Suspeitas

Tudo acontece demasiado rápido, só vejo o corpo de Mateen cair na água, e o Helian, perdido no desequilíbrio cai atrás dele. Depois disso os dedos do Kiell pressionam-me na nuca para que me baixe no barco e deita-nos aos três quando os ataques continuam.

Ele levanta a cabeça para olhar para o lado onde os dois caíram, vejo umas mãos agarrarem a borda do barco e reconheço o Helian. Ele quer içar-se, mas o Kiell não deixa.

— Fica agarrado, se subires eles atacam de novo. — Ordena, deitando o ar todo para fora dos pulmões, enquanto fecha os olhos com força.  Estou colada a ele, a Bell está ao meu lado a gemer de medo, agarrada ao meu fato. Vejo o seu rosto coberto de medo, está a fazer as contas naquela cabeça, a tentar perceber o que fazer.

— O miúdo está a afogar-se! — O Helian grita do lado de fora do barco, tem os nós dos dedos brancos de fazer tanta força para se manter em cima.

Suspiro, o Mateen está bem, por enquanto. A lança não foi fatal, mas a água pode ser.

— Eu sei nadar. — Informo.

— Ele está a ficar sem ar, vai usar o teu corpo para flutuar. Vais morrer primeiro que ele. — O Kiell diz sem qualquer emoção na sua voz, como se fosse a coisa mais normal do mundo.

— Posso ajudar. — A Bell, ao meu lado, avisa, depois aponta para os pesos que tem nas pernas.

O Kiell abana com a cabeça, não acho que seja para a Bell, mas sim para si mesmo.

Depois de uns segundos começo a ouvir os gritos de Mateen, o inspirar com dificuldade, não se consegue manter em cima e temo que esteja a ficar cada vez mais longe.

— Muito bem. — Conclui o Kiell com um abanar de corpo. — Bell, com cuidado, ajudas o Mateen a chegar a terra, estamos suficientemente perto. Helian, voltas para o barco e remas com a Tam. Ao meu sinal.

Ele passa por cima do meu corpo para ficar no meio das duas, pega numa corda que estava no compartimento das canas de pesca e amarra à cintura de Bell, ajuda-a a desapertar os pesos e durante os segundos de silêncio que se seguem pressiona-a com o braço para que ela se mantenha em baixo. Durante esse tempo outra lança passa muito rente ao barco.

Muito devagar o Kiell mete-se de joelhos no barco, ainda curvado, para que quem quer que nos esteja a atacar não veja.

O olhar que me transmite deixa-me aterrorizada, ele está com medo. E por isso sei que também devo estar, que o que ele vai fazer é demasiado arriscado, pode magoá-lo. Está a hiperventilar, a sua testa está a suar, tem a boca entreaberta porque acho que não lhe está a entrar ar suficiente nos pulmões. Parece que a qualquer momento pode colapsar.

Crio a minha cara mais séria e confiante, e abano-lhe a cabeça, concordando com qualquer plano que ele tenha, dando-lhe força e confirmação de que tudo correrá bem.

Espero que seja o suficiente para executar o que quer que esteja naquela cabeça.

— Agora! — Grita.

Num momento, carrega no cinto e o fato retrai, deixando as suas roupas anteriores visíveis. A careta de dor que faz é-me familiar, consigo fazer as contas antes de ver as suas asas a sair pelos dois buracos do seu robe brilhante. O processo parece ser o mesmo que antes, as veias que ficam salientes, como se estivesse a fazer um esforço grande, a expressão de quem não gosta da sensação que aquelas asas lhe dão, e depois elas saem, abrindo como um leque, enormes, quase cobrindo o barco todo. Com um movimento forte, e uma inspiração rápida, salta e levanta voo, e com ele vai a Bell que perde o peso que tinha.

Quando começa a flutuar, agarro-a pelo braço e passo a sua mão para a Helian, que a atira para o lado onde o Mateen deve estar. Tenho confiança suficiente para me sentar no barco, arriscando um ataque, para poder puxar o Helian de volta para o barco.

Por uns segundos posso observar o meu ambiente.

As asas do Kiell parecem ainda maiores, a bater no ar, aguentando o seu peso, voando como um pássaro. É das coisas mais bonitas que já vi. Ele dirige-se a terra, onde devem estar os nossos atacantes.

Do outro lado a Bell está a chegar a Mateen, que abana os braços para se manter acima. O seu vestido ondula com o seu corpo, move-se pelo vento como uma anémona, os seus movimentos são graciosos, maravilhosos. Ela chega rápido à sua localização, agarra-lhe pelo braço e puxa-o para cima com os movimentos que o seu vestido faz, com a ajuda do vento consegue trazer pelo menos metade do seu corpo para fora. Faz uma careta horrível por estar a fazer força para o manter a respirar, acho que quer que se recupere antes de começar a trazê-lo para terra.

Ela diz-lhe algumas palavras, e ele responde-lhe no meio de inspirações forçadas e barulhentas, aparentemente mais calmo. Depois começam a deslizar pelas águas, a Bell a voar e a transportar o Mateen, pela água. Estão perto, o caminho deve correr relativamente bem até terra.

É a vez de nos começarmos a mexer, o Helian controla agora o barco e navega depressa até Mateen e Bell, que acabam de chegar.

Continuamos agachados, com medo de sermos vítimas do próximo ataque.

O Kiell está fora da nossa vista, já se meteu entre as árvores que se erguem perto da praia.

Pergunto-me se está bem, ou foi atacado, como o Mateen.

Não muito longe o Mateen está deitado de barriga para cima na areia, queixando-se de dor, usando a pouca força que tem para segurar a corda que mantém a Bell com os pés na terra. Quando atracamos o barco e corremos em direção aos dois, aperto os pesos à volta da Bell, enquanto o Helian examina o ferimento. Ele carrega na sua cintura e o fato desaparece para dar lugar à túnica branca que o Mateen antes usava. Ajudo-o a afastar o tecido para que possa ver o que pode fazer. 

O seu braço está rasgado, a pele laranja sangra um líquido branco que me queima a pele quando o toco. Pego na mochila que tenho, procurando pela mala de primeiros socorros que vi na floresta e encontro um frasco castanho com algum líquido lá dentro que não se assemelha a nada que alguma vez tenha cheirado, ligaduras, linha e uma agulha.

— Ele ainda não voltou. — As palavras saem-me da boca sem que lhes dê permissão. Os olhares que recebo fazem-me sentir vergonha por estar a pensar no Kiell, mas talvez não lhes tenha ocorrido que ele pode resolver esta situação mais facilmente que uma agulha. — Ele é o único que o pode curar.

— Devíamos ir procurá-lo. — O Helian rejeita imediatamente a ideia da Bell, não quer sair da praia até ele chegar, também deve ter medo do que poderá haver no meio daquelas árvores todas. A areia que tenho nos sapatos é igual à que encontrei do outro lado, mas não vejo as espirais em sítio algum, também tenho receio que haja monstros como aqueles aqui. Areia ou floresta, nada parece ser seguro neste momento. 

— Precisamos de o coser. — Ele fala decidido, começando por passar a agulha por aquele líquido com um cheiro intenso. — Não sabemos sequer se ele está vivo.

— Os ataques pararam, e tu não devias estar assim tão descansado, ele é o único que conhece este sítio. — Respondo na defensiva, se há pessoa que sabe o que poderemos enfrentar é ele, não nos convém que ele se esteja a esvair em sangue. E se ele não está a pensar no perigo que sofremos sem ele, tem que se lembrar que é uma vida em jogo. 

— Estou mais preocupado com o sangue que ele está a perder. — Quando passa uma gaze embebida pelo líquido pela ferida vejo-o fazer uma cara de dor, o sangue dele também lhe queima a pele. A Bell toma como deixa o guincho parecido com um gemido de dor que sai da boca do Mateen para pousar a sua cabeça no seu colo, talvez para lhe dar um pouco mais de conforto, a sua expressão é de partir o coração. 

— Isto vai doer Mateen. — Helian avisa, ignorando a nossa conversa, o miúdo vai gritar, os ataques pararam, mas não quer dizer que não recomecem. Se pelo menos o Kiell desse sinal de vida, se nos avisasse que estamos seguros, que podemos estar aqui na praia ao descoberto enquanto um rapaz grita de dor por estar a ser cosido. 

Não consigo ver isto. 

Apanho-me a afastar-me do grupo para caminhar até onde vi o Kiell desaparecer, sei que o Mateen está em boas mãos, o Helian é mais que capaz de tratar dele, tem muito mais jeito que eu para estas coisas.

O barulho dos sapatos contra as pedras dá-me arrepios e lembra-me quando olhei para o lado e vi os tornados a aproximar-se. O ruído que parecia tão curioso no início tornou-se num gatilho na minha mente. Mesmo que as minhas pernas vacilem, paro apenas quando estou a chegar ao arvoredo denso. Estou prestes a passar o primeiro tronco inclinado quando dou de caras com o Kiell. 

— Estás bem? — É a única coisa que consigo perguntar ao ver o buraco que tem na roupa, a parte do ombro está toda rasgada, foi atingido enquanto voava. Parece surpreso por me ver, especialmente sozinha, como se não estivesse à espera que o fosse procurar. Os seus olhos seguem os meus, percebendo a minha preocupação. Levanta o tecido para que possa ver que a pele dele está intacta, se estava magoado, já se curou. 

Só quando suspiro, aliviada com o seu bem-estar, é que noto nos vinte homens que tem atrás dele. Recuo para a praia, concentrada em cada soldado que segue o Kiell, todos eles de armas em mão, a olhar para mim como se fosse uma ameaça. Ele está a comandá-los ou que foi feito prisioneiro?

Um sorriso forma-se nos seus lábios, nada de muito aberto, um sorriso ladeiro, como se se sentisse poderoso ou convencido de ter aqueles homens consigo. Vejo uma nova imagem do Kiell, confortável o suficiente para se mostrar orgulhoso e brincalhão.

— Precisamos da tua ajuda, o Mateen...— Não preciso de explicar a situação porque ele já está a avançar, e os homens continuam a fazer o mesmo caminho, ordeiros, com passadas pesadas, entram pela praia, até chegar ao Mateen. Para a minha surpresa o Helian esperou mesmo pelo Kiell, não começou a cosê-lo, limitou-se a cobrir a sua ferida para que não saísse mais sangue. Tem as mãos completamente vermelhas, a pele está irritada e provavelmente com feridas por estar em contacto com o seu sangue. 

O Kiell apressa-se a ajoelhar em frente ao Mateen, passando a mão pelo seu braço aberto, quando lhe toca não parece ter dor, o seu sangue não fere todo o tipo de pessoas. São precisos apenas uns momentos para a pele começar a fechar-se, acelera o processo de cura, a pele cresce, cobrindo-se a si mesma, mal deixando cicatriz.

O rapaz bufa de alívio, reconheço essa sensação de quando era pequena, maravilhada pela possibilidade de todas as minhas feridas serem curadas num instante. Na altura aquelas queimaduras que me queriam destruir o corpo evaporaram como que por magia. É incrível o que ele consegue fazer, o poder de curar. Não haveria necessidade para hospitais, o Kiell chegaria, passaria a mão por todos os problemas e tudo ficaria no passado. Não havia sofrimento.

— Quem são eles? — Helian murmura de joelhos ao lado do Kiell. Tal como eu, suspeita a presença de todos aqueles homens que o seguiram.

Estes sim, são como o Kiell. O mesmo tom de pele, o cabelo acinzentado e olhos grandes escuros. Vestem fatos como o nosso, mas melhorados. Têm muito mais proteção, são mais robustos, com a barriga, braços e pernas almofadados, e o que alguns usam na cabeça são mais fortes, como capacetes de mota. Por isso parecem soldados.

Também pelas lanças que trazem nas mãos.

— Foram vocês que atacaram o Mateen. — Concluo, olhando para os homens e, como se tivesse sido ensaiado, baixam a cabeça. 

— Estavam a proteger a terra deles, somos forasteiros. — Estamos todos confusos no momento em que acaba a frase, porque está a defender aqueles que nos atacaram? E porque se inclui na palavra forasteiros se diz que a sua terra é aqui e não no Norte? — O Norte e o Sul não estão nos melhores termos, não se pode passar para este lado do rio.

— Então colocaste-nos em risco, outra vez.

— Eu não disse que o caminho ia ser fácil. — Explica com a mesma cara séria de sempre, vejo como odeia responder às farpas do Helian, tiram-no do sério. — Está resolvido, e o Mateen está bem.

— Podia ter sido fatal, Kiell. — A Bell exprime a sua frustração da maneira mais delicada possível, mesmo não concordando usa uma voz calma e suave.

— Não pensei que seriamos atacados. Tive atenção ao barco, à posição e às horas. — Desculpa-se, e eu não sei o que lhe dizer, aquela voz de culpa deixa-me com o estômago torcido. Ele levanta-se, trazendo o Mateen consigo, já parece melhor, mais estável. — Eles vão nos dar transporte para os Grandes Ventos. — Informa-nos, talvez para tentar dizer que o risco valeu a pena.

Pergunto-me cada vez mais como será o Kiell, a sua personalidade, quero dizer.

Tanto sorri como está sério. Não parece querer mostrar às pessoas o que é. Estamos a pôr as nossas vidas nas mãos dele, podia ser um pouco mais transparente. E, embora ache que lhe consigo ler as expressões, não vou saber como ele é se não mostrar.
Ele sabe que é responsável por nós, e que nos meteu em perigo, mas também nos avisou para ter cuidado e que o trajeto para o Sul não ia ser um mar de rosas. Devíamos ter estado mais atentos.

Mesmo assim, ele coloca aquela máscara na cara, como se ignorasse tudo que aconteceu, levanta-se, endireita as costas e anda em frente para nos fazer chegar ao nosso destino.

Não quer interagir, não quer conversar, não a sério.

É apenas como um guia, e nós não somos mais nada do que estranhos, de passagem.

Há algo de estranho nele. E eu gostaria de saber o que é, porque vejo o grupo a ficar cada vez mais tenso. Não sei se estamos todos a pensar o mesmo, mas noto o medo a aumentar.

Ainda não acabou o dia e já passamos por dois sustos, quase morri naquele campo deserto. Já chorei como uma desalmada, dói-me o corpo e os olhos de chorar. Mesmo assim entrei naquele barco, com todos, e vi-os a sorrir e a brincar, assim como a lança que passou pelo Mateen. Senti medo, medo real, medo da morte.

Não foi assim há tanto tempo, e sinto que estou a ficar cada vez mais cansada, com esta tensão que não me deixa relaxar.

O que pode acontecer mais hoje? Não quero estar sempre com medo de perder alguém do grupo ou de morrer.

Sigo o caminho rodeada pelos homens que não conheço de lado nenhum, sempre atenta a cada um, com medo que um deles mude de lealdade e resolva atacar de novo. Não posso perdoar, não depois do que o que o Mateen passou.

— Bastou olhar para ele para pararem de atacar? — A pergunta acusadora chega-me aos ouvidos bem baixinho, o Helian agarra-me o braço e olha para mim. Parece realmente preocupado, mais do que já estava. Está desesperado por um sentimento de segurança, estar constantemente a desconfiar do Kiell não ajuda. O que lhe devo dizer? A minha mente está demasiado assustada e alerta para pensar nas intenções do Kiell, se a única coisa que me deixa relativamente mais calma neste planeta se tornar mau, o que será da minha cabeça?
Resta-me ser o mais relaxada possível, talvez passe a sensação ao Helian. 

— Viste que ele é como eles.

— Não acho que seja por isso. — Responde rapidamente, sabendo que o ia defender, acho que está cada vez mais nervoso.

Quando lhe pergunto o que quer dizer ele não me responde, claro. Gosta sempre de deixar uma pista, mas nunca desenvolve os pensamentos. O rapaz que deixa sempre tudo para dentro, sem nunca exteriorizar nada. Por agora acho que isso até é uma coisa boa, senão o Kiell provavelmente estaria colado ao chão, sendo forçado a dizer tudo o que sabe. 

Tento concentrar-me na areia quase preta que, graças a este fato, não me entra para os sapatos e na maneira como toma a forma das pisadas. Ao cansar-me de analisar as pegadas de todos decido olhar para o sol que agora se encontra mesmo acima de nós.

Não estou aqui há muito tempo, mas já tenho saudades da minha vida.

Falo como se a tivesse perdido.

Quero ver as minhas ruas movimentadas, quero ver os meus conhecidos, o meu rio, o meu céu. Até ele parece diferente, com o sol quase branco, mais brilhante e o Anel que cada vez parece mais grosso e dividido. Noto nas linhas, mais branco que o branco em si, que não via quando cheguei, e percebo que avançamos mais do que pensava. Tornou-se maior, de uma linha fina, para uma rua cintilante por onde adoraria caminhar. Quer-me engolir, quer manter-me aqui.  

Nuns momentos é a coisa mais linda que já vi na vida, no outro parece um novo monstro que me quer pisar. Talvez sejam as saudades a ganhar, a vontade de sair do desconhecido, a necessidade de voltar ao que sei. 

Consigo este momento de distração, de concentração em tudo menos no grupo com quem caminho, é pena não durar muito mais tempo.

Eles levam-nos a um veículo, ou algo parecido. Podia ter rodas, mas não tem, nem é parecido com os carros que já vi. É como um inseto, uma barata, um veículo preto construído com uma carapaça feita de janelas grossas amarelas escuras. As janelas estão cheias de riscos, mas ainda consigo ver para dentro, para os assentos.

Deve ser assim que eles se movimentam.

Enorme, deve conseguir levar o nosso grupo e mais alguns, no entanto, o Kiell informa-nos que os seus homens não virão connosco, que serviram apenas para nos trazer aqui.

E cada vez mais me pergunto que tipo de influência tem, ele disse que mandava naquela aldeia, talvez o conheçam. Duvido que o sigam desta maneira e falem tão educadamente para um rapaz que também é das suas terras.

As conspirações do Helian estão a infetar-me a cabeça. 

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