Um Mundo Novo
Ouço um som agudo atrás de mim e percebo que ele ativou o sistema de segurança de novo.
As pernas tomam isso como um sinal para começarem a funcionar.
Temos apenas uns minutos antes que a polícia apareça, de certeza que ele tem o telemóvel à mão, temos que nos despachar.
O Helian empurra o homem para o chão com uma placagem digna de atleta, o corpo dele é muito maior do que o homem fininho, mais forte, mais ágil. Pelo menos dá-nos mais um tempo enquanto tenta sair do choque para podermos correr.
E a maratona começa, eu na frente e ele atrás.
Deixamos o carro demasiado longe para irmos a correr, o Helian é sempre muito cuidadoso com o seu lugar, com medo deste preciso cenário.
Agora vou ter que ficar ainda mais exausta.
Percebo que o homem já nos tinha ouvido há muito mais tempo do que pensávamos, ele apanhou-nos desprevenidos, não ao contrário.
Porque já consigo ouvir as sirenes.
— Esquece o carro. — Ele agarra-me pelo braço e quase me faz saltar para a rua oposta à que estacionou o carro. As sirenes parecem vir exatamente desse sítio. Por enquanto acho que ninguém nos viu, ainda bem que são as horas que são, nem percebo como é que aquele homem estava ali, fomos silenciosos, não acendemos luzes.
Corro como se a minha vida dependesse disso, porque sinto que o barulho se aproxima, está cada vez mais perto, como se estivesse com as garras prestes a raspar-me pela nuca.
Ouço o Helian atrás de mim, ofegante, sei que ele está muito mais em forma do que eu, não teria qualquer dificuldade em me passar, mas não o faz, mantém-me à sua frente.
Reparo na casa pela qual passamos no caminho para aqui, uma casa relativamente grande, mas bastante velha, notei que lhe faltava metade do teto e as janelas estavam partidas. Está protegida por um portão enorme de ferro, demasiado fino e velho para passarmos por cima. Mas tenho outra ideia, para podermos desacelerar.
Pego na mochila das costas e atiro para o jardim do outro lado, consegue passar por cima do portão, não a vejo cair no chão, mas ouço-a, e atrás dela vai a de Helian, imitando-me. O portão esconde o jardim, e não há casas altas à sua volta para reparar nas mochilas, pelo menos durante uns dias, poderíamos voltar aqui e ninguém notaria nelas.
As luzes atrás de nós fazem-me parar, não posso correr sabendo que os carros estão tão perto.
Deixo que o Helian me apanhe e entrelaço a minha mão na sua, encostando-me ao seu ombro.
Forço-me para não ficar nervosa, andando o mais calmamente que consigo, quero fazer-me passar por uma miúda apaixonada, e não uma ladra.
Quando o carro passa é que me deixo suspirar, agora sem as mochilas duvido que parem os carros para vir ter connosco.
O carro vira a esquina, respondi aos seus olhares atentos com um sorriso aberto dirigido ao Helian, que tomou a postura de namorado protetor, agarrando-me pela cintura, a sua expressão nunca deixa passar nada.
E como uma deixa, ao sair das nossas vistas, corremos para trás.
Agora com a ideia de correr para o carro para podermos sair daqui estou cada vez mais ansiosa, e se acharam o carro suspeito? Não, o carro é tão bom quanto os que estão estacionados ao seu lado, nem melhor nem pior, quem passar por ali pensará que pertence a uma daquelas mansões.
E se eles estiverem a pé, à nossa procura?
Começo a hiperventilar, mas não deixo as pernas parar.
Até algo apanhar a minha atenção, aí o corpo deixa de funcionar.
Aquela luz de novo, pelo canto do olho, a chamar-me, dizendo que não pertence ali e que precisa de mim. No meio do escuro é o que se vê melhor, como se fosse de propósito. Ao parar sem aviso o Helian bate contra as minhas costas e eu caio de joelhos no chão, ainda de olhos postos no círculo que se ergue no fundo daquele beco.
Não pensaria em passar por ali, sem saída, sem escapatória. A cabeça estava apenas em chegar ao carro para podermos fugir, não ali. No entanto, o corpo parou.
A sua luz não ilumina o beco, ele continua escuro e assustador, não mostra o que esconde. Aquele círculo tem a sua própria luz e não a transmite a mais ninguém. Continua a mesma cor, aquele azul arroxeado, roxo azulado, que parece mover-se, chamar por mim.
Já o vi antes, sei que já. A memória nunca me fugiu, foi como um sonho que eu sabia que tinha acontecido e que nunca mais aconteceria. Na altura poderia ter sido algo que a minha mente infantil teria imaginado, e por muito tempo convenci-me disso, mas aqui está ele. O círculo que estava naquele parque, está aqui, igualzinho, com as mesmas cores, as mesmas texturas e tenho a certeza que mantém a sua fragrância atraente, mesmo que não esteja perto o suficiente para cheirar.
Não posso ignorá-lo, não me foge, quer que me aproxime.
— O que... — Finalmente o Helian repara, acho que nunca o viu como eu. Não deve ser uma experiência muito comum. Quase me rio, se lhe contasse que já o vi, acreditaria em mim?
Dou um passo em frente e ele para-me, com os olhos azuis assustados, não sabe o que está a ver, não sabe como reagir. Não sabe que tem que passar por ele, como já fiz no passado.
Vou encontrar o que encontrei da outra vez? Se estas cores me chamam, e não as imaginei, então o rapaz é real, as queimaduras foram reais, aquele mundo era verdadeiro.
O Helian faz um som estranho com a boca, de surpresa, um barulho tardio quando já está a olhar para aquele círculo há algum tempo. Depois percebo a sua reação, dois homens correm na nossa direção, usam uniformes da polícia, um deles já está com a mão na cintura, perto da arma, no caso de tentarmos correr. A esta altura já ouviram a nossa descrição do homem que nos apanhou, estamos a segundos de ser apanhados.
— Anda. — Ordeno, pegando-lhe na mão suada, arrastando-o em direção ao círculo. Se realmente nos levar para onde fui da outra vez, não será pior que ser levado para a prisão. Ele resiste, aterrorizado com o que vê. — Preferes ser algemado? Confia em mim. — Imploro-lhe, começando a ouvir os gritos dos homens cada vez mais perto, estão prontos para saltar para cima de nós se for preciso. A sua expressão deixa-me com dúvidas, se será certo fazer isto sem saber o que vem aí, mas a vontade de escapar às algemas é de alguma maneira maior. Acho que fico ainda mais assustada do que ele, porque sei que sou eu que o estou a arrastar para algo que não tenho conhecimento, mas é agora ou nunca, dou-lhe outro puxão forte e ele deixa-se vir, andamos com cautela até ao círculo, e depois corremos.
Sinto aquele cheiro a flores mesmo antes de ser puxada, sorrio, com uma nostalgia que não tinha ideia que era tão forte. Sou cuspida do outro lado, caio no chão frio e o Helian cai por cima de mim.
Abro imediatamente os olhos, mal caio, para verificar se realmente conseguimos fugir. Olho para trás desesperada, constatando que o círculo desapareceu, não há maneira daqueles homens virem atrás de nós. Eu sabia que ele estava ali por mim, sabia que me queria.
Já não é de noite, o sol brilha muito, estamos de volta ao terraço, no que sei que vi há muitos anos e que parece que o vi ontem. Está exatamente como me lembrei dele todo este tempo.
Lá em cima o sol brilha, consigo olhar para ele diretamente, para a bola branca circular e brilhante, tão parecida, mas diferente da que tenho em casa.
Depois olho para o lado, para o final do terraço, perto de uma porta escura e grossa.
É ele, o rapaz.
Já não tem a mesma idade, cresceu, como eu cresci. Está mais alto, mas o seu rosto continua o mesmo. É maior que eu, magro, continua com o que pensei ser uma tinta na pele, agora percebo que deve fazer parte dele. Não estou no meu mundo, não mais, estou no dele, onde tudo parece tão diferente. Basta olhar lá para fora, para o sol que brilha de maneira diferente, para o céu de um tom azul enevoado.
Noto nas suas diferenças, é como se um humano tivesse mudado pequenas coisas na sua fisionomia, o seu cabelo é acinzentado e a pele azul. Todo o seu corpo parece brincar com o azul misturado com prateado. O seu rosto é como o meu, embora aparente ter olhos maiores, negros. E mesmo que agora esteja de boca fechada lembro-me dos seus dentes, com caninos mais desenvolvidos que os meus.
Se quisesse, com tinta e algumas modificações, conseguiria fazê-lo parecer como eu. Como uma versão humana misturada com algo mais.
Como da outra vez, está a minha frente.
— TAM! — O grito sai-lhe da garganta, chamando-me, como um pedido desesperado de ajuda, só então olho para o Helian, deitado ainda no chão, agarrado à cara, tentando escondê-la. E lembro-me exatamente do que está a sentir, aquelas queimaduras quando cheguei, agora entendo que foi o sol, o sol que não é o meu, a queimar-me a pele, a tentar matar-me. Foi ele que me salvou, o rapaz de pele azul.
— Por favor. — Olho para o rapaz, que me analisa com cuidado, acho que me reconhece, como eu o reconheci, deve se lembrar do que achou diferente de mim, o cabelo, as roupas, tudo.
Não preciso de pedir uma segunda vez, anda apressado até ao moreno que grita em agonia, os seus braços estão cheios de bolhas, deve estar com tantas dores.
Sei o que fazer desta vez, sem precisar de avisos, ajoelho-me ao lado de Helian e puxo com força pelos seus braços, para que deixe de se tapar, ele não espera o meu movimento forçado, e o rapaz aproveita esse momento para avançar.
Faz como fez comigo, mão direita em frente, polegar sobre a língua, indicador dobrado sobre o seu queixo. Sei que ele começa a trabalhar quando os gritos de sofrimento cessam. Lembro-me daquela vibração, daquele poder a sair dele para me aliviar a dor. Como ele tem aquele poder não sei, mas sei que ficou surpreso quando soube que não o conseguia fazer.
Quando o Helian acalma e começa a abrir os olhos, observando tudo o que o rodeia, incluindo o rapaz que acabou de lhe salvar a vida, é que começa a passar as mãos pelo seu rosto queimado, até aos braços vermelhos cobertos de bolhas. Aos poucos todo o tipo de ferida desaparece, e com ela foi a dor.
— Porque não ficaste igual? — Consegue perguntar quando se acalma, deve ter ficado desesperado, qualquer um ficaria.
— Já estive aqui uma vez. — Os olhos negros do rapaz apanham os meus, acaba de ter a certeza de que aquela menina era eu. Finalmente reconheceu-me. Sorrio-lhe, lembrando-me dele como um amigo, como uma experiência que nunca tinha passado e que acho que ele também não.
— O que me fizeste? — Tem a coragem de se dirigir ao rapaz, parece a pessoa mais confusa do mundo, acho que ainda não tirou tempo para olhar para as casas lá fora, para o céu. Será que entende que não está no seu planeta, será que percebe a origem da sua dor? O que estará a pensar?
Sinto um monte de emoções tomar conta de mim, a vontade que senti de passar pelo círculo, pelo que posso chamar de portal agora, o medo de voltar para aqui, mas vê-lo, ver o sofrimento do Helian sabendo que fui eu que o trouxe para aqui, deixa-me de coração partido.
Quando o Helian se tenta levantar e o vejo tremer, decido abraçá-lo, quero meter os meus braços à sua volta e tentar protegê-lo de tudo, quero dizer-lhe que está tudo bem, que poderemos voltar porque eu também voltei. Quero pedir-lhe desculpa, quero acalmá-lo quando nem eu estou calma, mas fico-me pelo abraço e pelo abanar de cabeça que trocamos para nos assegurarmos que estamos bem. Ele nunca admitiria que está assustado, mas consigo ver através dele, o seu corpo não mente.
— Não seguiste o meu aviso. — O rapaz faz-se ouvir, atrapalhando a nossa conversa mental. Não há nada de diferente na sua voz, parece humana, grave, masculina. — Voltaste.
— Não contei a ninguém. — Ele abana a cabeça, negando, como se tivesse dado a resposta errada. Parece realmente desiludido comigo.
— Vamos entrar, os outros estão à espera. — Ele dá-nos as costas, e eu reparo que as vestimentas são iguais às que tinha visto antes, um robe de tecido fino e brilhante até às coxas, e umas calças largas brancas apenas apertadas nos tornozelos. Noto dois buracos nas costas, duas linhas verticais, consigo ver a sua pele nua por baixo.
— Outros? — Helian pergunta, andando atrás dele, parece mais forte do que o rapaz, mas não é tão alto.
— O anel tem se feito notar demasiado nestes tempos. — Parece tão seguro do que diz, como se isto fosse tudo normal para ele, será que entende que esta situação é estranha aos nossos olhos? Isso quer dizer que existem outros humanos que passaram pelo que passei, que o encontraram e foram atraídos por aquele anel, como lhe chama. Ele diz que se fez notar para nós, mas com que propósito? E por que razão esses humanos decidiram vir para aqui? Eu tinha incentivo, quanto a eles já não sei. Será que vieram mais que uma vez? Será que é algo comum entre eles? Se calhar sou só inexperiente.
Entramos para a casa onde nunca tinha ido, o meu conhecimento só ia até aquele terraço, e percebo que estamos no quarto de alguém, provavelmente do rapaz. A cama está suspensa no teto por cordas grossas enroladas, abana com o vento que vem da porta aberta, tem coisas simples como uma mesa e uma cómoda, toda a mobília tem pequenos detalhes cravados, com o que me parecem ser criaturas e flores e toda ela é escura, de um verde-escuro.
— Porque estamos aqui? — Pergunto enquanto o seguimos pela casa, toda a habitação parece manter o gosto pelo verde, usando móveis com a variação da cor.
— Porque escolheram passar pelo anel. — Responde baixo demais, e noto alguma desilusão, como se fosse um pai preocupado. Sinto-me logo alarmada, como se tivesse cometido o maior erro e devesse ficar triste por não estar numa jaula de prisão.
— Não o devíamos ter feito, pois não? — O Helian pergunta, não sei se para mim ou se para o rapaz, acho que também notou na tristeza na sua voz. O rapaz abana a cabeça negativamente, sem olhar para nós, escondendo o seu rosto. — Porquê? — A pergunta parece demasiado direta, o rapaz continua sem se virar, quero ler-lhe a expressão, perceber se aquele rapaz que me lembro é realmente uma boa pessoa ou um vilão. Neste momento este medo que sinto não me está a dar muito boas vibrações. Ele continua o caminho descendo umas escadas do mesmo tom de verde que parecem estar cobertas por uma espécie de musgo, descem em caracol até uma sala gigante.
No seu meio está uma mesa retangular, uma mesa que quase me faz rir, não conseguiria pousar nada em cima, toda ela está cheia de buracos esculpidos com as mesmas flores e criaturas, nem uma caneca se aguentaria naquela obra-prima. Os desenhos são lindos, quero tocar neles, sentir cada pedaço daquela madeira desenhada.
A única coisa que me impede são as figuras sentadas à mesa.
Eles levantam-se mal nos vêem, espelhando a minha cara de surpresa. Como eu nunca vi ninguém como eles, eles também nunca viram alguém como eu.
Aproximo-me muito lentamente, para os estudar com cuidado, mais uma vez tão parecidos com humanos e ao mesmo tempo diferentes.
Um deles estende-me a mão, para que avance e os cumprimente, mas a minha cabeça não está a pensar como eu quero. Só consigo observar, procurar por cada pequeno detalhe nas suas caras, nos seus corpos.
O que estende a mão tem a pele laranja coberta por pequenas escamas, veste uma grande capa branca que o cobre até aos pés, de alguma maneira parece mais novo que eu, não por muito, mas o suficiente para se notar. Tem um sorriso enorme na cara, feliz por nos conhecer mesmo que esteja surpreso por nos ver. Quando pestaneja os seus olhos enormes castanho-claríssimos uma membrana passa pelo seu olho, como um lagarto. É mais alto que o Helian e do que o rapaz, tem umas pernas incrivelmente longas.
A rapariga ao seu lado é linda.
O seu corpo forma um vestido azul, o próprio vestido faz parte dela, cai-lhe pelas pernas, sobe e desce elegantemente à medida que respira. Tem faces angelicais e um sorriso maravilhoso, acena-me com uma pose de bailarina. Toda ela elegância, de pele azul, mas não misturada com cinzento como o rapaz, um azul como o meu céu, brilhante e vivo.
O rapaz que nos mostrava o caminho vira-se, pronto para responder à pergunta de Helian, mesmo que agora estejamos demasiado distraídos examinando-nos uns aos outros. E a expressão que temia é exatamente a que previ, medo, medo de nos dizer algo terrível.
Sei que o que lhe vai sair da boca não é bom.
— Porque não tenho maneira de vos mandar para casa.
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