Travessia

Dou um passo atrás, e outro, sem sequer pensar. Vou olhando do Kiell para os tornados que se aproximam e quero correr, mas cada vez que mostro intenções de me mover ele para-me, grita-me, implora-me para que fique no sítio onde estou.

Só quando eles chegam à linha das árvores, ainda longe, é que lhes vejo os olhos.

Não são tornados, não são fenómenos naturais, são monstros, monstros com uns olhos que saem para cima da área que rodopia à volta do seu corpo.

O Kiell gesticula para que meta de novo a proteção sobre a minha cabeça. Eu obedeço, deixando a viseira para baixo, para proteger os olhos.

Depois faz sinal para o pulso.

Percebo logo o que ele quer dizer e giro o pulso, a pequena parte, como uma pulseira, começa a ficar amarela, depois laranja, até ficar vermelha. Ela para nessa cor, e eu espero que algo aconteça, que se crie uma bola à minha volta e me proteja, que existam asas que me levam para longe, mas nada acontece.

Ele espera que eu me mantenha quieta? Enquanto estes bichos me atacam?  Quer que morra?

O movimento atrás do Kiell fá-lo mudar a atenção do meu perigo para o grupo que se aproxima dele a correr. São os outros, que provavelmente o ouviram gritar por mim e pensaram o pior.

Pensaram bem. 

Parecem sincronizados, os olhos vão do Kiell, para mim, para os tornados que estão cada vez mais perto. O Mateen agarra na Bell no momento em que uma das suas mãos tapa a boca de surpresa e a outra aponta para mim, como se me pudesse fisgar do sítio onde está para segurança. Num mundo em que poderes como criar portais é uma realidade, desejava que esse fosse o seu poder, talvez assim poderia salvar-me. 

Vejo o momento em que o Helian perde a cabeça, os lábios do Kiell, provavelmente a tentar explicar-lhes o que está a acontecer, param com o empurrão que o faz cair. Metade do corpo dele afunda na areia que piso, espero que o impacto o tenha imobilizado, em vez disso, levanta-se num pulo, para fugir de novo para a segurança da floresta. Dobra-se para envolver os braços na cintura do Helian, como uma placagem, e faz força para o manter atrás do limite, consigo ver os seus pés deslizarem pela areia. Sei que quer chegar a mim, quer tirar-me daqui, nem que isso queira dizer arriscar a sua vida. Ouço-os gritar, mas estou longe demais para perceber do que discutem. O Kiell não o quer deixar vir até mim, vejo a urgência nos seus olhos, o seu medo, sei que estou sob um perigo gigante.

Não devia ter pisado esta areia, percebo isso porque o Kiell não deixa que ninguém o faça. Não quer colocar em risco os outros. 

Aqueles tornados rodopiam até mim, com rapidez, sou eu o alvo, e é suposto eu ficar aqui parada?

Vejo o desespero nos olhos claros do Helian, que já parou de discutir e apenas se encontra no limite da floresta, agarrado a um dos troncos, como se a qualquer momento pudesse desmaiar de frustração. Levanto-lhe as mãos, tentando acalmá-lo, mesmo que cá dentro queira berrar. Não posso deixar que ele venha e se ponha no caminho daquelas coisas, não aguentaria vê-lo sofrer, basto eu aqui. 

O coração começa a bater cada vez mais forte, acho que estou a começar a entrar em pânico. Desisto, eles estão demasiado perto, eu tenho que voltar, tenho tempo.

E então percebo que não me consigo mexer.

Tento mover as pernas, e não há reação, só mexo os braços. Tento mudar a pulseira, tirar aquele vermelho do fato, voltar ao normal. É o fato que está a fazer isto? Está a manter-me imóvel? Quer matar-me?

Foi ele que me disse para fazer isto, sabia que o fato me ia imobilizar, porque é que me está a fazer isto?

É das coisas mais bonitas que eu já vi, e mais assustadoras.

Não é como os tornados que conheço, não têm ligação ao céu, são tirados da terra. Aquelas criaturas devem criá-los, fazem parte deles, eu vejo o seu corpo no meio, a saltar e a voltar para dentro, vejo pares de olhos negros grandes a rodopiar até mim. Estão a ganhar território, e eu não consigo deixar de pensar que já podia estar à beira deles a esta hora, mas faço o que ele pede.

Porque é que fiz o que ele mandou? Eu vou morrer aqui por causa dele.

— Kiell, eu vou morrer. — A minha voz não parece a minha, retornou vários anos, tomou um tom infantil que implora para que a salvem. E só agora percebo que estou a chorar, o meu corpo sua tanto debaixo deste fato, estou a arder. — Ajuda-me!

Sinto as pedras a bater-me no fato, aquelas que pensava que nunca me fariam mal, as que estava tão maravilhada por conhecer, estão quentes e magoam-me a pele, sei que vou ficar pisada, mesmo assim fico parada, a tremer. Tento espernear, faço tanta força, mas é como se alguém controlasse esta metade do meu corpo. 

Quando estão prestes a chegar a mim ouço-os, os sons de fome, como um inspirar rouco, ou um ronco esganiçado. É o pior som que já ouvi. 

Não aguento com o pânico, giro a pulseira, mas ela não deixa de estar vermelha, as pernas não se movem, e eu só consigo olhar para aquele bicho a aproximar-se. Estou aos soluços, com o coração quase a saltar-me da boca, apenas a olhar para aquela imagem, duas colunas de areia a aproximarem-se de mim a fazer barulhos esfomeados, prontos para me devorar.

Como é que vim aqui parar?

Como é que estou num planeta diferente?

Se calhar levei uma pancada na cabeça e estou a recuperar, em coma, com alucinações, tem que haver alguma explicação porque neste momento não me acredito que nem vou morrer no meu próprio planeta. Ainda tenho que fazer muita coisa, quero ter a chance de dar uma volta à minha vida, deixar-me de desespero à frente de um homem a vender o que tiro de outros, quero um futuro, quero um trabalho, uma família, uma oportunidade.

Eu mereço uma chance na minha vida. Pelo menos uma chance para a mudar. 

Não mereço ser morta aqui.

Estão à minha frente, tão perto que sinto a areia à volta do corpo, são gigantes, lindos, e fazem-me sentir que não haverá dor, que apenas me sugarão e levarão de volta para casa. Entrarei nos seus tornados, e eles vão cuspir-me para a minha cama, para poder acordar do meu pesadelo. Estão aqui, os olhos estão direcionados a mim, são pretos e brancos, estão concentrados, tremem de entusiasmo por me terem. 

O som que há uns minutos estava a fazer com os pés, ouve-se novamente, mas com o triplo da velocidade, enquanto o tornado suga as pedras escuras e as atira à sua volta, batendo no meu corpo e em tudo o que me rodeia. Os corpos saltam com mais vontade, no meio de toda a escuridão que é areia e pedra, os seus olhos aparecem com mais frequência, para me poderem ver. 

Espero pelo golpe final, talvez uma pedra me bata na cabeça e fique inconsciente para não ter que sentir enquanto sou devorada. Cruzo os braços sobre o peito e baixo a cabeça o máximo que consigo, preparando-me para o impacto. 

O Kiell escolhe este momento, e apenas este, para correr até mim.

Corre com urgência, dá passos longos, segurando um disco contra o peito. Está com a viseira, não consigo ver os seus olhos, não consigo ver se está com medo como eu. Por alguma razão queria isso, ver o seu rosto, sentir que alguém está aterrorizado como estou agora. 

A este ponto praticamente salta até mim, gira o objeto preto que tem nas mãos e atira-o contra os tornados que num instante o sugam. Chega a mim, faz-me ajoelhar e cobre-me com o seu corpo.

É aí que a areia atinge com toda a força, ele abraça-me firmemente, e eu agarro-me a ele como se a minha vida dependesse disso, e depende. Somos atirados, arrastados pela areia conforme a criatura anda, giramos os dois, ainda colados.

— Aguenta. — Ele repete inúmeras vezes ao meu ouvido, tentando dar-me força, mas a esta hora já não as tenho.

De repente ouço-o, o disco que ele atirou para o chão faz barulho. Um som incrivelmente alto, como uma grande ventoinha. O disco começa aos flashes e obriga-me a fechar os olhos. Tudo se torna numa confusão, acho que ouço gritos das criaturas por cima dos barulhos ensurdecedores do disco. Depois os nossos rodopios tornam-se mais calmos, até deixar de sentir a areia a querer entrar-me pelo fato.

Quando abro os olhos a areia dissipou-se, deixando os dois bichos voadores acima de nós.

Possuem asas pequenas que aguentam com o peso do seu corpo longo. Comparo-as a duas minhocas rosa gigantes com olhos comicamente quase maiores que o corpo. Parecem confusos, queixam-se da falta de proteção, já não parecem tão famintos, parecem... assustados.

Penso que nos vão atacar, ou que talvez voem para longe, mas escolhem outro caminho, deixando-se cair, mergulhando na terra de cabeça, criando um grande buraco por onde desaparecem.

Passam apenas uns segundos para o pulso girar e passar de um vermelho para o verde, para a cor do fato.

— Tam. — Ele chama, ainda tão perto de mim. E eu vou voltando aos meus sentidos, a visão comprometida pelas lágrimas, o som dos meus gemidos e soluços, o gosto a terra na boca, um cheiro forte a flores, uns braços que rodeiam o meu corpo.

Vou tomando atenção ao que me rodeia, e percebo que o cheiro a flores vem do Kiell, o rapaz ao qual ainda me colo com força, tenho as mãos agarradas ao seu peito, enquanto as suas estão nas minhas costas, a prender-me. O meu corpo desespera, tremo por todos os lados e continuo a soluçar fortemente, cada vez que soluço saltamos os dois.

Quando percebe que não respondo, e permaneço contra o seu corpo, a testa contra o seu pescoço, as mãos plantadas no seu peito, sinto os dedos passarem-me pela cabeça, arrancam-me o fato e descem-no até ao pescoço. O Kiell puxa-me o cabelo para fora e para o meu espanto, começa a fazer-lhe carinhos.

Passa-me a mão na cabeça com lentidão, com gestos pequenos, mas reconfortantes.

Sinto a sua pele contra a minha e confirmo as minhas suspeitas, a sua pele é muito mais rija que a minha, não tem a mesma suavidade que um humano, passo os lábios pelo seu pescoço e acabo por me acalmar apenas com o contacto. Os seus carinhos fazem a causa do meu coração acelerado mudar de medo para nervosismo e vergonha. Sinto o seu coração a bater, ouço a sua respiração rápida, estava tão assustado quanto eu, mas não deixou transparecer.

Se me veio salvar, porque é que me disse para ativar o fato quando sabia que as minhas pernas iam deixar de se mover?

Começo por abanar os pés para confirmar que realmente estou livre do poder do fato, mexendo-os com rapidez para comprovar que me consigo mover.

Não sei se hei de me sentir grata ou enraivecida, de momento estou mais confusa que outra coisa. Pensava que ia morrer, pensava que nunca mais veria o meu mundo, que nunca veria a minha mãe ou teria uma vida para além dos vinte.

Ainda consigo ouvir os roncos esganiçados dos bichos a zunir na minha cabeça, como se ainda estivessem aqui. A carne por baixo do fato com certeza tem nódoas negras, tenho a pele dormente pelo contacto constante com a areia.

Não preciso de decidir para já como me sinto porque tem aqui alguém que prefere demonstrar isso mesmo antes de mim.

O Kiell quase voa para o lado direito, o Helian chega, agarrando-lhe o fato pelos ombros e atira-o para o lado como um saco de batatas.

— Devias estar de vigia!

— Estava a rondar o nosso espaço. — Ele responde pausadamente, mesmo com uma careta de dor e um punho no ar que se destina à sua cara.

— Devias estar atento ao teu grupo. Para que isto não aconteça, ela quase morreu! — O moreno aponta para o buraco deixado pelas grandes minhocas. Começo a ficar preocupada de novo, o que me diz que elas não surgirão de novo para atacar? Se conseguem mergulhar em areia também devem conseguir vir à superfície de novo com a mesma facilidade.

— Quando reparei já era tarde mais. Elas respondem ao movimento, se tivesse deixado que ela voltasse ia pôr os outros em perigo.

— Por isso é que as minhas pernas deixaram de funcionar? — Enquanto pergunto sinto uns braços passarem pelos meus para me levantar, tenho as pernas moles, sem força. O Mateen é quem me ajuda, e a Bell encontra-se atrás do Helian com as mãos elevadas, sabe que o quer parar se ele decidir atingir o Kiell, mas não sabe como fazê-lo. O Helian é três vezes maior que ela, um empurrão e ela estaria de volta na floresta.

— Foi necessário. — Informa, completamente sério, com os olhos postos em mim, mesmo que o peito esteja a ser agarrado pelo rapaz que deita fumo pelas orelhas. Aquelas criaturas viram-me a mim, sentiram o meu movimento na areia, por isso é que o fato reagiu em tirar-me a possibilidade de mexer as pernas, para que não desse mais um passo e os deixasse ainda mais raivosos, se tivesse voltado para o Kiell todos os outros do grupo também seriam atacados.

Consigo perceber o seu raciocínio, se é para perder alguém que seja só um e não todo o grupo.

Provavelmente faria o mesmo.

E ele escolheu ajudar na mesma, arriscou a sua vida para me salvar.

— E o que é isto? — A Bell desiste da ideia de parar o Helian e deixa-o para pegar no disco que o Kiell atirou antes de saltar para cima de mim.

— Tive que esperar até o último momento para agir, serve para dissipar os ventos. Eles não deram por mim até eu estar em cima deles. Sem o tornado estão vulneráveis. Usam-nos para se alimentarem. — Explica, empurrando agora a mão do Helian para longe.

Levanta-se, com um olhar ameaçador direcionado a ele e ajeita o fato ao corpo.

Acho que estão a perder a paciência um com o outro.

Tira o disco das mãos da Bell e mete-o de novo na mochila que o Mateen lhe dá, ele também me entrega a minha, a que deixei onde todos dormiam antes de ir procurar o Kiell. Um erro enorme, nunca mais sairei da beira dele e se ele não estiver por perto, espero quieta até chegar. Nunca mais quero sentir aquele medo de novo.

— Estás bem? — Mateen pergunta-me ao ouvido, obviamente mais preocupado que os dois rapazes que ainda se olham como se fossem os maiores inimigos. Abano com a cabeça e agradeço quando ele deixa que me agarre ao seu braço ao recomeçar a caminhada. Estou fraca, tinha acordado energética, mas o medo que tive deixou-me exausta, com os músculos tensos, a cara inchada e o coração a doer. A pressa para ir para casa aumenta.

O Kiell vai olhando para trás, para mim, enquanto anda e eu tento perceber se é preocupação ou talvez culpa. O Helian anda ao meu lado, de vez em quando pega na minha mão e inspeciona, depois no queixo para ver se tenho alguma marca no rosto, quer garantir se estou mesmo bem, mas preciso de tirar o fato para ver os estragos. Tenho o corpo inteiro dorido, sei que daqui a um tempo terei muitas marcas roxas, a minha pele fica logo marcada.

O nosso guia garante-nos que não teremos mais nenhuma visita destes bichos, e continua com a cabeça a girar para todos os lados para ver se o mar de areia vem na nossa direção. Apanho-me a imitar-lhe os movimentos, preocupada, para não ter o mesmo encontro de antes. Estou tão alerta que passados uns minutos tenho dores de cabeça e de pescoço.

Já sinto o sol a queimar quando chegamos ao rio, o caminho de areia termina junto dos pedregulhos que nos separam da água. Penso na distância para o outro lado, para onde precisamos de atravessar, demoraria uma eternidade a nado, para não falar das correntes que me levariam para bem longe. É bom que esta travessia seja calma, não aguento mais acontecimentos infelizes. A esta altura, já de manhã, espero ver muitos barcos a ir para longe, como costumo ver na minha terra, não moro muito longe do rio, o centro da minha cidade é perto o suficiente para poder vê-lo regularmente. Por isso estranho quando, em vez de um espaço cheio de vida, pescadores e outras pessoas que querem atravessar, o encontro deserto. 

A terra plana para atrás de nós, e o rio para a frente, onde mais nenhuma alma se faz mostrar. Existem barcos, muito barcos, mas ninguém faz intenção de os usar, pelo menos não a esta hora.

Dirigimo-nos a um barco prateado com um padrão estranho, como se tivesse escamas pelo seu corpo inteiro, é grande o suficiente para transportar cinco pessoas, mas não muito mais. É suposto atravessarmos para o outro lado nisto?

Desço o melhor que consigo pelos pedregulhos irregulares, até os meus pés sentirem a água fria. O facto de não haver uma doca onde possamos subir para entrar no barco é ainda mais suspeito, obviamente não quer ser visto, temos que descer por aqui para não haver olhares indesejados. 

— Não quero dar muito nas vistas. — O Kiell murmura mais para si do que para os outros, querendo justificar-se por um barco tão pequeno.

Deve sentir-se mal pela falta de confortabilidade que teremos, ou talvez quer que continuemos a pensar que ele é rico e que este barco não reflete a sua riqueza. Espero que não esteja a debater-se com problemas como dinheiro, não é o que interessa agora, de todo. Quase que perdi a vida lá atrás, é a menor das minhas preocupações.

— Não existem tornados marinhos, pois não? — O Mateen pergunta passando umas das pernas longas para dentro do barco, olha à sua volta assustado, como se algum bicho lhe fosse saltar para cima.

A ideia faria com que me risse, se o que aconteceu tivesse sido há uns anos, isto está tão fresco na minha cabeça que já começo a ficar assustado com ele.

— Nada com que tenhamos que nos preocupar. — Os rostos de todos os que entram no barco ficam visivelmente mais relaxados, se existem minhocas gigantes que por alguma razão conseguem criar tornados de areia à sua volta, pensar que podia haver criaturas parecidas na água não é uma ideia tão estupida quanto isso.

Com alguma ajuda subo para o barco, não é grande o suficiente para que todos tenhamos o nosso espaço, fico a bater ombros com o Kiell, e pernas com a Bell, à minha frente. Apenas Mateen continua com medo, espalma as mãos no seu assento, perto das pernas e mantém-se atento às águas quando o barco se começa a mover, sem quase ruído nenhum, com ajuda do que presumo ser um tipo de motor. Estou ao lado do Kiell, o rapaz com um olhar sério, como se nada o atingisse, enquanto controla o trajeto do barco. Navega relativamente rápido, sinto o sol a bater-me na cara, a queimar-me a pele, e só quando estamos a meio do caminho é que começo a sentir-me enjoada.

O que aconteceu há pelo menos uma hora não me sai da cabeça, duvido que saia durante uns tempos. Estou com suores frios do medo que tive, enjoada do barco e queimada, pelo menos nas bochechas que me parecem quentes, pelo sol. Faço por me concentrar no que me rodeia em vez de olhar para as águas que refletem a luz do sol e me queimam ainda mais a pele. O Mateen está aterrorizado, e sei que usar essa palavra não é um exagero quando o barco balança um pouco e um som esquisito de aflição lhe sai da garganta. Os olhos que já pareciam enormes, estão ainda maiores, arregalados, como se quisessem inspecionar cada gota de água. Estão colados no rio, não sei se para verificar se nenhum bicho lhe saltará para cima, se a pedir-lhe para que não o ataque. 

O Helian faz o que pode para o distrair, chamando a atenção para o seu rosto em vez do rio. O Kiell ajuda mostrando o compartimento do barco que contém umas canas de pesca. Começam uma conversa a três sobre o que sabem de pesca, sei que o Helian sabe pescar, maior parte das vezes era isso que fazia quando visitava a família, a sua rica família que só sabia pescar em iates enormes, e jogar golf nos seus campos gigantes. Pergunto-me porque é que o Helian me contava as suas aventuras com a família que não podia aturar, quando sabia que só aumentava a minha raiva para com o seu estilo de vida. Acho que sempre foi porque não tinha ninguém com quem falar, o rapaz que podia muito bem ser o mais popular de todos os lugares que frequenta, e eu sou a sua única amiga.

Ele fazia por ignorar as minhas caretas ou piadas de mau gosto apenas porque queria desabafar de alguma forma, ter alguém para o ouvir, mesmo que essa pessoa o odiasse mais por isso. Nunca o odiei verdadeiramente, talvez um pouco, mas o amor por ele será sempre maior, a sua amizade e carinho foi o que me manteve com a cabeça acima da água muitas vezes.

O Kiell conta-nos que pescava com o seu pai adotivo antes de falecer, também diz que não foi muito tempo depois que chegou a estas terras e, mesmo que não dê muitos mais detalhes, sei que ele tem muito respeito por esse homem, que foi uma pessoa importante na sua vida mesmo que tenha sido por pouco tempo.

— Espera, tu nunca viste água!? — O grito esganiçado da Bell faz-me prestar atenção às suas brincadeiras, o Mateen fica envergonhado, encolhido no próprio corpo e confirma.

— Sei o que é água e gelo, mas a minha "água" não é como aqui. Não tem este cheiro, não é tão líquida. É diferente. — Ele olha para o rio como se tivesse nojo, como se o fosse engolir por completo. Não saber o que esperar do desconhecido é algo que traz receio a todos, mas é estranho pensar que alguém pode não ter este tipo de água no seu planeta, porque toda a minha vida vi este tipo de água. Fiz natação em pequena, bebemos, lavamo-nos, vamos à praia, estamos sempre rodeados por água. Pensar que existe um tipo diferente do que vejo todos os dias é curioso. 

É óbvio que esse medo só pode ser motivo para fazerem asneiras, pelo menos para os rapazes presentes no barco, que pretendem explorá-lo. Tenho que me agarrar à Bell quando os dois rapazes começam a abanar o barco para deixar o Mateen mais nervoso do que já está, o miúdo parece que vai vomitar, agora é certo. Não é nada brusco ao ponto de virar o barco, mas o suficiente para algumas gotas me saltarem para o rosto.

Os que discutiam há umas horas agora estão juntos para atormentar o rapaz laranja, é muito estranho ver o seu olhar de cumplicidade. 

Juntos para a tortura, mas não para o resto.

Ver os dois sorrisos que se formam é esquisito, até o sorriso de Helian, que é uma pessoa que vejo quase todos os dias, é raro. Mas o rosto de Kiell ilumina-se de tal maneira que me tira o ar dos pulmões, parece um menino pequeno, e não o homem que assusta com a sua expressão séria, parece que faz um esforço sempre por se manter sem reação, mas aquele sorriso é capaz de deixar o dia mau de alguém no melhor dia do mundo. Muda-o completamente, transforma-o num rapaz com a sua idade, muito mais novo, uma pessoa acessível.

O Mateen agarra-se aos lados do barco para os parar, ameaçando que vai vomitar, quando os dois o agarram e obrigam-no a levantar, rindo como desalmados. Eu só tento manter-me a mim e à Bell dentro do barco, não conseguindo aguentar o sorriso que se forma nos meus lábios. Ver tanta boa disposição faz-me pensar que estou em segurança, que estou bem, que não existem monstros desconhecidos, que estou apenas numa saída com amigos.

Aqui, durante estes segundos, não há preocupações.

Com ele de pé, a debater-se como um louco, o barco torna-se instável.

Mas o caos só se instala quando a lança já atingiu o Mateen, e o seu corpo cai à água com uma violência tão grande que leva mais um com ele.

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