Segundo conto: A troca
O funcionário da loja anunciou mais uma promoção pelos alto falantes, causando alvoroço entre as mamães desesperadas, madrinhas e padrinhos esforçados e familiares baba-ovo de crianças de toda São Paulo. Fazer compras de natal era a coisa menos favorita de Ronaldo, a multidão impulsionada pelo consumismo a comprar desesperadamente, os estímulos visuais que triplicavam em todo o lugar e faziam a cabeça dele doer e todas as outras responsabilidades natalinas que só quem tem crianças em casa sabe quais são.
O pior era não saber como sua vida tinha se transformado naquela bagunça tão rápido, em um momento passava o natal viajando com seus pais, recebendo presentes e comendo todo tipo de comida deliciosa e, de repente, estava preso na tarde da véspera de natal numa loja de brinquedos superlotada pois não queria estragar o natal do Natan, seu filho de quatro anos, dando a ele o boneco do "vingador errado". Afinal, como ele poderia saber que alguém no mundo iria preferir um boneco do Thor ao do Capitão América?
- É seu dever de pai saber essas coisas, Ronaldo! – Sua esposa tinha dito aquela manhã, após gritar muito com ele dizendo que se Natan não ganhasse o Thor, aquilo "destruiria seu mundo" – Apenas cumpra o seu dever!
Então lá estava ele, na fila de troca para cumprir seu dever e não ser taxado novamente de um péssimo pai.
- Você não me acha um péssimo pai, acha? – Ronaldo olhou para seu filho Enzo, de apenas um ano, que o encarava de volta do bebê conforto. Ele amava ser pai, amava sua família e faria de tudo por eles, mas não podia evitar se sentir perdido ás vezes. Devia ter escutado com mais atenção ao que seu pai dizia quando ele ainda só pensava em casar, que criar filhos hoje em dia era muito diferente de quando Ronaldo era criança.
E de fato era muito diferente, Ronaldo se lembrava que se pedisse uma bola e ganhasse um par de meias, não deveria reclamar, caso contrário seu irmão ficava com seu par de meias e ele ficaria sem nada. Hoje em dia, ah hoje em dia...
Antes de concluir o pensamento, Ronaldo virou a direita e teve a visão pela qual estava esperando, o corredor dos bonecos de super herói. Além das cores que geralmente tinham, as prateleiras da loja de brinquedos estava repleta de luzes coloridas, piscando num ritmo só delas, além de galhos de pinheiro espalhados, neve falsa, desenhos da cara gorda do Papai Noel por toda parte. Aquilo para Ronaldo, após uma tarde cansativa de correria com os preparativos de natal, estava sendo uma tortura, mas Enzo no bebê conforto analisava tudo com os olhinhos brilhando e parecia se divertir.
Com muito esforço, alguns empurrões e caretas das pessoas ao redor por estar tentando passar um bebê conforto numa loja tão cheia, Ronaldo conseguiu chegar ao único boneco do Thor que restava na prateleira.
Esticou o braço para pega-lo, vitorioso.
- Ah, que sorte... – Exclamou, e então deu um pulo, estranhando. Tinha falado em uníssono com outro pai ao seu lado que também tinha se esticado para o Thor, que olhou feio para ele. Naquele milésimo de segundo no qual se olharam e em seguida olharam para suas mãos segurando o boneco juntos, Ronaldo soube que teria um natal mais difícil do que imaginava.
- Bem, amigo, como resolveremos isso? – O outro pai falou, a voz mais ameaçadora do que amigável.
Ronaldo suspirou, apoiando o bebê conforto no chão.
- Eu preciso desse boneco ou minha esposa pode se divorciar de mim por ser um péssimo pai – Respondeu calmamente, mesmo sabendo que não adiantaria em nada contar toda sua triste história com o vingador errado.
- E eu preciso dele justamente por não ser um péssimo pai, e a minha menina precisa do boneco do Thor para completar a coleção.
Quem olhava de fora sabia o que estava acontecendo, estava escrito nos olhos de ambos os pais que uma guerra fora travada, o natal dependia do super herói plus deus nórdico de cabelos e barbas longas. Era como um Papai Noel boa pinta que carregava um martelo para castigar crianças que foram más ao invés de presentear as boas, e nenhum dos dos pais parecia disposto a abrir mão dele.
- Sua menina já tem o Capitão América? – Perguntou Ronaldo, com o sorrisinho mais simpático que pôde forçar no momento estampado no rosto, mostrando o vingador errado que estava prestes a devolver.
O outro pai não parecia nenhum pouco afim de forçar simpatia.
- Ela precisa do Thor, amigão.
Ronaldo olhou desanimado para o outro pai e se compadeceu, ambos estavam ali basicamente pelo mesmo motivo: bons pais querendo demonstrar seu amor a seus filhos. Sua consciência o lembrou que bons pais não comprariam o presente errado e nem deixariam algo importante como o boneco que completaria a coleção da filha para a última hora, então na realidade não eram bons pais, eram só dois pais desesperados para não serem os responsáveis por estragar o natal das crianças. Pensou em oferecer dinheiro, mas sabia que não funcionaria. Pensou em talvez usar a força, mas o outro pai era alguns centímetros mais alto e mais musculoso, além de aparentar ser alguns anos mais jovem e mais disposto a brigar do que ele. Além do mais, não podia brigar com Enzo ali.
- Que tal se nós perguntarmos ao lojista se há algum sobrando no estoque? Talvez tenhamos sorte... – Sugeriu.
Obteve como resposta mais um suspiro impaciente do outro pai, que adotava cada vez mais uma postura ofensiva.
- Se quer tentar, fique a vontade, eu vou levar esse boneco, meu amigo – Cuspiu para Ronaldo, a paciência de véspera de natal quase se esgotando, o que era perceptível pelo uso de uma variação da palavra "amigo" pela terceira vez.
Ronaldo odiava o que esse feriado fazia com as pessoas. Depois de ter se tornado pai e aprendido sobre a real correria que o natal era, tinha aprendido que o espírito natalino – aquele mesmo com bondade no coração das pessoas, alegria e amor, biscoitinhos no forno – era coisa de cinema. O natal tinha se tornado em algo que podia se resumir naquela cena, dois homens adultos brigando sobre quem iria comprar o Thor. Consumismo a rodo.
Um lojista estava passando por ali naquele momento, se apertando pela multidão, Ronaldo o segurou com a mão livre pela camiseta.
- Esse boneco – Falou – Não tem mais nenhum em estoque além desse?
- É véspera de natal, amigo – O lojista respondeu, Ronaldo teve que respirar fundo por estar sendo chamado de amigo pela quarta vez em menos de meia hora – E estamos quase fechando. O que está na prateleira, é o que tem na loja.
E saiu sem esperar para ver se Ronaldo diria mais alguma coisa.
Realmente a loja estava fechando e era a única ainda aberta às seis horas da tarde na véspera de natal. A multidão de procrastinadores de presentes de natal já estava se dissipando e finalizando suas compras, as prateleiras estavam todas já reviradas e semi-vazias, compostas ainda somente por brinquedos de marcas menos famosas e com algum defeito de fábrica, e Ronaldo sentia que quando pegasse o celular em seu bolso, haveria mais de uma ligação de sua esposa perguntando sobre onde ele poderia estar.
- Escuta... – Ronaldo começou a falar determinado em levar aquele boneco para casa, mas ao ver a postura ofensiva do outro pai, se sentiu cansado.
Não estava tão louco ainda ao ponto de brigar dentro da loja com seu filho de apenas um ano por perto – que já tinha começado a reclamar no bebê conforto deixado no chão perto dele – mas parecia que era o único ali que pensava que não valia a briga, logo, tomou a única decisão sensata que poderia tomar àquela altura.
Lentamente, soltou o vingador nórdico e já pôde ouvir a bronca que ouviria mais tarde ressoar em seus ouvidos.
- Um feliz natal para você e sua filha – Falou, antes de pegar Enzo e se dirigir até a saída, derrotado.
Andou devagar até o carro, completamente desanimado para chegar em casa. Naquele momento, sim, se sentiu um péssimo pai. Apesar de ter sido a decisão certa e adulta a se tomar, não era o momento de ser correto e nem adulto. Era véspera de natal, céus! Seu desespero deveria tomar conta e não sua moral, sua consciência ecoava, deveria ter se agarrado àquele boneco como se sua vida dependesse dele.
Abriu a porta traseira do carro, colocando o bebê conforto para dentro.
- Pelo menos eu usei do espírito natalino, não foi? Fui bonzinho, não acha, filho? – Falava com a criança no bebê conforto enquanto se preparava para coloca-lo no carro.
Foi quando seu coração foi arrebatado pelo maior desespero que já tinha sentido em toda a sua vida. O bebê conforto que segurava era idêntico ao seu, incluindo as cores e os acessórios, mas o bebê deitado ali olhando para ele, não era o seu bebê.
- Mas que m...? – Se segurou para não gritar, rapidamente pegando o bebê conforto com a criança dentro, chutando a porta do carro para fechá-la desajeitadamente enquanto corria atravessando o estacionamento de volta para dentro da loja, apenas para encontrar um dos funcionários trancando as portas e as últimas pessoas saindo, parando para olhar estranho o pai que corria com um bebê pelo estacionamento.
O coração de Ronaldo batia enlouquecido.
- Por favor! Vocês têm que me ajudar – Tentou argumentar, mas o funcionário apenas deu as costas para ele, preocupado apenas com ir para casa aproveitar o próprio natal e não com o natal arruinado de outro.
***
Renata estava tendo o dia mais agitado de sua vida, agitada com os preparativos da casa, cozinhando e preparando o que ainda seria cozinhado, recebendo visitas vindas de longe especialmente para a ocasião ao mesmo tempo que lidava com todo o stress de ser mãe solteira de um bebê agitado como Valentina.
Não que sentisse falta do estorvo que costumava carregar que era seu ex-marido, mas sentia falta de um par extra de mãos, principalmente em dias como aquele. Para uma coisa Renata podia dizer que seu ex-marido prestava e era para receber bem as visitas, estava sempre fazendo sala, sabia fazer com que todos se sentissem bem-vindos e sabia distrair Valentina quando ela mesma estava ocupada, coisa que mais ninguém sabia fazer, principalmente porque Valentina estava na fase de não gostar de mais ninguém além da própria mãe.
- Tem certeza de que não quer que eu faça isso? – Clara, irmã de Renata, se aproximou enquanto ela cortava os legumes da salada de batatas com Valentina presa no canguru.
- Absoluta – Renata respondeu, sem parar o que estava fazendo – Só vou precisar mesmo que você entretenha o papai e a mamãe quando eu sair hoje a noite, ok?
Clara gemeu em frustração.
- Papai e mamãe não podem ser entretidos com nada. E você tem mesmo que trabalhar hoje, em plena véspera de natal?
Renata suspirou. Outro fato importante sobre ser mãe solteira, qualquer oportunidade de ganhar dinheiro era válida para provar que podia sustentar a si mesma, sua casa e sua filha sem problema algum, principalmente numa profissão com pouco cenário de atuação como contadora de histórias.
Sim, Renata era contadora de histórias, esse era seu sonho há muito tempo e com o bom salário do marido, tinha tido o privilégio de seguir essa carreira pois como ele mesmo vivia repetindo, não importava que ela ganhasse dinheiro e sim que fizesse o que a fazia feliz. E só agora ela percebia que essa ideia tinha sido péssima, por isso aceitava toda oportunidade de trabalho que aparecia, inclusive na véspera de natal. A ideia de um dia o ex marido usar sua falta de profissão registrada para obter a guarda de Valentina a assombrava todos os dias.
- Sabe o quanto esses caras vão pagar pra eu contar uma historinha rápida pra um marmanjo roqueiro qualquer? – Exclamou para Clara, vendo a irmã soltar uma risadinha.
- Aliás, isso é bem estranho. O som dos Anchors at the Sea é bem pesado, ainda não acredito que você vai lá contar uma história de criança para um deles.
Renata também riu.
- Lembre-se de não contar pra ninguém.
A oportunidade de trabalhar na véspera de natal tinha surgido há algumas semanas atrás, pouco tempo depois dos papeis do divórcio terem saído, e Renata não pensou duas vezes antes de aceitar. Mais do que nunca precisaria do dinheiro. Estava divorciada, voltando a morar na casa de seus pais, não tinha emprego fixo e tinha uma filha de apenas um ano que dependia inteiramente dela. Realmente precisava muito, muito do dinheiro.
Renata terminou de cortar os legumes e se agarrou a Valentina em seu colo, pensando que era muito difícil se sentir como uma boa mãe em dias como aquele.
- Então eu vou deixar a Valentina com a babá hoje a tarde depois de passar na loja para comprar os presentes de natal para os nossos sobrinhos...
- Você ainda não comprou os presentes de natal a essa altura? – Clara interrompeu o planejamento de Renata, que suspirou.
- Não tive tempo ainda. Mas a questão aqui é, enquanto eu estiver trabalhando, você recebe todo mundo aqui em casa, certo?
Clara revirou os olhos.
- Por que eu fico com a tarefa mais difícil?
Renata pensou em dar para a irmã mais nova uma resposta mal educada, mas decidiu que não valia a pena. Tinha uma grande lista de afazeres de natal, comprar os presentes, deixar Valentina com a babá às seis e meia em ponto para que ela pudesse pegar tudo que ainda precisava na antiga casa e mover para a casa dos pais para finalizar os preparativos da ceia que fariam à meia noite, para que na hora em que tivesse que ir trabalhar tudo estivesse pronto e só faltasse buscar Valentina e deixa-la com seus pais.
Era um plano perfeito e bem cronometrado do qual Renata tinha orgulho, mas é claro que ela não podia contar com a multidão de pessoas que haviam decidido ir até a loja de brinquedos no mesmo horário que ela.
O lugar estava abarrotado de gente, as prateleiras sendo atacadas por pais e familiares que haviam procrastinado a compra dos presentes até a véspera desesperados para encontrar o brinquedo certo que agradasse suas crianças. Eram os procrastinadores de presentes – assim como ela.
Valentina ainda conseguia dormir no bebê conforto que Renata carregava pela mão mesmo com o barulho da algazarra que faziam dentro da loja. Renata torceu para que aquele cochilo durasse, não sabia o que faria se a filha acordasse e pedisse colo no meio daquilo tudo. Por sorte, Renata sabia exatamente o que queria comprar, então rapidamente fez seu caminho por entre os corredores e pegou os brinquedos que daria para seus dois sobrinhos – ela era boa em escolher brinquedos bons e baratos – e se dirigiu para o caixa.
Ficou um bom tempo na fila que não parecia andar nunca mesmo sendo preferencial. Os braços doloridos por segurar o bebê conforto de Valentina em um braço e o carrinho com os brinquedos em outro.
Quando finalmente conseguiu ser atendida, estava extremamente atrasada.
- A senhora gostaria de fazer o cartão da noss... – A atendente começou, mas Renata interrompeu bruscamente.
- Já tenho mais cartões do que gostaria, obrigada. Não preciso nem de nota fiscal, só passe minhas compras, ok?
A atendente não questionou. Parecia incrivelmente lenta para alguém que estava trabalhando em plena véspera de natal, talvez estivesse trabalhando justamente por não estar animada para ir para casa.
- Senhora, esse boneco do Capitão América que a senhora pegou está com um defeito – Disse a atendente de repente, olhando com calma para Renata e apontando para um pequeno defeito no boneco que fazia com que o escudo não encaixasse na mão do super-herói – Se quiser, posso esperar você ir trocar...
Renata bufou, tentada a levar o boneco assim mesmo, mas a atendente não parecia estar com pressa. Agora ela entendia o porquê da demora na fila.
Sem questionar mais, Renata correu com Valentina de volta ao corredor dos bonecos super heróis em busca de outro Capitão América. Por sorte, encontrou um restando na prateleira semi vazia e revirada, próximo a dois homens que brigavam por um outro super herói. Renata não quis saber o que acontecia, apoiou o bebê conforto de Valentina no chão para se esticar e alcançar o boneco, verificou rapidamente se estava tudo certo com aquele e pegou Valentina para correr de volta ao caixa.
Na fila, os outros clientes olharam feio para ela.
- Tudo certo com este – Falou antes de entregar o boneco para a atendente e finalizar sua compra.
Renata só pensava em sair dali o mais rápido possível, não sabia que podia levar tanto tempo para comprar apenas dois brinquedos.
- Você quer que eu embale? – A atendente perguntou, ainda simpática.
A pergunta foi respondida pelo restante da fila que reclamava da demora. Renata apenas negou e correu de volta para o carro, pensando que se dirigisse um pouco mais rápido, ainda teria o tempo necessário para fazer tudo o que queria fazer.
Felizmente Valentina ainda dormia, então também não foi difícil deixa-la com a babá o mais rápido possível antes que ela acordasse e sentisse a falta da mãe. Renata se sentiu mal por estar correndo tanto e nem ter se despedido, mas teria todo o tempo do mundo para mimá-la mais tarde, no final tudo que estava fazendo para planejar um natal incrível, decorar tudo e até seu trabalho era por causa de sua filha. Ela era a razão de tudo e isso requeria sacrifícios ás vezes.
Depois de tanto correr, Renata conseguiu chegar à antiga casa. Estacionou o carro na calçada, olhando para a frente da casa com um pequeno aperto no coração e suspirando. Sentia falta da vida de casada, tinha que admitir. Não sentia falta do ex marido, mas sim de não ter que correr por aí e lidar com tudo sozinha.
Caminhou até a entrada, destrancando a porta com tranquilidade por saber que não encontraria o ex marido ali, ele sempre trabalhava nas vésperas de natal e de ano novo. Aliás, era como se trabalho fosse seu combustível diário. Pelo menos, era o que ela pensava.
Enquanto tirava o restante de suas roupas do armário e colocava na mala, ouviu os passos lentos do ex marido adentrarem o quarto.
- Cada vez que você volta, busca mais um pouco das suas coisas – Ouviu ele dizer, ainda de costas – E leva meu coração com você...
Renata se virou, segurando o riso.
- Me poupa, João Marcelo. Tá fazendo o que em casa?
- É véspera de natal – João Marcelo respondeu, fazendo cara de pouco caso – Cadê a minha princesinha?
Renata gelou com a pergunta. Não podia responder que ela estava com a babá porque os avós dela não estavam em casa e a mãe estava ocupada demais, só daria mais motivos para João Marcelo implicar com ela.
- Está em casa com a Clara.
- A Clara quis ficar com a Valentina?
- Sim – Renata deu de ombros, encurtando o assunto – Agora, se não se importa, tenho que ir ter um feliz natal longe de você.
João Marcelo soltou uma risada irônica.
- Fiquei sabendo que seu feliz natal vai ser trabalhando na noite da véspera...
Renata engasgou, surpresa. Não tinha contado para muitas pessoas que trabalharia na noite da véspera de natal então não sabia como aquilo teria chegado aos ouvidos do ex marido. Ela sabia que seria mais uma arma que ele teria nas mãos para usar contra ela.
- Nada que você não tenha feito muitas vezes antes...
- Antes da Valentina, sim – João Marcelo falava sério – Mas depois que ela chegou, as coisas ficaram diferentes...
- Diferentes como? Ao invés de uma só pessoa para abandonar, você passou a ter duas?
- Não quero discutir o que fiz ou deixei de fazer por você, estou falando da nossa filha que você vai deixar sozinha hoje a noite – Enquanto João Marcelo falava, Renata se lembrava do motivo do casamento ter acabado.
João Marcelo era o tipo de homem que agia o tempo todo como se não tivesse esposa, nem filha, mas estava sempre a espera do primeiro erro de Renata para que ele pudesse jogar aquilo na cara dela o maior número de vezes possível. Ele podia errar – e continuar errando repetidamente – mas Renata não, jamais, ou seria intensamente julgada por isso.
- Acredite ou não, farei isso pensando nela – Renata terminou de juntar suas coisas, fechando a mala desajeitadamente – Mas eu não devo mais explicação nenhuma a você. Boas festas.
Renata caminhou até a saída, bloqueada por João Marcelo que a encarava de pé.
- Não conte com isso. Posso fazer com que você deva explicações a um tribunal.
Renata não respondeu, apenas saiu dali o mais rápido possível, dizendo a si mesma que ele estava apenas blefando, dizendo aquilo apenas para estragar seu natal. Depois disso, ficou ainda mais determinada a fazer tudo o que tinha planejado o mais rápido possível para buscar Valentina e acalmar seu coração ao tê-la perto dela. Deixou Clara para receber os pais em casa, já com a decoração e tudo pronto, os convidados da família começando a chegar e saiu para buscar a filha.
Estava extremamente orgulhosa de si mesma. A primeira véspera de natal que planejava com a família e a filha sozinha, a primeira vez depois de muito tempo sem estar na casa dos pais para o natal, a primeira vez que não permitiria o peso do ex marido atrapalhar suas festas.
Chegou na casa da babá onde Valentina estava e tocou a campanhia, animada para ver a filha.
A babá apareceu na porta segurando um menininho no colo.
- Olha quem chegou – Falou sorrindo, exibindo o bebê para Renata.
Renata estranhou, franzindo o cenho.
- Você cuida de mais de um bebê?
- Normalmente sim, mas hoje fiquei só com o seu – A babá entregou a criança para Renata, que olhava para o bebê atônita, e aos poucos entregou o restante das coisas, a bolsa que Renata tinha certeza que era a de Valentina e o bebê conforto no qual a filha dormia quando a tinha deixado ali mais cedo.
- Moça – Renata tremia enquanto falava – Não tem algum engano?
- Engano? Engano nenhum – A babá estranhou, checando a bolsa e as coisas do bebê – Está tudo aí.
Após conferir tudo, a babá deixou Renata e se despediu, voltando para dentro de casa. Renata ainda permaneceu parada por um tempo, a mente vagando para o momento exato de distração que tinha causado aquele transtorno. No momento, ela não havia percebido o erro que tinha cometido, só estava preocupada em sair da loja o mais rápido possível, mas seu inconsciente sabia exatamente o momento que ela tinha trocado seu bebê com o de outra pessoa e a correria não a tinha deixado perceber.
- Está tudo aqui – Renata murmurou, segurando o menininho de frente para si – Menos a minha filha.
***
Ronaldo já tinha feito tudo que estava em seu poder, o que se limitava a se descabelar, implorar na frente da loja para que eles o ajudassem de alguma forma e encarar a criança dentro do carro em desespero. Nem ao menos pensava em voltar para casa ou contar o que tinha acontecido para alguém, já tinha chegado ali por ser considerado um péssimo pai ao escolher o vingador errado, imagine só o que aconteceria se descobrissem que ele tinha pego o bebê errado também.
Depois de quase três horas, quando já tinha alimentado e trocado a menininha que estava com ele, Ronaldo sentia a garganta apertar só de pensar em se a pessoa que estava com Enzo não estava sendo tão cuidadosa com o filho dele como ele mesmo estava sendo com a filha que não era sua. E se ele estava com fome? E se chorava? E se estivesse com uma família de assaltantes de banco e a polícia batesse à porta deles em plena véspera de natal e Enzo acabasse em um abrigo de órfãos ou num programa de proteção a testemunhas?
Quanto mais tempo passava, mais fértil a mente de Ronaldo ficava. Ainda estava no estacionamento da loja de brinquedos, mas agora do lado de fora, esperando que a outra pessoa pensasse o mesmo que ele e voltasse ao lugar onde o erro havia sido cometido. Sua esposa já tinha enviado dezenas de mensagens que ele apenas visualizava e não respondia, temendo que ela fosse ler o que tinha acontecido por entre as linhas do celular.
Temia que se digitasse alguma coisa, acabaria enviando um emoji para disfarçar e sua esposa saberia que algo estava errado, pois Ronaldo só enviava emojis quando estava nervoso. Não responder era tão ruim quanto, mas pelo menos lhe dava tempo para pensar.
Seu celular tocou com um número desconhecido na tela e Ronaldo atendeu rapidamente, esperançoso.
- Alô? – Sentia a voz tremer tanto quanto as mãos segurando o celular. O bebê dentro do carro encarava ele com os olhinhos curiosos.
- Ronaldo? – A voz de seu irmão Rodrigo soou do outro lado – Onde você está?
Ronaldo tentou não suspirar de frustração durante a ligação.
- Onde você está? – Rebateu a pergunta, enfatizando o "você".
- Bom, eu não estou em casa ainda, mas esperava que você pudesse me encontrar. Preciso de ajuda.
Então somos dois, Ronaldo pensou em responder, mas não sabia como qualquer pessoa reagiria à sua situação, então se manteve calado sobre o assunto.
- Que tipo de ajuda?
- Você sabe onde eu poderia encontrar uma rena?
Ronaldo fez uma careta pelo telefone.
- Uma rena? No Brasil? – Tentou não falar alto para não assustar o bebê – Que tal tentar nos Estados Unidos?
Um som alto de frustração foi ouvido do outro lado do telefone.
- Esqueça, eu posso me virar sozinho... – A voz de Rodrigo se afastou mais e mais do telefone até que ele desligou, deixando Ronaldo se perguntando por quê raios o irmão precisaria de uma rena e como esperava encontrar uma ali.
Depois que a curiosidade passou, a frustração e o desespero voltaram. A esperança de receber uma ligação de quem estava com Enzo estava quase se esvaindo, mas Ronaldo se agarrava a ela. Sua esposa detalhista sempre preenchia a pequena etiqueta que vinha junto com o bebê conforto com nome da criança, nome dos pais e telefone para contato e só agora ele entendia a importância daquilo. Mas aparentemente não adiantaria nada pois a pessoa que estava com seu filho, quem quer que fosse, não parecia se lembrar de olhar atrás da alça de apoio do objeto.
- Ah meu Deus – Exclamou de repente – Eu também não olhei!
Ronaldo pulou para o banco de trás, os olhos curiosos da criança acompanhando cada movimento seu, e então verificou a etiqueta e lá estava. Ronaldo teve que segurar sua vontade de soltar um grito de comemoração. Escrito na etiqueta estava o nome da criança, – Valentina – dos pais, - Renata e João Marcelo – um número de telefone indicando ser do pai e um endereço.
Ronaldo tentou o telefone primeiro, mas ninguém atendeu.
Ainda tentou duas, três, até cinco vezes e nada.
- Tudo bem – Falava em voz alta como se Valentina pudesse entende-lo – Vamos tentar te entregar em casa, não tem problema. Mas antes...
Abriu o porta luvas e arrancou de lá uma folha qualquer e uma caneta, escreveu com a maior e mais legível letra possível um cartaz e colocou no portão do estacionamento, torcendo para que ninguém o tirasse dali. O cartaz dizia: SE VOCÊ ESTÁ COM O MEU BEBÊ, EU TAMBÉM ESTOU COM O SEU. ESTAMOS INDO EM DIREÇÃO AO SEU ENDEREÇO. OBS: OLHE NA ETIQUETA DO BEBÊ CONFORTO, O SEGUNDO NÚMERO É O MEU TELEFONE, ME LIGUE PELO AMOR DOS CÉUS.
Voltou para o carro na esperança de que isso evitasse um desencontro e então se concentrou apenas em dirigir para o endereço certo. Enquanto dirigia, só conseguia pensar por favor, se existe um espírito de milagres natalino por aí, por favor me ajude nessa.
O telefone tocou de novo, dessa vez era sua esposa. Pensou em atender agora que o problema estava a caminho de ser resolvido, mas não quis abusar da sorte. O som do toque do telefone penetrava em seu cérebro quase como um alarme o acusando de seus crimes, mas ao colocar o celular no silencioso Ronaldo notou que era ainda pior, o nome silencioso da esposa aparecendo no visor apenas para julgá-lo.
Foi aí que Valentina começou a chorar no banco de trás.
- Ah, não... – Ronaldo choramingou – Estamos quase chegando princesa, literalmente só mais uma rua, tenha paciência.
Valentina passou a gritar em resposta.
- Estamos chegando, estamos muito perto – Ronaldo tentou ignorar o choro, a ligação da esposa, a palpitação no coração que só se intensificava, mas não pôde.
Encostou o carro na frente do endereço que deveria ir – não podia entregar a criança chorando daquela forma ou pensariam que ele tinha judiado dela - e passou para o banco de trás. Valentina não estava suja e, de acordo com suas contas, nem com fome, talvez estivesse só com saudades dos pais. Ronaldo a pegou no colo, se esforçando para ninar a pequena com a maior paciência possível, independente das circunstâncias.
No seu colo, Valentina se acalmou instantaneamente, o que fez Ronaldo dar um leve sorriso.
- Sabe, talvez depois de tudo isso você e Enzo possam virar amiguinhos, você gostaria disso? – Valentina respondeu colocando as mãozinhas no rosto de Ronaldo como se entendesse, o que fez o coração dele doer com saudades do filho.
Quando estavam prestes a sair em direção a casa, o telefone de Ronaldo tocou. Novamente um número desconhecido.
- Já encontrou sua rena? – Ronaldo atendeu, esperando ser Rodrigo.
- Alô? Quem fala? – A voz desesperada de uma mulher soou do outro lado do telefone.
- Renata? Você é a Renata, mãe da Valentina? – Ronaldo se segurou para não gritar e fazer Valentina chorar.
- Sim, eu sou! Ai meu Deus!
- Ai meu Deus! – Incapaz de continuar se segurando, Ronaldo gritava e pulava com Valentina dentro do carro, que começou a dar gargalhadas.
- Isso é ela? É a minha filha? – Renata parecia chorar pelo telefone.
- Sim, é ela! Ela está bem, estamos em frente à sua casa...
- Não! – Renata exclamou em desespero – Volte para a loja, estou aqui na frente, faça o que fizer mas não entre nessa casa, por favor.
- Não é a sua casa?
- Era – Renata fungava, o coração acelerado de meia alegria, meio desespero – Mas agora eu me divorciei, se meu ex marido souber que perdi ela... Por favor, ele não pode saber, por favor.
Renata contou o risco que corria com João Marcelo rapidamente e Ronaldo concordou em não entrar na casa e então desligaram o telefone, combinando de se encontrar em frente à loja. Ronaldo se perguntava como um pai podia se importar tão pouco com a filha e usá-la apenas para atingir a ex mulher. Prendeu Valentina de volta ao bebê conforto, sentindo vontade de cantar uma música para marcar aquele momento pré reencontro, estava tão feliz que podia dançar também, ansioso para rever Enzo. Quando saiu para voltar ao banco da frente, viu a última pessoa que gostaria de ver naquele momento.
O outro pai que estava na loja – aquele que tinha levado o vingador certo para casa - parado de frente a que seria a antiga casa de Renata. Do lado dele, outro homem alto estava parado e ambos olhavam para Ronaldo.
Ronaldo abriu a porta do carro e tentou ir embora como se nada houvesse acontecido.
- Ei, amigo! – Ouviu a voz do outro pai o chamar, a voz levemente alterada pelo álcool – Que coincidência a gente se encontrar! O que faz aqui?
Ronaldo não quis responder, então apenas acenou de dentro do carro. Eram mais de dez horas da noite e aqueles pais deveriam estar alterados pela bebedeira de natal, e se um deles fosse João Marcelo, ele provavelmente estaria encrencado.
- Vem cá, amigo! Vai dar para trás de novo? Cadê sua honra? – Gritou para Ronaldo, mal sabia ele que Ronaldo não era o tipo de cara "provocável", ele não se importava o bastante com a babaquice alheia. E um daqueles babacas tinha ameaçado uma mãe honesta no natal apenas pela diversão de vê-la com medo de perder a filha.
E então Ronaldo não pôde mais não se importar. Tinha passado o dia da véspera de natal inteiro preocupado em ser um bom pai, segurando sua raiva e desespero para si mesmo, e um daqueles caras se achava um bom pai só por cobrar da ex esposa um comportamento que nem ele mesmo tinha. Aquilo o deixou furioso.
Talvez fosse pela grande semelhança de João Marcelo com sua esposa, sempre cobrando que ele fosse perfeito enquanto ela mesma não era nada próximo disso, Ronaldo sentiu pena de Renata e de Valentina. Aquele bebê amável e aquela mulher esforçada não deveriam ser julgados pela confusão daquele dia e mereciam coisa melhor – assim como ele mesmo.
Então Ronaldo saiu do carro.
Ao vê-lo caminhar em sua direção, os dois pais parados na porta se endireitaram, mas sua posição ofensiva bêbada não era tão ofensiva quanto a que vira na loja.
- Qual de vocês é o João Marcelo? – Ronaldo perguntou, João Marcelo deu um pequeno passo para frente em resposta.
Sem dizer mais nada, Ronaldo respirou fundo e enterrou o punho cerrado no rosto de João Marcelo, que caiu para trás desnorteado.
O outro pai tentou amparar o amigo, quase tão incapaz de ficar em pé quanto ele.
- Feliz natal, babacas – Ronaldo falou, dando as costas para a casa – Sejam bons garotos no ano que vem!
Quando entrou novamente no carro, Valentina estava em silêncio, tentando colocar as duas mãos dentro da boca e olhando para ele como se tivesse assistido toda a cena – e gostado.
Ronaldo acelerou o carro no caminho de volta ao estacionamento da loja. Ao parar o carro, pôde ver o carro de Renata do outro lado da rua, a mulher no banco de trás com Enzo no colo, parecia cantar para ele uma canção. Então desceu do carro, pegou Valentina e correu em direção a Renata.
Mais que rapidamente, Renata saiu do carro, os olhos instantaneamente ficando marejados ao rever a filha.
- Finalmente, finalmente – Renata exclamava quando destrocaram os bebês, apertando sua pequena contra si – Tive tanto medo, tanto medo...
Assim que pegou Enzo de volta, Ronaldo pôde sentir o coração ser colocado de volta no lugar, ou melhor, finalmente tudo estava de volta ao seu lugar. Estava tarde e os sons na rua demonstravam que algumas famílias esperavam pela meia noite, outras já estavam na cama, outras ainda agiam como se não houvesse natal, mas para aqueles dois pais a comemoração só começaria ali.
- Bem a tempo de curtir o natal – Ronaldo comentou, balançando Enzo em seus braços.
- Sinceramente? Não estou mais no clima de natal, nem de encontrar a casa cheia, nem de comer delícias de natal... – Renata abraçava Valentina como se ela fosse fugir a qualquer momento.
Ronaldo concordou.
- Quer saber? Nem eu.
Sem se importar com mais nada, Ronaldo sentou na calçada com Enzo, desejando que seu outro filho Natan também estivesse ali, assim não precisaria de mais nada para celebrar o natal, somente os filhos. Sabia que provavelmente sua esposa ainda estaria ligando para ele e que todos deveriam estar procurando por ele, mas lidaria com isso mais tarde. Renata o acompanhou, sentando-se ao seu lado. Ficaram ali por um tempo, apontando as luzes das casas para as crianças, pensando que ainda não era meia noite, mas na calçada de uma das lojas de brinquedo em São Paulo, definitivamente já era natal.
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