda! Ela virou a esquerda! Oh céus, eu deveria ter roubado teu carro e dirigido eu mesmo...
- Tem mais de uma? – Rodrigo tentou ignorar o comentário sobre o garoto ter pensado em roubar o carro dele e continuar a perseguição.
O garoto suspirou e Rodrigo pôde ver ele confirmando com a cabeça pelo canto do olho.
Perseguiram a rena por alguns quarteirões até verem ela pulando a cancela do Parque Ibirapuera e desaparecer por entre as árvores e a multidão, fazendo as crianças gritarem e as mamães esconderem seus pequenos no processo.
Mais sons de carros quase batendo foram ouvidos quando Rodrigo arrancou com o carro para entrar no estacionamento do parque, mas não pôde mais acelerar quando a calcela e um guarda pararam no seu caminho, esperando que pagassem pelo estacionamento.
- Não se preocupe cara, eu reembolso você depois que a gente pegar ela – O garoto permanecia inquieto, tremendo a perna esquerda como um tique nervoso.
Rodrigo bufou, pegando a carteira para pagar o guarda.
- Não precisa de reembolso, você só precisa prometer que meu filho vai ter exclusividade pra ver essa rena.
- Cara, se você me ajudar, eu coloco seu filho pra pilotar um trenó inteirinho movido a renas.
Rodrigo sorriu, incapaz de conter a animação.
Assim que o carro foi estacionado – de qualquer jeito e em qualquer vaga – ambos desceram do carro e correram em direção ao lugar onde tinham visto a rena pela última vez. Uma multidão se amotoava como um bando de paparazzis buscando uma celebridade, repórters independentes em busca de um furo de reportagem.
Rodrigo pensou em como passariam por entre aquela confusão.
Foi quando o garoto que estava com ele tirou do bolso da roupa natalina um apito e o assoprou com força, fazendo a multidão inteira se virar em direção a ele. Rodrigo se perguntou como um garoto tão mirradinho e jovem poderia querer execer alguma autoridade sobre tantas pessoas.
- Atenção pessoal! Eu sou o responsável pela rena – O garoto começou a falar, tirando de dentro da blusa uma espécie de crachá de trabalho, que foi como Rodrigo descobriu que seu nome era Murilo – Ela é um animal muito dócil, mas se assusta com facilidade. Eu e o meu amigo aqui - Se virou para Rodrigo, que acenou, constrangido com toda a atenção – Vamos contê-la, mas precisamos que vocês colaborem e nos deixe fazer nosso trabalho, ok?
A multidão passou a murmurar, mas não houve ninguém que contestasse as ordens de Murilo. As crianças olhavam encantadas pelo funcionário do Papai Noel que estava ali para resgatar a rena, Rodrigo podia ver em seus olhinhos que achavam tudo aquilo muito mágico. Rodrigo desejou que Eduardo também estivesse ali, para vê-lo ajudando o ajudante de Papai Noel.
Saíram então em busca da rena fugitiva, algumas pessoas o seguiam de perto, mas ninguém ousava fazer barulho, a notícia havia se espalhado e agora as pessoas observavam em expectativa o resgate que estava para acontecer.
Rodrigo seguia de perto os passos de Murilo que parecia saber exatamente o que fazer, era como se já tivesse passado por aquilo antes.
Murilo parou bruscamente, fazendo todos que o seguiam pararem também.
- Ela está ali – Sussurrou para Rodrigo – Perto do lago, ao lado dos arbustos, está vendo?
Rodrigo acenou que sim. A rena se refrescava com a água do lago, descansando tranquila.
- Você sabe que não é uma rena de verdade, não sabe? – Sussurrou ainda mais baixo, para só Rodrigo ouvir – É um cervo do pantanal, que corre mil vezes mais rápido que nós por causa das pernas longas e finas.
- E o que vamos fazer se ela correr?
- A questão, cara, é não deixar ela correr. Você é bom com o laço?
Antes que Rodrigo questionasse, Murilo num movimento só desamarrou ambos os cadarços de seu calçado, indicando para que Rodrigo fizesse o mesmo, e fez com eles uma corda grande e firme o suficiente para laçar a rena.
O público olhava em silêncio, curioso demais para dizer qualquer coisa. Havia todo tipo de pessoa ali, famílias com crianças, casais, um grupo de amigos hippies, outro de adolescentes que Rodrigo olhou de relance e pensou que conhecia, mas não conseguiu prestar atenção, se virando para receber as ordens de Murilo.
- Ela me conhece, então vou me aproximar pela frente, enquanto você espera por trás, caso ela tente fugir, você vupt.
Murilo entregou o cordão para Rodrigo sem dizer mais nada.
- Espera – Rodrigo tentou chamar aos sussurros, mas Murilo já andava em direção a rena – Eu sou péssimo de mira, Murilo!
A pressão era muita com muitas pessoas olhando em expectativa e o presente de seu filho em jogo – e o respeito do mesmo por ele também – mas mesmo assim Rodrigo se posicionou próximo a rena, longe o suficiente para ela não conseguir vê-lo, mas próximo suficiente para não deixa-la fugir (assim ele esperava).
O ar parecia estar até pesado com o medo e a expectativa das pessoas para ver o que aconteceria com a rena, mas Murilo era mesmo um profissional, se aproximou conversando com o animal calmamente, as mãos na frente do corpo de forma tranquilizadora. Falava muito baixo para que pudesse ser ouvido, mas Rodrigo conseguiu captar parte da conversa.
- Meu salário depende que você volte para o Shopping, ok amiguinha? E meu anel de noivado depende desse salário, então seria incrível se você pudesse colaborar, eu prometo que compro um pacote de salgadinho de requeijão só pra você dessa vez...
Murilo não aparentava nervosismo, mas ao ouvir aquilo, Rodrigo entendeu que não era o único com alguma coisa em jogo ali. Murilo também estava trabalhando na véspera de natal por uma razão, por algo que importava muito para ele. Aquilo deixou Rodrigo ainda mais motivado a usar aquele laço da melhor forma possível, surpreenderia seu enteado aquele natal e de quebra, salvaria o natal de outro cara. Era o espírito de natal crescendo dentro dele, fazendo-o querer sorrir e o seu nariz coçar.
- Merda – Rodrigo ainda conseguiu falar antes que um espirro avantajado voasse pra fora de suas narinas sem que ele pudesse controlar.
Toda a atmosfera de tranquilidade foi quebrada, Murilo ainda lançou um olhar em pânico para Rodrigo quando a rena voltou a correr.
O animal correu exatamente em direção a Rodrigo, como se estivesse determinado a passar por cima dele, mas Rodrigo estava preparado. Firmou com os pés no chão, pronto para laçar os grandes chifres do animal com sua corda improvisada. Quando a rena estava próxima o suficiente, Rodrigo pegou o laço e jogou em sua cabeça, conseguindo laçar o pescoço do animal e sair da frente antes de levar uma chifrada, tudo na maior velocidade que pôde.
- Eu consegui! – Rodrigo gritou, levantando as mãos como um campeão de boxe, recebendo palmas e assovios da multidão – Murilo, você viu isso?
- Cara, segura essa corda! – Murilo vinha correndo de onde estava, gritando desesperado para Rodrigo.
Antes que fosse tarde demais, Rodrigo percebeu que tinha laçado a rena, mas não estava mais segurando a corda e o animal continuava correndo, levando a ponta da corda consigo. Rodrigo pulou com todo o corpo no chão, alcançando a pontinha do cadarço com as duas mãos antes que não fosse mais possível pegá-lo.
Quis gritar para comemorar, mas não pôde, percebendo que ele tinha alcançado o cadarço, mas a rena continuava a correr, carregando Rodrigo consigo.
Rodrigo não ousou gritar, apesar do desespero, temendo que se abrisse a boca, poderia engolir toda a grama que acertava seu rosto. A rena corria incrivelmente rápido para um animal que carregava um homem adulto além do próprio peso, e pelos cálculos de Rodrigo, se ele tentasse se levantar poderia levar um coice no rosto, se tentasse parar o animal de alguma forma na velocidade em que estavam, a rena poderia cair em cima dele e acertá-lo com os chifres, ou os cascos, ou qualquer outra parte facilmente usada para feri-lo.
- Cara, aguenta firme! – Ouviu a voz de Murilo gritar, mas não ousou olhar para trás para ver como o socorreriam, apenas continuou segurando firme na rena, pensando que não tinha chegado até ali para simplesmente deixa-la escapar.
E então sentiu bruscamente outro par de mãos agarrando seus pés. Era Murilo, fazendo extrapeso para impedir a rena, que somente diminuiu a velocidade, mas não parou de correr.
Rodrigo ouvia os gritos de Murilo sem entender o que ele dizia, a única coisa que ele podia fazer era torcer para que o garoto se limitasse a segurar em seus tornozelos, caso contrário, as calças de Rodrigo não conseguiriam se manter mais no lugar, ameaçando baixar e expor sua cueca – com sorte, seria somente a cueca – na frente de todas as pessoas no parque.
Enquanto era acertado no rosto por todo tipo de coisa que estava no chão e ele preferia não pensar no que era, Rodrigo não conseguia parar de pensar no que dizia sua esposa, que talvez ele era mesmo muito ingênuo e tentava demais. E se tudo aquilo não valesse a pena?
Repentinamente, a rena deu uma freada brusca, quase pisoteando o rosto de Rodrigo no processo, que aproveitou a deixa para rolar para o lado e se levantar, impedindo a rena de correr mais. E a corrida tinha acabado.
Ao redor, as pessoas aplaudiam e gritavam pela missão cumprida do resgate da rena. Murilo se levantou do chão, a roupa de ajudante do Papai Noel antes em perfeito estado, agora suja de barro e grama e até rasgada em alguns lugares, o que fez Rodrigo pensar em quão péssimo deveria ser seu próprio estado.
- Cara, você é incrível! Não fraquejou nenhum pouco! – Murilo gritou para Rodrigo, pegando a corda de suas mãos cansadas e o parabenizando.
Rodrigo ainda estava um pouco tonto, mas recebeu tantos parabéns naquele momento que não podia evitar em se sentir incrível. Murilo caminhou sozinho com a rena para perto do lago, despistando os curiosos e acalmando o animal, verificando se ele não tinha se machucado. Quando a multidão começou a se dissipar, só restava saber: o que tinha feito a rena frear?
- Pai! – Rodrigo ouviu de repente a voz de Eduardo, que caminhava em sua direção – Que trabalho em equipe!
Rodrigo mal pôde acreditar. Eduardo estava acompanhado de alguns de seus amigos, que Rodrigo lembrava ter visto mais cedo, mas não tinha reconhecido.
- Você me chamou de... – Rodrigo tentou falar, mas a emoção não o deixou terminar.
- A gente cercou ela! – Eduardo contava rindo com os amigos, era a primeira vez que Rodrigo o via tão animado, gesticulando com os braços abertos enquanto falava – Eu parei de frente pra ela assim e ela ficou com medo, acho, e aí parou. Foi demais!
Os amigos concordaram, cada um contando sua parte da história com a mesma animação, comentando sobre como Rodrigo tinha sido corajoso ao pular para segurar a corda, mesmo com o risco de ser arrastado pelo animal.
Eduardo olhou orgulhoso para Rodrigo.
- Não acredito que você achou mesmo...
- E quando foi que eu menti pra você? – Rodrigo sorriu para o filho, sentindo que pela primeira vez podia realmente chama-lo assim e seria recíproco. De fato, a rena tinha sido um divisor de águas para a relação dos dois.
E com as roupas sujas e rasgadas, Rodrigo ajudou Murilo a levar a rena de volta para o Shopping completamente satisfeito com o trabalho que tinha feito, e em seguida dirigiu com Eduardo de volta para casa. Quando chegaram, Eduardo contou animado sobre o que tinha acontecido para a mãe, e mais tarde contou de novo para os familiares durante a ceia. Para todos os que ouviam, tinha sido uma loucura, mas para Rodrigo, vendo o filho sorrir e falar bem dele pela primeira vez, teria valido a pena qualquer loucura para presenciar seu milagre de natal.
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