Tornados de Areia
Não estão muitas pessoas na rua, mas as que estão, trabalham. Uns transportam produtos nas carroças, outros nas mãos, vejo uma mãe a levar o seu filho ao colo, um casal atrás de uma banca, a vender jarros de algo parecido com barro. Mas nenhum deles se parece com o Kiell, têm a pele mais pálida que ele, o cabelo branco, mas o que me impressiona mais são as suas asas. Todos eles as têm, nenhum as esconde. São enormes, como se tivessem dois balões colados às costas, são escuras, mas parecem ser finas, quase consigo ver através delas. Eles conseguem voar? E o Kiell? Também consegue?
Ele tem aqueles dois cortes no seu robe, será que são para as suas asas? Ou estará apenas a usar a roupa deles mesmo não fazendo parte deles?
Parecem uma espécie completamente diferente do Kiell, porque as pessoas do Sul serão tão diferentes? Quero perguntar-lhe, quero falar sobre tudo o que vejo, mas pela postura hirta do Kiell não ouso, sinto que devo estar alerta e como ele nos avisou, de cabeça baixa, então obedeço.
Ele quer que passemos como um deles. Com estas roupas ninguém diria que não o somos, estamos completamente escondidos, só se subir a viseira é que alguém notaria. Os nossos corpos são similares, o mesmo número de membros, construídos da mesma maneira, passamos despercebidos.
Só estou a tentar perceber porquê, porque é que eles são hostis para quem não é daqui se portais são algo normal para eles, se o rei tem este poder não deviam estar habituados a ver alguém de longe?
Porque temos que nos pôr atrás dele, em formação como soldados, para parecer os seus seguranças? Porquê?
E porque temos que passar pelo meio das ruas? Não poderíamos ter dado a volta às casas, ter ido por uma rota mais discreta?
Faço nota mental de lhe perguntar tudo isso enquanto caminhamos.
As pessoas sabem quem ele é, mal o apanham, não tiram os olhos dele. Não parecem gostar dele, os seus olhares são de nojo, como se ele fosse um desconhecido, um assassino, alguém de quem se devem afastar. Talvez seja por isso que ele parecia tão triste quando disse que o trouxeram para aqui do Sul, se calhar passou um mau bocado por ser diferente.
Consigo sentir o ódio de todos eles, tudo direcionado ao rapaz de pele azul à nossa frente, mas ele não se deixa afetar, suponho que já esteja habituado. O homem que passa por nós, quase me raspa pelo uniforme para poder olhar para o Kiell, para o que está a fazer para poder observá-lo, mesmo que com cara de quem é capaz de lhe saltar para cima. Engraçado como o ódio é tão visível, mas nenhum deles atua sobre ele, não há uma palavra, um aceno, um movimento menos simpático, é como uma celebridade odiada ao qual ninguém deseja acertar, apenas julgar.
Ele acelera o passo quando as casas se tornam escassas e vejo a floresta mais à frente. Não sei quanto tempo andamos, só sei que me doem os pés, as ruas não são niveladas e os sapatos magoam-me.
Mal passamos as árvores há um suspiro comum, como se houvesse um alívio instantâneo, aqueles olhares, manter a forma, andar sem parar e sem falar.
— Porque te odeiam? — O Helian pergunta, puxando o fato até ao pescoço, finalmente apanhando algum ar. Faço o mesmo logo a seguir, tenho que pôr a cabeça de fora, já não aguentava muito mais. Ele também percebeu, acho que todos nós chegamos a essa conclusão.
— Porque sou responsável por eles. — Então a sua casa é maior que os outros porque ele é como um presidente naquela aldeia, uma figura de autoridade. — E não nasci aqui, por isso não sou digno. — Ele completa, sem esperar por mais perguntas que sei muito bem que sairiam da boca do Helian se ele não as esclarecesse. O Helian abana a cabeça, obviamente notou que ele não é igual aos habitantes da aldeia.
— Também consegues voar? —A Bell tem outras preocupações. A minha primeira reação é rir, nota-se que ele não gosta de partilhar, não é como se fosse sacar das asas e dar um voo só para nos satisfazer a curiosidade.
Contra todas as minhas dúvidas, os seus olhos fecham com força, o pescoço inclina para um lado e para o outro e vejo as veias na sua pele quererem saltar. Dos buracos no tecido azul-escuro saem as suas asas, muito lentamente no início, desdobrando aos poucos com estalidos, aumentando de tamanho até o cobrirem, lindas e assustadoras. Será que aquelas pessoas podem retrai-las para o corpo e deixá-las sair quando querem como o Kiell?
São mais pequenas que as deles, mas abraçam-no como duas mãos protetoras, são mais grossas, negras e têm um espinho na ponta, como um ferrão. Muito mais ameaçadoras do que as das pessoas que vi, que pareciam inchar com o vento, estas parecem querer saltar-me para cima. Ganha um tom mais assustador em segundos, as suas vestimentas escuras e largas, com aquela cara natural de poucos amigos, os olhos negros e o toque das asas a envolvê-lo dá à sua imagem um aviso, afasta-te.
As suas veias parecem querer explodir do seu corpo, os braços estão repletas delas, grossas e salientes, como se ter as suas asas para fora fosse um fardo para todo o organismo.
— São diferentes. — O Mateen constata o que todos estamos a ver. O Kiell apoia o peso do seu corpo na perna esquerda, dobrando a direita durante um pouco e as asas acompanham o seu movimento, como um membro normal, como algo que faz parte dele. Como nós com os braços ou as pernas, ou os gatos com a cauda, aquelas asas pertencem-lhe, movem-se com ele.
— Aqui não há tanta luz solar como nos Grandes Ventos, as asas deles captam essa luz. Lá em baixo não precisamos disso. — Quero muito tocar-lhes, embora ache que se me aproximasse elas ganhariam dentes que me engoliriam. O seu dedo passa pelo ferrão na ponta de uma das asas como uma carícia, a sua é expressão nostálgica como se fosse um velho amigo que não via há anos. Depois disso faz um movimento com o ombro que faz com que as asas entrem em ação novamente. A maneira como as asas voltam para dentro arrepia-me por inteira, consigo ouvi-las dobrar, e a sua careta de dor incomoda-me, talvez seja por isso que não as deixa sair muitas vezes, a dor pode não valer a pena.
A ideia de poder voar é muito apelativa, especialmente para alguém que gostaria de fugir da sua vida, como eu. Podia visitar qualquer lugar com aquelas asas, conhecer novos sítios, estar sozinha lá em cima onde só pássaros e aviões chegam, ouvir apenas o vento a passar-me pelos ouvidos, sem chão para pisar, pessoas com quem falar e esbarrar, sem edifícios a rodear-me.
Liberdade, é isso que simboliza estas asas que ele tem.
Acho que, sabendo que podia estar lá cima onde nada me alcançaria, fazia a dor valer a pena.
— Estás contente por voltar para casa? — A pergunta deixa-o desconcertado, acho que passou o tempo todo tenso porque só agora é que deixa cair os ombros. Mil pensamentos passam pela sua cabeça, consigo vê-lo na sua expressão, sei que não vai partilhar mesmo antes de ele responder. Algo nos seus olhos muda, como se eles fossem um grande portão que acabou de ser fechado.
— Ainda temos um caminho grande para fazer. — Evita a pergunta, pega no cinto que falta e passa-o pela cintura, ativa-o e num instante está como nós. — A partir daqui precisamos de ter cuidado.
— Porquê? — O Mateen fica alarmado pela primeira vez desde que chegou.
— As pessoas não passam deste limite por uma razão, vamos estar atentos, quem ouvir alguma coisa fora do normal avisa. Qualquer coisa, pulso. — Levanta o braço e aponta para o fato, depois recomeça a caminhada como se não nos tivesse acabado de assustar.
Olho para cima, para o céu cheio de estrelas quase coberto pelas árvores, sei que o Anel está atrás de mim porque ainda ilumina esta parte inicial. As árvores são muito grossas, levemente inclinadas para a esquerda, o vento que passa lá em cima, tão alto, parece muito mais forte do que o que sinto aqui. O terreno é difícil e instável, com subidas e descidas íngremes que sei que serão complicadas de ultrapassar, especialmente para pessoas que não estão habituadas.
Agradeço sempre pelas ajudas que o Mateen e o Helian me oferecem, tenho medo de descer sem ser sentada e perco o equilíbrio cada vez que subo. A este ponto estou exausta, pronta para descansar, mas se os outros não param, eu também não. Vou me apoiando nas árvores para descansar nem que seja por uns segundos, os troncos são fortes e têm desenhos salientes e antigos de riscos que se prolongam até cima, consigo ver rostos estranhos e deformados em algumas, mas a este ponto a cabeça só se quer distrair do esforço que está a fazer.
O Kiell parece determinado a chegar à outra ponta da floresta antes que o sol nasça de novo, não sei se tem alguma razão para isso, mas faço para me manter ao seu lado, caso alguma coisa aconteça.
— Não aguento mais. — A Bell queixa-se, agarrando-se aos tornozelos, deve estar ainda mais cansada que nós com aqueles pesos.
— Estamos quase no final, descansamos mais em frente. — O Kiell puxa-a pelos braços e ergue-a de novo e, com um bufar alto, retoma o extremo esforço que tem feito. Quero concordar com ela, quero parar, não aguento muito mais a suar assim, preciso de comer e beber alguma água.
— Temos que nos distrair. — O Mateen conclui, passando o braço pelos ombros da Bell, não nota que está a pôr mais peso em cima. O sorriso que tem na cara parece uma ilusão quando o grupo está todo exausto e mal-humorado com a falta de descanso. É algo que venho a reparar nele, tem aquele tipo de personalidade que nunca entendi, o bem-disposto incondicional. Que mesmo nesta situação, em que devia estar paranoico e receoso de como chegará a casa, e simultaneamente cansado do esforço que tem feito há tanto tempo, consegue manter a conversa animada e transmitir um sorriso amigo mesmo que sejamos todos estranhos. O Mateen é aquela tipo de pessoa que seria um grande companheiro, que nunca deixaria que ficasses mal ou de trombras, que mandaria uma mensagem a perguntar se comeste e daria palmadinhas de força nas tuas costas enquanto vomitavas na sanita depois de uma noite louca. Com os olhos castanhos que a cada segundo parecem mais amarelos e brilham de curiosidade, as costas eretas com a sua altura incrível e o sorriso encorajador, ninguém diria que anda há horas. — Como chegaste aqui?
— Por acidente. — Ela responde, com dificuldade a respirar do cansaço. Apoia-se nas coxas dobradas, sem conseguir manter o peso que o Mateen lhe coloca nos ombros. — Estava a brincar com os meus irmãos mais novos, enquanto voava para longe deles o portal apareceu e eu fui sugada. Se o Kiell não me apanhasse o pé teria flutuado para sabe-se lá onde.
— Parece que o Kiell estava sempre no sítio certo à hora certa. — O Helian consegue dizer na sua voz mais acusadora, ele não está convencido, mas sempre foi um desconfiado, o que é bom para quem faz o que ele faz, qualquer pessoa nos seus negócios lhe pode tentar passar a pena. Nunca foi enganado porque tem um bom olho. Neste momento acho que o seu medo está a ganhar ao resto, e o seu julgamento está a ser afetado. O Kiell ainda não mostrou que não é de confiança, aliás, é o único que nos está a ajudar.
O Kiell não responde, limita-se a continuar o seu caminho difícil, e enquanto o grupo fica para trás a conversar, tento chegar ao passo dele. Saltito até o alcançar, uns bons passos em frente, os seus passos são mais largos, e as pisadas mais fortes, embora ache que a última parte se deva a alguma raiva acumulada do comentário do Helian.
— Quando ele confiar em ti não vai ser tão rude, dá-lhe tempo. — Tento confortá-lo porque ele parece afetado pelas palavras grossas do Helian. Não sabe que ele é assim com toda a gente, não é fácil confiar em quem seja, então tem a tendência para afastar todos, a não ser que sejam teimosos, como eu fui.
O tempo é que nos fez amigos, a paciência, não foi algo repentino. Uma mistura de trabalhos dados pelo Sesh forçando a nossa proximidade, com a necessidade que ele sentiu de me proteger mesmo não precisando, sentimos uma ligação desde o início. Conhecia a sua obsessão com o perfeccionismo, e queria alguém que não me prejudicasse, sabia que mesmo que aceitasse trabalhos loucos, seria um bom líder e não me deixaria ficar mal. Mas não foi fácil fazer um buraco nas suas paredes, levou tempo, aqueles comentários ouvi-os eu muitas vezes, o que interessa é que foram desaparecendo.
O Kiell mantém o passo acelerado como se estivesse com ainda mais pressa e quando vê que não o consigo acompanhar começa a ajudar-me. Faz uma careta como se eu fosse um fardo, mas logo a sua personalidade deixa-se mostrar, começando por dar ordens que me ajudam a mover mais facilmente pela terra alta, mostra que quer ajudar dando conselhos úteis, é um começo.
Sei que está a prestar atenção ao que dizem lá atrás porque de vez em quando reage às palavras deles, mas finge-se desinteressado.
— O que te preocupa tanto? Não estamos a caminho? — Pergunto a tentar regularizar a minha respiração mesmo sabendo que não vou conseguir se estes trilhos complicados continuarem. Ele bufa demasiado, aquelas caretas parecem não querer sair-lhe da cara, mudando para uma nova a cada minuto, uma preocupação atrás da outra que lhe traz uma névoa para aqueles olhos negros.
— Tudo. Tenho medo de vos pôr em perigo. Tenho que estar atento. — Acho que se frustra com a minha falta de jeito nas descidas e agarra-me o braço para ajudar a que desça sem me sentar no chão e rastejar até baixo. — Pés de lado. — Corrige, e eu faço como ele, acabo por não escorregar pela primeira vez. Lá estão as dicas, a preocupação escondida.
— Antes de mim, já tinhas ido a outros planetas? — Dizer estas palavras é simplesmente ridículo na minha cabeça, nunca pensei que falaria com ele novamente, muito menos que estaria noutro planeta e a perguntar-lhe sobre ele. É como se a cabeça não quisesse compreender que neste momento estou num ambiente completamente diferente. Ele abana a cabeça negativamente enquanto desce primeiro que eu para me auxiliar, pega-me na mão e puxa-me com cuidado, parece tão brusco com os seus próprios movimentos que mostram a sua frustração, mas quando me ajuda é mais calmo, mais gentil, não me aperta demais os dedos, tenta apenas guiar-me pelo terreno para que aterre bem.
— Porque é que ficas tão nervosa quando falas comigo? — A pergunta é feita com tanta normalidade que o meu corpo encolhe-se com a estranheza. Largo a sua mão de imediato, fitando os seus olhos negros com vergonha, sem saber o que dizer. — As bochechas ficam vermelhas e falas mais rápido.
Eu respondia-lhe, se soubesse o que responder.
Não posso negar que fico mais nervosa a falar com ele, o porquê, é um bocado difícil de precisar. Nunca pensei que o veria novamente e agora já não somos crianças, e há tanta coisa que lhe quero perguntar, mas o nervosismo não deixa, e ele não parece querer respondê-las.
Acho que o ligo a alguma altura mágica da minha vida, onde eu pensava que estava tudo bem, que a minha preocupação maior era se podia ir brincar para o parque ou não. Não sabia que a minha mãe ia dar uma volta e mudar completamente, não sabia que ia passar por sessões de gritos e discussões, que ia ficar sem pai.
Agora que penso nisso, quando saí daquele tubo foi como se a minha vida já estivesse noutro rumo.
Não sabia disso, mas ia perder a conexão que tinha com a minha mãe e ia perder o meu pai, nunca mais o veria, teria que crescer com uma mãe de coração despedaçado que me culpava pelo seu rompimento.
Teria que arranjar um emprego onde fazia por trazer o máximo de dinheiro para casa.
Ele foi o resto de magia que tinha na minha vida.
Só ele me provou que as coisas podiam ser bonitas, diferentes, maravilhosas.
Aquele mundo que se foi tornando cada vez mais cinzento teve o seu processo mais lento por causa dele.
Ele não faz ideia do símbolo que é para mim.
— Porque é que tu não ficas? — A pergunta sai como uma defesa, acho que fiquei mais chateada do que pensava. Dou demasiadas pistas sobre o que sinto com o meu corpo, é fácil notar na cor das minhas bochechas e nas minhas maneiras. Se calhar sou eu que sou demasiado fácil de ler.
— Quem diz que não fico? — Ele murmura, para que os que estão atrás não ouçam. A sua voz muda, parece mais suave, como se só usasse essa voz em momentos raros. — Eu conheço-te, pensei muito em ti em pequeno. — As suas palavras surpreendem-me, ele pensou tanto quanto eu nesta experiência? Foi tão estranha como foi comigo? — Estava sempre à espera que voltasses, mas o anel nunca mais abriu.
As suas confissões continuam, e finalmente começo a sentir que passamos pelo mesmo. Lembro-me de pensar que queria voltar, que queria vê-lo, o rapaz diferente do sítio diferente.
Acho que queria voltar porque assim não estaria no meu mundo, talvez assim não tivesse que lidar com os meus problemas, podia estar com o rapaz, naquele mundo estranho com casas escuras, viver com ele, fugir das responsabilidades, da raiva da minha mãe, dos pensamentos sobre o desaparecimento do meu pai. Não haveria dor, apenas aventuras, exploração de um planeta novo. Desejei por isso, várias vezes, desesperada pela fuga da minha vida.
Ele significa muito mais para mim do que eu para ele, apenas pelo que eu passei. Tornou-se um símbolo de liberdade e de magia.
Agora dá-me uma ideia nova do que tinha pensado unilateralmente, ele esteve lá à minha espera, como eu. Só isso, só esse pensamento de que estive na sua cabeça, preenche um vazio no meu coração que não sabia que tinha. Se antes estava vermelha, então ele pensará que vou pegar fogo a qualquer momento, o meu corpo parece explodir de qualquer coisa parecida com entusiasmo, quero sorrir, perguntar-lhe mais sobre o que sentia, se era como eu, se se sentia tão sozinho como eu me senti, se queria realmente fugir para um lugar diferente como eu desejava na altura.
Mas ele para abruptamente, e eu quase que lhe passo, não esperando o seu cessar de movimento.
— Vamos parar? — A Bell pergunta desesperada, curvada, completamente exausta como o resto do grupo. Quando o Kiell confirma, o Mateen atira a mochila que tem as costas para o chão e senta-se, os outros imitam-no.
O ambiente causa-me arrepios, as árvores curvadas e estranhas tapam a luz dos Anéis, mal consigo ver o que está à minha frente, os sons são escassos, como se algo nos estivesse a observar, a conservar a voz até poder atacar.
Não saber o que esperar também não ajuda.
Dentro da mochila encontro um saco-cama fino, onde me deito junto aos outros. Todos eles já investigaram o que carregam, esperando permissão para poder dormir um bocado.
— Já estamos quase no rio, podem dormir. Eu fico de vigia. — O seu olhar diz-me que realmente é necessário alguém acordado, há perigos à nossa volta, como é que ele nos protegeria? Como seriam os animais daqui? Maiores? Com mais garras? No nosso mundo podíamos andar de carro durante horas e a terra ainda não seria perigosa, seria civilizada. Como é que saindo daquela aldeia já é preciso alguém acordado enquanto os outros dormem? Não estamos armados, não sabemos lutar, muito menos algo que nunca vimos.
Estamos tão mal preparados.
Isso assusta-me.
A falta do plano.
Deixo que os outros tentem adormecer para o examinar. Ainda veste o fato que todos usamos, não sei se ele realmente precisa de vestir aquilo, mas fá-lo para ter a mesma proteção que nós. Está sentado à minha frente, encostado a uma raiz saliente enorme, enquanto o Helian dorme em cima do braço à minha esquerda. Sei que ele ainda não adormeceu, nunca dormiria quando sabe que não há plano, que não há conhecimento, mesmo assim tenta descansar, e eu deixo-o.
O Kiell está atento, suspirando como um homem verdadeiramente frustrado. Pergunto-me se é realmente aquela preocupação que fala, se também está cansado, ou se somos assim um fardo tão grande.
Engraçado como sob esta luz fraca parece um humano, não lhe consigo captar a pele azul acinzentada, nem a cor do cabelo.
Apenas vejo os seus olhos negros, saltando de um lado para o outro, o nariz que parece tão perfeitinho, as sobrancelhas grossas, os lábios escuros onde gosto tanto de ver os seus sorrisos, o corpo alto e magro coberto pelo fato. Todo ele tão parecido connosco, como é que pode ter uma história tão diferente, ser de outro mundo. Parece mais bonito cada vez que o vejo, porque acho que vou notando em detalhes novos.
Provavelmente somos mesmo um fardo, ele estava bem na sua casa confortável antes de chegarmos aqui sem aviso, agora está a colocar-se em perigo por nossa causa. Pode magoar-se para nos mandar para casa. Está a pôr muito em risco para nos levar a Sul.
— Será que outros como nós estão a aparecer noutras partes destas terras? Podemos não ser só quatro. — Esse pensamento passa-me pela cabeça. Ele diz que aparecemos lá por acidente, que os anéis se mostraram porque o Rei deles não está em controlo do seu poder. O Kiell dá de ombros sem fazer contacto visual, parece nervoso. Suponho que se alguém passasse pelo portal e não tivesse um Kiell pronto a ajudar ficaria assustado, não devíamos estar a pensar também nessas pessoas perdidas?
— Vou fazer o que puder pelos que encontrar. — Promete, de olhos baixos. As suas palavras soam falsas, sem sentimento, parecem saídas de um papel decorado. Porque parece tão distante? Se tem esta preocupação por nós, também devia ter pelos outros que acabarem por ser sugados para aqui, eu tive escolha, mas a Bell não, com certeza haverá mais como ela.
— Não há maneira de prevenir isto?
— Quando isto acontece quer dizer que o poder está a transferir. Não há maneira de parar. — Tenho a certeza que quando começa a tirar o seu saco-cama da mochila fá-lo porque não quer olhar para mim. Está desconfortável com as perguntas. Gostava de entender estes poderes que ele diz que o Rei tem, na Terra não há essa magia, não há esses poderes, pelo menos que saibamos. Aqui a pessoa no poder é literalmente a mais poderosa, a que pode fazer coisas que mais nenhuma pode, isto inclui viajar para sítios maravilhosos que um terráqueo nunca sonharia, e com uma facilidade incrível. É ainda mais curioso pensar que, dos filhos desse Rei, apenas um herdará esses poderes. Nas nossas monarquias normalmente seria o filho primogénito quem lhe sucede, aqui é quem recebe poderes, é tão aleatório que temos que correr para o Rei com medo de quem lhe vier a seguir, se morrer entretanto.
— Suponho que esteja a passar para os filhos dele, como explicaste. — Ele abana a cabeça depois de um longo tempo, e de repente decide que já falou comigo o suficiente, levanta-se e afasta-se de nós. Não me digna com uma despedida, nem mesmo com um olhar, estica as pernas longas e vira-me as costas. Depois anda até à escuridão, até deixar de o ver.
— Ele não me inspira confiança. — O Helian sobressalta-me. Sabia que não dormiria numa situação como esta, ouviu tudo. Ainda de olhos fechados acusa-o sem vergonha nenhuma. Olho para ele, esperando uma continuação, e sei que sente o meu olhar quando cria pequenas rugas na cana do nariz, como se estivesse desconfortável. Noto como mesmo com a falta de luz consigo ver os dois sinais que tem na cara, um perto do nariz, outro na bochecha. — Há algo que não nos está a contar, e estamos a segui-lo sem saber para onde nos leva.
— Ele disse-te para onde nos leva.
—Sabes lá se está a dizer a verdade. — E eu não posso argumentar contra ele, consigo perceber a sua suspeita, porque também as tenho, está constantemente nervoso. Pode ser medo, preocupação, frustração, um pouco de tudo, mas o facto de lhe custar responder às minhas perguntas deixa-me com a pulga atrás da orelha. — Dorme. Eu fico acordado. — Ele assegura, e pela primeira vez sinto-me mais calma. Se ele ficar de olhos abertos, coisa que sei que a sua ansiedade não deixará que os feche, talvez possa passar pelas brasas.
— Acorda-me daqui a pouco e trocamos. — Ele faz um som de concordância, mas sei que não me acordará.
Por isso é que a luz me incomoda quando começa a amanhecer, deixou-me dormir até de dia, e adormeceu no processo. Está todo encolhido, provavelmente com frio. Impressionante como até a dormir parece irritado, com o rosto tenso, os olhos fechados com força e os lábios naturalmente cheios comprimidos numa linha fina, a insegurança de tudo isto acompanha-o até aos sonhos.
Levanto-me o mais silenciosamente que consigo para não os acordar e noto que o Kiell não está em lado nenhum. Agora que é de dia já consigo ver muito melhor, a floresta é iluminada, um monte de troncos de um lado ao outro.
Pergunto-me onde foi o Kiell, se ficou a noite toda fora desde que saiu durante a nossa conversa, ou se se ausentou apenas por um pouco.
Decido ir em frente, para o procurar, mas não me distancio muito.
Mal passo a subida enorme noto que estávamos apenas a uns metros do fim da floresta, as árvores dão a um campo de areia plano que se prolonga até ao rio, consigo vê-lo ao longe, bem longe. Pelo menos não haverão subidas e descidas terríveis, acho que o único problema que teremos é queimaduras solares e pedras nos sapatos. Passo a última árvore e chego ao campo, a areia faz padrões lindos que rodopiam e formam outras espirais. O campo inteiro está cheio desses espirais, nada cresce aqui, nada parece viver aqui. Baixo-me para tocar na areia, grãos castanho-escuros, quase negros, e tão grossos como pedras. Cintilam tanto que passariam por um mar, dão uma sensação de movimento, como se, se desse mais um passo, seria engolida pelas ondas. Imito o padrão espalhado pelo campo com o dedo, e percebo que a areia está quente, aquecida pelo sol.
O som do meu pé sobre a areia é satisfatório, os grãos podem ser grossos, mas se ficar tempo suficiente parada sobre ela, afundo. Afasto-me um pouco mais do que queria, aproveitando o tempo que tenho sozinha, fingindo que não tenho qualquer preocupação na cabeça, fazendo para me divertir num planeta que desconheço até que os outros acordem. Desenho com o pé uma linha que fica marcada, tentando imitar a espiral em ponto grande, e mais uma vez, divirto-me com o som similar a um monte de pedras batendo umas nas outras.
É engraçado como vim de uma floresta com árvores que parecem querer engolir-me viva, tão grande que conseguem afastar a luz, com um terreno cheio de altos e baixos, para um campo plano e morto, onde nada cresce.
É um deserto, ao lado de uma floresta fresca que parece tão viva.
— Tam! — Ouço o berro atrás de mim e vejo o Kiell perto das árvores, tem um pé dentro e outro fora. Está com as mãos para cima abertas, dizendo para parar.
— O que se passa? — Grito de volta e quando dou um passo em frente ele abana as mãos e cruza-as, negando, não permite que me mexa.
É aí que olho para o lado.
Ao fundo, vejo um nevoeiro enorme vindo na minha direção, uma grande tempestade de areia.
Quando eles se aproximam é que percebo que não é como as tempestades de areia que já vi na televisão.
São tornados, tornados de areia.
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